“O Capital de Karl Marx: uma crítica sólida ao capitalismo”

KM
Créditos da foto: UMass Amherst

[Nas últimas décadas, passaram-se acontecimentos contraditórios. Por um lado, o colapso do comunismo na URSS e na Europa Oriental produziu narrativas de fim da história que tentaram naturalizar o capitalismo como a melhor solução social possível, mesmo que humanamente falível. Por outro, a forma neoliberal do capitalismo que dominou o mundo desde o início da década de 1980 exacerbou as profundas e persistentes desigualdades de salário, riqueza e poder, acelerou os problemas de degradação ambiental e mergulhou a economia mundial numa crise económica e financeira profunda e duradoura em 2008, indiscutivelmente a pior crise económica do capitalismo desde a Grande Depressão da década de 1930. É no contexto desse movimento contraditório da história recente que precisamos revisitar o trabalho do maior crítico e analista do capitalismo, Karl Marx.

Nascido em Trier, na Alemanha, em 1818, numa família de classe média, o jovem Marx começou a ter contacto com as ideias radicais do socialismo francês graças ao pai e ao futuro sogro. Depois de obter o doutoramento em Filosofia pela Universidade de Jena em 1841, e sem poder exercer uma posição académica graças às suas ideias políticas radicais, começou a trabalhar para um jornal democrático em Colónia, o Rheinische Zeitung. Como comentador e editor de um jornal muito popular, Marx foi confrontado com questões de “interesse material”, como o comércio internacional e tarifas, a condição do campesinato no vale do rio Mosela, o acesso a recursos de propriedade comum como lenha por parte dos pobres. O treino anterior de Marx em Filosofia, História, Clássicos, Jurisprudência, Literatura, não lhe permitiu envolver-se adequadamente com tais questões de interesse material. Assim, quando a oportunidade surgiu, em 1844, sob a forma de um desacordo com os apoiantes da classe média sobre o conteúdo democrático do jornal, renunciou à redação do Rheinische Zeitung e iniciou um longo estudo sobre economia política. Mas por que economia política?

O período entre 1844 e 1848 que Marx devotou a um intenso estudo foi dividido em três pontos: uma reavaliação da filosofia alemã clássica, especialmente hegeliana; um engajamento crítico com as ideias francesas do socialismo; e um estudo introdutório de economia, especialmente economia clássica proveniente do mundo anglo-saxônico. Este foi um período formativo para o futuro desenvolvimento intelectual de Marx. As conclusões que alcançou durante esta altura acompanharam-no durante o resto da vida e guiaram a sua trajetória intelectual.

A primeira conclusão pode ser chamada conceção materialista da história, que afirma que, para entender a entidade complexa a que chamamos sociedade, é preciso compreender a estrutura da sociedade civil, ou seja, a totalidade da vida material; e, para fazê-lo, é preciso usar as ferramentas da economia política. A segunda conclusão pode ser denominada dialética, que afirma que, para entender a grande escala, a mudança histórica na sociedade, é preciso identificar as principais contradições na sociedade civil. Essas contradições, além disso, são a contradição entre classes sociais fundamentais.

Aqui, então, temos uma resposta à pergunta “por que economia política?” Marx abordou o estudo da economia política, porque isso lhe permitiria entender a “anatomia da sociedade civil”, um passo fundamental para entender a estrutura da sociedade burguesa contemporânea. Além disso, orientou os seus estudos em economia política para uma investigação das “categorias que compõem a estrutura interna da sociedade burguesa e sobre as quais as classes fundamentais descansam” porque as contradições entre as “classes fundamentais”, o seu ponto de vista filosófico dialético combinado com a sugerida conceção materialista da história, tinha a chave para a mudança histórica de grande escala da sociedade burguesa. Essas conclusões forneceram as categorias para estudar a estrutura interna da sociedade burguesa – capital, trabalho assalariado e propriedade – e tornaram-se nas principais categorias de análise na sua magnum opus, O Capital.

Enquanto Marx continuava os seus estudos em economia política na década de 1850, também estudou a melhor forma de apresentar os resultados das suas investigações. Algures em 1865, chegou à estrutura final de O Capital, com um trabalho de três volumes/livros que opera em dois níveis primários de abstração, “capital em geral” e “muitos capitais”. A análise ao nível do “capital em geral” é, por sua vez, dividida em dois volumes. O primeiro volume do processo de produção de capital; e o segundo do processo de circulação de capital. A análise ao nível de “muitas capitais” é apresentada num volume (Volume Três) e trata da totalidade do processo de produção capitalista. Usando a mais-valia, um dos conceitos-chave de O Capital, como princípio organizador central, também podemos pensar nos três volumes de O Capital como aqueles que lidam, respetivamente, com a criação e acumulação de mais-valia (Volume Um); a realização de mais-valia (Volume Dois); e a distribuição da mais-valia (Volume Três).

A análise nos três volumes de O Capital desenvolve ideias profundas sobre a estrutura e as dinâmicas de longo prazo do capitalismo. Mostra de que forma o capitalismo, como todas as sociedades divididas em classes, depende da exploração dos trabalhadores. Isso mostra como é que essa exploração tem a forma quantitativa de mais-valia, e como esta, por sua vez, é redistribuída através de vários canais sob a forma de lucros, juros e renda. Mostra de que forma a existência e a reprodução do exército de reserva do trabalho – o grupo de trabalhadores desempregados e subempregados e os trabalhadores potencialmente empregáveis no agregado familiar e na agricultura camponesa de subsistência – é necessária para a estabilidade do sistema capitalista. Mostra de que forma as relações capitalistas, ao mesmo tempo, revolucionam os métodos e a organização da produção, e degradam as condições de trabalho, incapacitam os trabalhadores e destroçam o meio ambiente. Em comentários dispersos, que foram posteriormente desenvolvidos de forma mais sistemática por estudiosos marxistas, mostra como é que o processo de acumulação de capital – a força dinâmica central de uma economia capitalista – é um processo intrinsecamente contraditório, de modo a que períodos de crise, como o que estamos a testemunhar desde 2008, são a norma para as sociedades capitalistas, e não as ocorrências excecionais que os economistas burgueses provavelmente conseguem.

Ainda que muitas características específicas do capitalismo tenham mudado muito nos 150 anos desde que o Volume Um de O Capital foi publicado pela primeira vez em 1867, muitas das suas características estruturais fundamentais – trabalho assalariado, competição entre capitais, mais-valia e a sua redistribuição, acumulação de capital – permanecem intactas. Assim, mesmo que uma análise do capitalismo contemporâneo tenha de ir além do que está contido nos três volumes de O Capital, esses três volumes continuam a ser um ponto de partida importante – e o melhor – para uma análise crítica do capitalismo contemporâneo, uma análise voltada para um projeto para transcender o capitalismo, fazendo parte dele.]

Deepankar Basu é economista da universidade de Massachussets com vários trabalhos no âmbito da economia marxista e também na economia política da Índia.

Tradução de Ana Bárbara Pedrosa para o esquerda.net.

 In Carta Maior.

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