“Só a humanidade pode libertar-se a si própria”

Berardi
Foto: Filosomídia – “Franco Berardi, mais conhecido por Bifo (Bolonha/Itália, 1949) é um filósofo e agitador cultural italiano”

[Abaixo, extractos de uma entrevista recente ao filósofo italiano Franco Berardi, realizada por Ana Pina e publicada num jornal de economia online (aqui). Tomámos a liberdade de mudar o título [“O pensamento crítico morreu”], usando na mesma palavras do entrevistado.

O acrónimo inglês TINA – There Is No Alternative [não há alternativa] – é usado recorrentemente para justificar a necessidade de trabalhar mais e de aumentar a produtividade. Na sua opinião, não há mesmo alternativa?  

Esse tem sido o discurso dos líderes políticos nos últimos 40 anos, desde que Margaret Thatcher declarou que “a sociedade não existe”. Existem apenas indivíduos, empresas e países competindo e lutando pelo lucro. É este o objetivo do capitalismo financeiro. E com esta declaração foi proclamado o fim da sociedade e o início de uma guerra infinita: a competição é a dimensão económica da guerra. Quando a competição é a única relação que existe entre as pessoas, a guerra passa a ser o ‘ponto de chegada’, o culminar do processo. Penso que, em breve, acabaremos por assistir a algo que está para além da nossa imaginação…

O que pode pôr em causa o capitalismo financeiro? Enfrenta alguma ameaça?  

A solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro. Mas atenção, não acredito numa vontade maléfica. O que me parece é que os processos tecnológico e económico geraram, simultaneamente, o capitalismo financeiro e a aniquilação tecnológica digital da presença do outro. Nós desaparecemos do campo da comunicação porque quanto mais comunicamos menos presentes estamos – física, erótica e socialmente falando – na esfera da comunicação. No fundo, o capitalismo financeiro assenta no fim da amizade. Ora, a tecnologia digital é o substituto da amizade física, erótica e social através do Facebook, que representa a permanente virtualização da amizade. Agora diz-se que é preciso “consertar o Facebook”. O problema não está em “consertar” o Facebook, mas sim em ‘consertarmo-nos’ a nós. Precisamos de regressar a algo que o Facebook apagou.

O pensamento crítico pode ajudar a “consertarmo-nos”?

Não há pensamento crítico sem amizade. O pensamento crítico só é possível através de uma relação lenta com a ciência e com as palavras. O antropólogo britânico Jack Goody explica na sua obra “Domesticação do Pensamento Selvagem” que o pensamento crítico só é possível quando conseguimos ler um texto duas vezes e repensar o que lemos para podermos distinguir entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Quando o processo de comunicação se torna vertiginoso, assente em multicamadas e extremamente agressivo, deixamos de ter tempo material para pensarmos de uma forma emocional e racional. Ou seja, o pensamento crítico morreu! É algo que não existe nos dias de hoje, salvo em algumas áreas minoritárias, onde as pessoas podem dar-se ao luxo de ter tempo e de pensar.

No seu livro “Futurability – The Age of Impotence and the Horizon of Possibility” (2017) escreve que o paradoxo da automação sob o capitalismo reside no facto de “chantagear os trabalhadores a trabalharem mais e mais depressa em troca de cada vez menos dinheiro, numa luta impossível contra os robôs”.  

Há pelo menos 20 anos que isso acontece um pouco por todo o lado, Europa incluída. Importa dizer que a União Europeia (UE) não existe ao nível político, apenas ao nível financeiro. Aliás, a função da UE tem sido, e continua a ser, a de obrigar as pessoas a trabalhar mais em troca de salários cada vez mais baixos. Estamos a falar num empobrecimento sistemático. Mas o desenvolvimento tecnológico, em si mesmo, não é uma coisa má, pelo contrário. O problema está na forma como o capitalismo organiza as possibilidades tecnológicas de maneira a cairmos numa armadilha. O que quero eu dizer com isto? Que somos levados a pensar que a liberdade advém do trabalho e do salário. Que somos obrigados a pensar que a tecnologia é uma ferramenta para a acumulação, o lucro. Ora, é difícil sair de ‘armadilhas mentais’ como esta.

(…)

Como vê o papel dos media e das redes sociais nos tempos que correm? 

Devo dizer que, nos dias de hoje, a expressão “media” não é muito óbvia. Remete para quê exatamente? Remete para o The New York Times (NYT) ou para o Facebook? Digamos que, neste último ano, houve uma disputa cerrada entre o NYT e o Facebook e foi este que acabou por vencer, porque o pensamento crítico morreu. E o pensamento imersivo está fora do alcance da crítica. A imersividade é, pois, a única possibilidade. Esta é outra questão relevante. Acredita que o Facebook pode ser ‘consertado’? Pessoalmente não acredito. Em tempos, eu e muitas outras pessoas acreditávamos que a Internet ia libertar a humanidade. Errado. As ferramentas tecnológicas não vão libertar-nos. Só a humanidade pode libertar-se a si própria. Voltando ao Facebook, como podemos defini-lo? O Facebook é uma máquina de aceleração infinita. E esta aceleração, intensificação, obriga a distrair-nos daquilo que é a genuína amizade.

Considera que as redes sociais padronizam formas de estar?  

Sem dúvida. A nossa energia emocional foi absorvida pelo mundo digital, por isso as pessoas esperam que os outros “gostem” do que dizemos [nas redes sociais] e muita gente sente-se infeliz quando os seus posts não produzem esse efeito. Uma das consequências desse investimento emocional é o chamado ‘efeito da câmara de eco’, ou seja, tendemos a comunicar, a trocar informações e opiniões com pessoas que pensam como nós, ou que reforçam as nossas expetativas, e reagimos mal à diferença. Podemos chamar-lhe psicopatologia da comunicação. O futuro só é imaginável quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na amizade, na solidariedade e, claro, no amor. Mas se não formos capazes de sentir empatia, o futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos conferem humanidade.

Um estudo da OMS refere o suicídio como a segunda causa de morte entre crianças e jovens com idades entre 10 e 24 anos; e estima que, em 2020, a depressão será a segunda forma de incapacidade mais recorrente em todo o mundo. Que leitura faz deste retrato alarmante? 

Entre finais da década de 1970 e 2013, a taxa de suicídio aumentou 60% em todo o mundo, segundo dados da OMS. Como podemos explicar este aumento brutal?! O que aconteceu há 40 anos atrás? Como referi antes, Margaret Thatcher declarou que a sociedade não existe; paralelamente, o neoliberalismo eliminou a empatia da esfera social. Depois, a tecnologia digital começou a destruir a possibilidade do real, da relação física entre humanos; a emergência de Tony Blair é a prova de que a Esquerda morreu – refiro Blair por ser mais fácil de identificar, mas juntamente com ele estão muitos outros líderes. A Esquerda (…) embarcou no discurso neoliberal: pleno emprego, oito horas por dia, cinco dias por semana durante uma vida inteira. Isto é cada vez menos viável. O pleno emprego é algo impossível, o que temos é mais precariedade para todos, cortes nos salários para todos, mais trabalho para todos, em suma, uma nova escravatura. A isto somam-se dois aspetos importantes. Primeiro, a obrigação passou a ser parte integrante da nossa formação psicológica e a competição tornou-se no princípio moral universal. Segundo, passámos a julgar-nos em função do critério da produtividade. Existe apenas um modelo, um padrão, que é o da competição e sentimo-nos culpados de todos os nossos “fracassos”, seja ele o desemprego ou a pobreza. Há quem lhe chame auto exploração.

Refere num artigo que o ser humano tem de abandonar o desejo de controlar… 

Hoje em dia, o grau de imprevisibilidade aumentou de tal forma que pôs fim à potência masculina. O ponto de vista feminino, por seu turno, representa a complexidade, a imprevisibilidade da infinita riqueza da natureza e da tecnologia – não no sentido de algo oposto à natureza, mas como uma forma de evolução natural. Atualmente, só o ponto de vista feminino é que pode salvar a raça humana. O ponto de vista masculino já não é capaz de fazer o tipo de ‘trabalho’ de que fala Maquiavel: dominar a natureza. Isso já não é possível, por isso temos de libertar a produtividade da natureza e da mente humana, isto é, o conhecimento. Hoje em dia, o problema não está no excesso de tecnologia, mas sim na nossa incapacidade de lidar com a tecnologia sem ficarmos reféns do preconceito do poder, do controlo, da dominação. Temos de abandonar essa pretensão: a de controlar.

(…)

Como vê a Europa de hoje? 

De momento, exceto Portugal e Espanha, o racismo é o único ponto de entendimento entre os europeus. Nem mais nem menos: racismo. E não tem a ver com o medo do outro, da diferença. Tem a ver com a incapacidade de lidar com o passado colonial. A ideia que prevalece na Europa é que se ganha quando se é mais racista do que o outro. A Europa está fraturada e o discurso mantém-se: o Norte contra o Sul, [o grupo de] Visegrado contra Paris e Berlim… Enfim, apenas confluem num aspeto: rejeitar a imigração. Mesmo que isso signifique a morte de milhares de pessoas e o encarceramento de milhões de pessoas na Líbia, no Níger, nos Camarões, na Nigéria e por aí diante (…). ]

Maria Helena Damião e Isaltina Martinsm in O Jornal Económico publicado também em  De Rerum Natura 

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