
“Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante / De uma estrela que virá numa velocidade estonteante / E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante”.
É dessa forma que Caetano inicia a canção “Um índio”, entre as muitas da MPB e do cancioneiro popular brasileiro, das mais bonitas e sensíveis, juntamente com “Canoa, Canoa”, de Milton Nascimento, que fala dos infortúnios e do extermínio da nação avá-canoeiro (índios negros, cara-negra, carijós), que se até a década de 70 do século passado somava quase mil indivíduos, vivendo nas barrancas do rio Araguaia, hoje mal chega a 20, reclusos na Serra da Mesa, no norte goiano, aguardando apenas a própria extinção.
Historiadores antigos, à esquerda e à direita, apontam o índio como um ser letárgico e preguiçoso, o que deu à coroa portuguesa “direito” a “importar” negros escravizados da África como mão-de-obra.
A desculpa não apaga a nódoa da escravidão e nem os estigmas (letargia e preguiça) são justas e corretas: o índio é, isso sim, um ser insubmisso, rebelde e livre, que não servia, à época, ao nascente capitalismo, como não serve agora nestes finais de neoliberalismo.
Dos preconceitos
A pecha da historiografia é desviante (ética e moralmente execrável) e passou para o grosso da população que vê (ainda vê) o índio como um sujeito que consome o dia deitado numa rede, explorando o trabalho das mulheres, obrigadas que estariam a cuidar dos próprios filhos e ainda plantar e colher mandioca para comer e fazer farinha.
O preconceito gerou outro preconceito – “coisa de índio” – não para louvar as suas virtudes índias, mas para identificar algo confuso, incorreto e de mau-gosto.
Das tecnologias
Embora jornalista, e sem qualquer formação em Educação, acabei, por um tempo, por ministrar aulas nos três graus, começando, inclusive, pelo antigo Movimento Brasileiro de Educação (Mobral).
Numa das escolas (esta de segundo grau e privada) um aluno, tipo riquinho e urbano, resolveu me confrontar na minha defesa das comunidades indígenas, da sua cultura e da sua tradição.
No seu vasto e arraigado entendimento daquilo que vem a ser um índio, o aluno usou as recorrências de praxe: “preguiçoso”, “vagabundo”, “coisa de índio” etc.
Ainda em “Um índio”, Caetano fala que “Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida / Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”.
No meu contra-argumento às acusações do aluno, usei não os versos de Caetano, mas sim o mote da tecnologia (coisa que sempre faço).
– “então me diga, meu caro: quem domina melhor a tecnologia? Você ou um índio?”
– “ah… professor! Claro que eu! Desde quando índio conhece e usa tecnologia?”
– “certo! Então você constrói a sua própria casa, o seu próprio meio de condução, as suas próprias armas, a sua própria roupa, planta e colhe o que come…”.
– “pera, pera aí, professor. O senhor está misturando as coisas. Eu não preciso fazer nada disso. Está tudo aí pronto. É só comprar e usar.”
– “você está certo também nessa. Mas, digamos, e se seu carro quebrar, o telhado de sua casa cair, o seu telefone pifar? Você sabe como resolver o problema e tem condições de consertá-los?”
– “não! claro que não!”
– “pois então, quem domina a tecnologia? Você ou o índio?”