
O título acima abre o texto de Juan Arnau, para o El País, texto que segue praticamente na integra abaixo, “Vaidade sem controle, obsessão pela segurança, aceleração tecnológica … Por que tantas pessoas procuram na filosofia da Antiguidade respostas para o mundo em que vivemos?”
Antes, segue parte do verbete da Wikipédia a respeito do advogado, escritor e intelectual do Império Romano,
[Lúcio Aneu Séneca (português europeu) ou Sêneca (português brasileiro) (em latim: Lucius Annaeus Seneca; Corduba, 4 a.C. — Roma, 65) foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano. Conhecido também como Séneca (ou Sêneca), o Moço, o Filósofo, ou ainda, o Jovem, sua obra literária e filosófica, tida como modelo do pensador estoico durante o Renascimento, inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia europeia renascentista.
Sêneca foi simultaneamente dramaturgo de sucesso, uma das pessoas mais ricas de Roma, estadista famoso e conselheiro do imperador. Sêneca teve que negociar, persuadir e planejar seu caminho pela vida. Ao invés de filosofar da segurança da cátedra de uma universidade, ele teve que lidar constantemente com pessoas não cooperativas e poderosas e enfrentar o desastre, o exílio, a saúde frágil e a condenação à morte. Sêneca correu riscos e teve grandes feitos.]
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[Logo após a morte de Cláudio, ocorrida em 54, o escritor vingou-se com um escrito que foi considerado obra-prima das sátiras romanas, Apocolocyntosis divi Claudii (“Transformação em abóbora do divino Cláudio”).[4] Nessa obra, Séneca critica o autoritarismo do imperador e narra como ele é recusado pelos deuses. Seu irmão, Lúcio Júnio Gálio,[5] também ridicularizou Cláudio, fazendo uma analogia com as pessoas executadas, que eram levadas ao Fórum Romano puxadas por ganchos: ele disse que Cláudio havia sido elevado aos céus puxado por um gancho.[6]
Quando Nero, aos dezessete anos, tornou-se imperador, Séneca continuou a seu lado, porém não mais como pedagogo e sim como seu principal conselheiro (ajudado por Afrânio Burro, prefeito do Pretório). Sêneca procurou orientar para uma política justa e humanitária. Se, durante os primeiros sete anos, o governo de Nero lembra o de Augusto, o mérito exclusivo é desses dois homens que, na realidade, governaram ao lado do jovem príncipe. A índole de Nero foi mitigada, corrigida, freada. Mais tarde, porém, a malvadez de Nero teve o predomínio. Séneca, durante algum tempo, exerceu influência benéfica sobre o jovem, mas, aos poucos, foi forçado a adotar atitudes de complacência. Chegou mesmo a redigir uma carta ao senado na qual se alega que tentou justificar a execução de Agripina em 59. Séneca sabia que a maior culpa por sua morte havia sido da própria Agripina, que pretendia imperar e que se tornara hostil por ambição, capricho e corrupção; sua raiva crescente só fez aumentar a vingança matricida de Nero, que não deu mais ouvidos às palavras severas de seus dois conselheiros. Séneca foi, então, muito criticado pela fraca oposição à tirania e à acumulação de riquezas de Nero, incompatíveis com as concepções estoicas. Conforme concluiu o emérito professor Giulio Davide Leoni, o destino foi, em parte, malvado para com Séneca, fazendo chegar até nós as acusações e perdendo as defesas. Da leitura atenta de suas páginas, do modo como aceitou e caminhou para a morte, como Sócrates, surge um juízo sincero que as reticências dos historiadores e estudiosos, muitas vezes, acabam por ofuscar.
Em De Beneficiis (II,18), Séneca lembra que “às vezes, mesmo contra a nossa vontade, devemos aceitar um benefício, quando é dado por um tirano cruel e iracundo, que reputaria injúria que tu desdenhasses seu presente. Não deverei aceitar?” Assim, mais importante do que saber que Séneca era rico, é saber se ele era ávido de riquezas, se viveu no fausto e na opulência.
Conforme suas Epistulae Morales ad Lucilium, 18, seu pensamento era este: é lícito ser rico, contudo é preciso viver de tal modo que se possa, em cada contingência, bastar a si próprio e renunciar a qualquer bem que a sorte pode dar, mas também tirar. Rico, Séneca viveu com um certo conforto, mas, conforme acreditava e pregava, sempre de maneira modesta.
O professor G.D. Leoni, da Sedes Sapientiae, afirma, em seu estudo introdutivo ao volume XLIV da Biblioteca Clássica da Atena Editora, São Paulo, 1957, que a posteridade foi injusta, recolhendo contra Sêneca somente as invejosas acusações dos seus inimigos. Mas a perfeita intuição dos poetas define aquilo que os críticos se esforçam por esclarecer mas amiúde ofuscam. Dante, no limbo, vê, entre os sumos escritores e heróis antigos – Sócrates, Platão, Demócrito, Diógenes de Sinope, Anaxágora, Tales de Mileto, Empédocles, Heráclito, Zenão de Cítio, Dioscórides, Orfeu, Cícero, Lino e “Séneca morale”. Séneca, diferente de um filósofo, é um entusiasta da filosofia, estudioso apaixonado, informado de todas as correntes filosóficas do seu tempo, mas contrário a encerrar-se em qualquer sistema ou fórmula. Nele, a filosofia era viva, era a própria vida. “A prosa adere ao pensamento, uniformiza-se, adapta-se a ele; e muitas vezes um subentendido produz um jogo de luzes e sombras cheios de profunda beleza, amiúde a frase breve produz inesperadas imagens pictóricas, outras vezes antíteses, ou as anedotas enriquecem as sentenças austeras, a argúcia atenua a trágica solenidade do assunto”. Poeta, humanista, mais que filósofo, o elemento preponderante em suas obras são os sentimentos, mais do que as ideias, com as quais, na origem, pouco contribuiu. Entretanto, na história do pensamento, nunca ninguém foi tão compenetrado do sentimento da nobreza do espírito humano, e soube tão bem e poderosamente transmitir esse sentimento em palavras.” Sua prosa é vivaz, variada, alegre, moderna, eterna; como quando procura mostrar como as desventuras pelas quais passam os bons, devem ser encaradas como provas para melhor evidenciar suas virtudes, ajudar o próximo: “Os deuses põem à prova a virtude e exercitam a força de espírito dos bons, que devem seguir seu destino preestabelecido: o sábio, por isso, nunca será infeliz.”
Séneca retirou-se da vida pública em 62. Entre seus últimos textos, estão a compilação científica Naturales quaestiones (“Problemas naturais”); os tratados De tranquillitate animi (Sobre a tranquilidade da alma), De vita beata (Sobre a vida beata) e, talvez sua obra mais profunda, as Epistolae morales, dirigidas a Lucílio, em que reúne conselhos estoicos e elementos epicuristas na pregação de uma fraternidade universal mais tarde considerada próxima ao cristianismo.]
Segue o texto de Juan Arnau
[Cultive o espírito porque obstáculos não faltarão. O conselho de Confúcio poderia ter sido assinado por qualquer um dos filósofos estoicos. Devemos a Woody Allen uma versão moderna dessa máxima: “Se quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”. Um poeta espanhol a finalizou com um verso lapidar sobre o inexorável julgamento do tempo: “A pessoa só compreende depois que a vida era algo sério”.
Esses são, em termos gerais, os três vértices do estoicismo antigo, que parece ressurgir em nossos dias. É uma miragem? As sociedades modernas se encontram dominadas pela rentabilidade tecnocrática da selfie, a autoindulgência (todos nós merecemos, especialmente se pagarmos) e o capricho. Significa fabricar um ego frágil e injustificadamente vaidoso. Uma situação que pode ser supostamente remediada com uma boa dose de estoicismo. Uma vez que não podemos controlar o que nos acontece e vivemos totalmente voltados para fora, atemorizados e estressados, uma vez que somos mais circunstância do que nunca, talvez essa antiga filosofia possa nos ajudar, ela que inspirou Marco Aurélio, imperador de Roma, um homem que, por sua posição, conheceu o estresse melhor do que ninguém.
Mas nesse deslocamento, nessa busca de inspiração no passado greco-latino, corre-se o risco de confundir, e isso de fato ocorre, estoicismo com voluntarismo, tão vigente e puritano. A cultura do esforço e a busca do sucesso dominam as sessões de coaching, que é, segundo seus proponentes, a arte de ajudar outras pessoas a cumprir seus objetivos e a “preencher o vazio entre o que se é e o que se deseja ser”. Não existe maior traição ao legado estoico. O voluntarismo resseca a alma e uma das finalidades do estoicismo é recriá-la. O que chamamos “desafios” e “metas” não são outra coisa a não ser viseiras que não nos permitem ver mais do que um único aspecto da realidade e a pessoa acaba batendo o avião contra a montanha, como aquele piloto da companhia Germanwings. fez nos Alpes da Suíça em 2015.
Essas metas nos trabalham por dentro e parecem projetadas para excluir a contemplação e a observação atenta e desinteressada. Contra a tirania da meta, os estoicos pretendiam se livrar de paixões muito urgentes e monopolizadoras. De fato, um dos sinais distintivos foi considerar a poesia como meio legítimo de conhecimento. A lírica nos mantém em uma atitude aberta e nada sabe de metas e objetivos. A poesia era aos estoicos, especialmente a de Homero, genuína paideia. Entender isso significa ganhar uma liberdade interior, não estar eternamente abduzidos pelo circo e as telas, uma independência moral, não a opinião geral e a gritaria do Twitter e transcender a dependência da pessoa em relação a sua parte animal (a suposição de que o homem é esse ser singular que, como dizia Novalis, vive ao mesmo tempo dentro e fora da natureza). Com esse “cuidado de si”, que Marco Aurélio chamava meditações, era possível conseguir uma autarquia ética que teria uma importância decisiva no pensamento político grego.
Alguns exemplos de estoicismo moderno não estão muito longe. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein conta que quando jovem experimentou essa sensação de que “nada poderia acontecer com ele”. Era uma forma de dizer que, não importa o que acontecesse (uma bala perdida, um câncer), saberia aproveitar a experiência. Uma atitude que lhe permitiu assumir o posto de vigia em meio ao fogo cruzado durante a Primeira Guerra Mundial. Encontramos algo parecido na francesa Simone Weil, sempre se arriscando, seja na fábrica da Renault ou nos hospitais de Londres, com a humildade como valor supremo, que faz com que a chama do divino não se apague.
Curiosamente, a atitude desses dois grandes filósofos, nos quais revivem os velhos ideais greco-latinos, contrasta com algumas obsessões atuais. Do medo ao próprio corpo, que requer um exame contínuo, à obsessão pela segurança (to feel safe, to feel at home). Como se um scanner e um refúgio pudessem outorgar essa tranquilidade, como se fosse preciso se trancar para sentir-se seguro. Enquanto um mandatário recente se perguntava quanto dinheiro precisava para sentir-se seguro e, ao não encontrar o número, passou a acumular capital, Wittgenstein se expunha na trincheira e Weil na coluna de Durruti, o anarquista que combateu na guerra civil da Espanha.
O estoicismo implica, como disse a espanhola María Zambrano, a recapitulação fundamental da filosofia grega. Nesse sentido foi e é tanto um modo de vida como um modo de se estar no mundo. Zenão de Cítio, natural da colônia grega do Chipre, figura como fundador da escola. Tinham algo em comum com os cínicos, especialmente a vida frugal e o desprezo pelos bens mundanos, e refletiram sobre o destino e a relação entre natureza e espírito. Existiu um estoicismo médio (platônico, pitagórico e cético), mas os que deram fama à escola foram seus representantes romanos: um imperador, um senador e um escavo. Todos eles surgiram, como agora, sob a sombra do Império. Aquele império era militar, o de hoje é tecnológico. Imaginem Zuckerberg abraçando o estoicismo; pois bem, foi isso que fez o imperador Marco Aurélio. Sêneca nasceu na periferia do Império, na Hispânia, mas foi uma figura fundamental da política em Roma, senador com Calígula e tutor de Nero. Epíteto chegou à cidade sendo um escravo. Quando foi libertado fundou uma escola e apesar de, seguindo o exemplo de Sócrates, não ter escrito nada, seus discípulos se encarregaram de transmitir seu legado.
Moralistas e contemplativos, todos eles defenderam a vida virtuosa, a imperturbabilidade e o desapaixonamento, sentimentos todos eles bem pouco rentáveis a uma sociedade do entretenimento. O estoicismo conquistou grande parte do mundo político-intelectual romano, se tornou uma regra de ação e sua influência chegaria a grandes filósofos como Plotino e Boécio. Não descreveremos sua lógica refinada, mas vale a pena lembrar que a subordinavam à ética. Ao contrário de hoje, pelo menos no mundo financeiro, onde o algoritmo domina a moral. Nela se destaca sua doutrina dos indemonstráveis, provavelmente de origem indiana.
Concebiam a alma como uma lousa onde as impressões eram gravadas. Delas surgem as certezas (se a alma aceitar a impressão) e os interrogantes (se for incapaz de localizá-la). Para os estoicos, o mundo era, como para nós, substancialmente corporal, mas sua física não nega o imaterial. Concebe a natureza como um contínuo dinâmico, coeso pelo pneuma, um sopro frio e quente, composto de ar e fogo. Herdaram de Heráclito o fogo como princípio ativo e primordial, de onde surgiu o restante dos elementos e para onde retornaram. Como o humor e o pranto, o pneuma não se movimenta e sim se “propaga”, contagiando com alegria e doença.
Hoje não seria exagerado colocar em prática alguns de seus princípios. O imperativo ético de viver conforme a natureza, que nosso planeta agradeceria. O exercício constante da virtude, ou eudemonia, que permite o desprendimento. E, por fim, o que Nietzsche chamou o amor fati, a aceitação e querença do próprio destino, remédio eficaz para tudo aquilo que produz desassossego. Não dá para dizer que esses princípios proliferam em nossos dias. Se um velho estoico pudesse vir ao nosso tempo, veria, nas grandes desigualdades propiciadas pela economia financeira, um descuido de si, um esquecimento dessa autonomia moral que evita que surjam emoções como o medo e a vaidade, que criam a cobiça. Emoções contrárias à razão do mundo que, em nosso caso, é a razão do planeta.]