Nosso discurso no dia a dia sustenta e revela nosso secular preconceito

Preconceito
Crédito da ilustração: mundodapsi.com

Mal foi instalada a comarca de Cotia (município da região metropolitana de São Paulo), na década de 70, o primeiro juiz (creio que, na época, único) passou a ser acusado por parte da população de ser aliado “aos poderosos da cidade” e de se beneficiar de irregularidades em sentenças e na compra de terras e edificações na região.

Um problema sério desse tipo de acusação é que ao acusador (no caso, acusadore(s) cabe o ônus da prova que não tinha(m).

Até onde sei, o diz-que-diz não deu em nada; naquela época não existiam as redes sociais, onde esse tipo de boataria costuma se espalhar, mas, em contrapartida, pode ser facilmente rastreada; ninguém foi questionado ou processado pelo meritíssimo; creio que, agora, o juiz já esteja aposentado ou até mesmo morto, e pelo que consta nenhuma terra ou qualquer edificação no município está em seu nome ou em nome de parentes e herdeiros.

Minha namorada, Helena, é quase duas décadas mais nova do que eu, uma mineira bonita. Um sujeito que conheço e que me conhece e sabe de nosso namoro a abordou duas vezes, dizendo-lhe: “e aí morena?”.

Não fui “tomar satisfações” do engraçadinho em nenhuma das duas vezes e nem o desafiei para um duelo a espada ou a garrucha para “salvar a honra”.

Helena é adulta, tem “personalidade forte” e plena consciência de ser mulher e dos desvios dos quais o machismo é capaz. Se limitou, ambas às vezes, a devolver ao engraçadinho um olhar duro e intimidador e revelador e seguiu adiante.

Das subliminares

O funcionário aqui do prédio onde moro, em Brasília (também identificado como “porteiro”) é um piauiense de nome Francisvaldo, um cara que já morou em vários lugares do Brasil, entre eles na Amazônia e em São Paulo, e que por agora vive por aqui defendendo com determinação, competência e honestidade o seu “pão nosso de cada dia”.

Três vezes ao dia Francisvaldo ouve de um sujeito que mora no mesmo bloco em que moro a mesma arenga “E aí Juninho? E o papai? O papai tá contente?”.

Não há exagero na colocação acima não. O sujeito repete mesmo a arenga três vezes ao dia: quando sai pela manhã, quando volta para almoçar, quando volta ao trabalho após o almoço.

Francisvaldo, ou o Juninho, só escapa da arenga à tarde, quando já foi embora do prédio, cumprido o seu horário de trabalho.

Mas o que há de errado na história que mereça citação neste texto?

Tudo!

A começar pelo uso de “juninho” para identificar Francisvaldo. Ele não tem Júnior no nome, portanto não é júnior de seu pai.

O “papai” a que se refere o vizinho (que, aliás, é subsíndico de prédio) é o síndico, que nunca está no prédio, diga-se.

A construção da identificação de Francisvaldo indica, segundo a lógica do subsíndico, que o funcionário do prédio é um ser menor, menos importante, subalterno aos interesses e desmandos do síndico e, por consequência, um devedor de uma benesse por parte do titular por este ter-lhe dado um emprego e a quem “juninho” deve se esforçar, cotidianamente, para agradar.

Na lógica do trabalho não consta que qualquer funcionário/trabalhador deva agradar ao empregador/patrão, mas apenas e tão somente cumprir corretamente com as suas funções.

Das recorrências

Conheço um pouco o subsíndico. É um sujeito de poucas letras, de parca inteligência e de baixa capacidade de reflexão, que, aparenta, portanto, não estar  consciente do papel que exerce ao desqualificar e humilhar Francisvaldo.

O subsíndico é, portanto, uma recorrência em si mesmo, como tantas há por este país, que repete, incansavelmente, a arenga de que por esta Grande Terra de Tupã não existam preconceitos, opressões e humilhações embora eles, preconceitos, opressões e humilhações, sejam praticados diuturnamente.

Das extensões

Antes de fechar o texto, no entanto, é bom que se volte ao primeiro exemplo, o do juiz acusado por parte da população cotiana de um sem-número de irregularidades.

Há quem possa ter um estranhamento, posto, em tese, o juiz fazer parte da elite opressora e que, portanto, seu caso não cabe na discussão.

Cabe sim.

A sua classe e a sua posição social não importam neste caso. O que importa é que parte da população do município usou de um subterfúgio, de uma boataria, de uma recorrência imprecisa e sem provas contra o meritíssimo, como forma de opressão e coação, embora essa opressão não tenha identificadas origem e intenções.

O que, aliás, só agrava o problema, posto ser um senso comum, a base de todos os preconceitos.

Quando se fala em direitos e, principalmente, em direitos humanos, se está referindo a todos, independente de classe social e de origem.

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