As histórias de Zacarias, o Ícaro, de um lugar chamado Cotia

Icaro
Blog do Velhinho

Tivemos por aqui nosso Ícaro.

O seo Zacarias, pai de Alcides, o Alcidão, que por longos anos foi prático da farmácia do doutor Waldemar Albano, na época a única de Cotia, assim como Albano era o nosso único médico e ainda o parteiro da cidade.

Alcidão era pai de Carlinhos, um sujeito mirradinho e precocemente míope.

Numa época que a gente era obrigado a usar bastante o físico (seja para esportes, seja para o trabalho) Carlinhos não servia para absolutamente nada.

A irmã se chamava Cida e herdou de Alcidão a lourice.

Carlinhos puxou a mãe, de cabelos pretos embora de tez branca como leite.

Não sei que fim levou essas pessoas todas. Se estão mortas ou ainda permanecem vivas.

Não sei se Carlinhos e Cida se casaram, se tiveram filhos e netos; se se deram bem na vida; se enriqueceram ou ficaram tão pobres como Alcidão.

Fomos vizinhos de Zacarias na Ernesto Lemos Leite, bastante próximos ao Grupo Escolar Baptista Cepellos onde nós todos estudamos.

Zacarias era bastante velho, de cabelo branquinho, provavelmente mais velho que os meus avós de nasceram no final do século 19.

Ele tinha uma cabra, provavelmente para suprir-lhe de leite, que um dia me derrubou do barranco com uma chifrada.

Cabras e bodes são bichos danados e sempre nos pegam distraídos.

Duvido que alguém com menos de 50 anos já tenha visto uma cabra na vida.

As histórias da epopeia de Zacarias, o nosso Ícaro, são confusas e contraditórias.

Não se sabe ao certo nem se ele tentou voar mesmo e quais consequências de seu feito.

A história oral não registrou essas minudências.

Alguns testemunhos da época dizem que ele tentou o voo construindo asas de madeira.

Se verdadeira isso, deve ter sido uma história espetacular, tanto quanto o tombo que Zacarias certamente levou.

Cotia é cheia de morretes, portanto espaço para essas empreitadas há de sobra.

Os testemunhos sobre o acontecido, porém, são falhos, espécies de fake news daqueles tempos.

Mas são histórias recorrente já que se repetem praticamente em todos os lugares, regiões e países.

Até mesmo agora, na época dos balões, dirigíveis, aviões e foguetes ainda nos deparamos com pessoas querendo, por suas próprias forças, voar.

Tem quem também voe (literalmente) impulsionada por outras forças (a cocaína), como foi o caso de uma amiga, catapultada do 10ª anda rumo ao chão em um edifício de São Paulo.

Hoje em dia são essas histórias bastante recorrentes e muito mais comuns que as de Zacarias.

Ícaro, que é mais lenda que o nosso Zacarias, “era filho de Dédalo, um dos homens mais criativos e habilidosos de Atenas, conhecido por suas invenções e pela perfeição de seus trabalhos manuais, simbolizando a engenhosidade humana.

Um de seus maiores feitos foi o Labirinto, construído a pedido do rei Minos, de Creta, para aprisionar o Minotauro. Por ter ajudado a filha de Minos a fugir com um amante, Dédalo provocou a ira do rei que, como punição, ordenou que ele e seu filho Ícaro fossem jogados no Labirinto.

Dédalo sabia que a sua prisão era intransponível, e que Minos controlava mar e terra, sendo impossível escapar por estes meios. “Minos controla a terra e o mar”, disse Dédalo, “mas não o ar. Tentarei este meio”.

Dédalo projetou asas, juntando penas de aves de vários tamanhos, amarrando-as com fios e fixando-as com cera, para que não se descolassem. Foi moldando com as mãos, de forma que estas asas se tornassem perfeitas como as das aves.

Estando o trabalho pronto, o artista, agitando suas asas, se viu suspenso no ar. Equipou Ícaro e o ensinou a voar. Então, antes do voo final, advertiu seu filho de que deveriam voar a uma altura média, nem tão próximo do sol, para que o calor não derretesse a cera que colava as penas, nem tão baixo, que o mar pudesse molhá-las. 

Eles primeiramente se sentiram como deuses que haviam dominado o elemento ar. Ícaro deslumbrou-se com a bela imagem do sol e, sentindo-se atraído, voou em sua direção, esquecendo-se das orientações de seu pai. A cera de suas asas começou rapidamente a derreter e logo Ícaro caiu no mar.

Quando Dédalo percebeu que seu filho não o acompanhava mais, gritou:

“Ícaro, Ícaro, onde você está?”.

Logo depois, viu as penas das asas flutuando no mar. Lamentando suas próprias habilidades, chegou seguro à Sicília, onde enterrou o corpo e chamou o local de Icaria em memória de seu filho.” (Saber Cultural)

A ânsia por voar me parece, no entanto, bem mais complexa do que simplesmente a vontade por tentar encurtar distâncias.

Parece-me que nós buscamos, a rigor, escapar da finitude do mundo, da finitude da vida, mas sempre nos deparamos com as nossas limitações e nos assuntamos com a grandeza espetacular do universo.

Mas continuamos fazendo de conta que algum dia vamos a alguma lugar, mesmo que sozinhos, e quem sabe para nos encontrarmos como Deus.

Márcio Tadeus dos Santos

Um passeio pelo centro de São Paulo é muito ilustrativo e um bocado chocante

Moradores de rua
Foto Obvious (alterada)

Visitar a área central de São Paulo (o centro velho e o centro novo) é uma aventura muito interessante, bastante criativa, um bocado ilustrativa e nada edificante.

Trata-se de uma área muito decadente, apesar dos esforços revitalizadores da antiga prefeita petista Martha Suplicy [1].

Nessas áreas a gente vê incêndios, como o da semana passada, no Paissandu [2], e um número inacreditável de moradores de rua, ou vivendo em situação de rua, como gostam de dizer os puristas do politicamente correto, como se mudanças de denominações fossem alterar alguma coisa, e minimizar o sofrimento dessa gente.

Apenas na capital paulista moram de 20 a 25 mil pessoas (estima-se – são dados do ano passado), mas não se sabe ao certo quantas pessoas estão nessas condições em todo o Estado, a tal da locomotiva que puxa o Brasil (pra onde será?) e o Estado mais rico da federação.

No Brasil todo esse número flagela 101 mil pessoas.

Será que podemos dar um viva ao Capitalismo?

Na minha modestíssima opinião esses números estão todos defasados e são um bocado falsos.

Mas vamos trabalhar com o que temos em nossas mãos.

Estive hoje perambulando pela região do Tietê (pela rodoviária) – que não fica na área central da capital paulista – e pela Luz – área contígua ao centro velho e bastante decadente, talvez a mais decadente de todas as decadências paulistanas.

Não percebi, mas passei, ao lado da estação da Luz, por uma moradora de rua bastante jovem.

Isso é a tal da invisibilidade – passamos por essas pessoas e não as percebemos, ou pior: não queremos vê-las.

Quando voltei, fiquei frente a frente com a jovem que estava sentada no chão e visivelmente drogada. [3]

Ela não me pediu, mas piedosamente dei-lhe um dinheirinho – provavelmente para aplacar a minha vergonha por não tê-la visto.

Foi um tiquinho de nada – um real e pouco – não contei.

Ele me agradeceu educadamente, olhou-me com um sorriso nos lábios e perguntou-me se eu a tinha percebido.

Foi um troço chocante, e sem pieguismo algum deixei escorrer algumas lágrimas.

Mais à frente outra moradora de rua – esta negra.

Ela não me viu, pois estava entretida em tossir.

Não sei distinguir uma tosse da outra (tosse é um sintoma), mas me ocorreu que ela pudesse estar tuberculosa, coisa muito comum no meio dessa gente abandonada e submetida a todo tipo de atrocidades não apenas por parte da população, mas também da polícia que deveria zelar por suas seguranças – vulneráveis que são elas.

Tenho observado um número crescente de moradoras de rua, qual seja, de mulheres, coisa que não se via há algum tempo, ou eu, desavisadamente, não conseguia perceber.

Só nesse trajeto da Luz encontrei, como disse acima, duas; aqui em Cotia já contei algumas e. em Brasília, várias.

Sinceramente já pensei em morar com essa gente, pelo menos por algum tempo.

Nunca fiz isso e provavelmente nunca farei.

Creio que não tenha mais resistência para esse tipo de jornada.

De agora em diante só fico com o meu obsoleto papelzinho de pequeno burguês contrito hipocritamente com a condição a que estão submetidos moradores e moradores de rua de São Paulo, do Brasil e do mundo.

Isso, reconheço, é um troço bastante cômodo – estupidamente cômodo.

Márcio Tadeu dos Santos

Notas

[1] Marta Suplicy foi prefeita de São Paulo de 1º de janeiro de 2001 a 1º de janeiro de 2005;

[2] Desabamento de prédio escancara o apartheid habitacional na cidade mais rica do Brasil – El País

[3] Busquei, por razões obvias, não constranger a jovem, fotografando-a

Estou perdendo a memória e não sei se isso é bom ou ruim

Memoria
Imperionanet

Na quinta e na sexta-feira (3 e 4 de maio) assisti a dois filmes norte-americanos que tinham como tema caminhadas – um documentário e uma ficção.

Já os havia assistindo há dois ou três meses, mas não me lembrava deles.

Minha memória foi voltado, parcialmente, ao longo das “películas”, mas não me lembrei de todo conteúdo dos dois filmes.

Após o infarto, que aconteceu em dezembro de 2015, minha memória passou a falhar.

Ela nunca foi um primor; sempre me esqueci das coisas com facilidade e, com o tempo, passei a não reconhecer algumas pessoas.

Na avaliação dos médicos isso era mais ou menos natural, dada à gravidade do infarto – muito em função do tempo em que demorei em ser atendido (1 dia, mas por culpa minha que não busquei ajuda imediata) e da forte arritmia da qual fui acometido.

Segundo eles, mas cedo ou mais tarde, e com terapia, a memória voltaria.

Não fiz a terapia, mas a memória começou a retornar aos poucos, isso até recentemente (a cerca de duas semana) quando não apenas voltou a piorar com piorou consideravelmente.

Dúvida

Uma dúvida me assalta, no entanto: não sei ao certo se a perda de memória é necessariamente uma coisa ruim ou uma coisa boa.

Uma boa vantagem, por exemplo, é nos esquecermos de todos os nossos problemas; como também vamos nos esquecer das próprias pessoas que geralmente são muito chatas; não vamos mais ter a consciência da morte (que já é um ganho considerável, convenhamos) e, principalmente, não vamos mais nos lembrar de pagar as nossas contas.

Se podemos usufruir das benesses dos esquecimento, temos também quem procure nos fazer retornar à condição de uma suposta sanidade, e para tanto identificam (até para resolver o suposto problema) sete os motivos para a perda de memória [1]:

Uso de drogas (lícitas ou não)

Não são raros os casos de bebedeira que terminam com alguém que não se lembra da noite anterior. O consumo de maconha pode fazer com que você esqueça coisas que estava para dizer ou mesmo se perder no meio de uma frase. Outras drogas também provocam efeitos semelhantes na memória de curto prazo, pois agem no rebaixamento do sensório (uma região do cérebro), afetando a consciência. Algumas delas também podem aumentar a agitação e, com isso, diminuir a atenção do usuário. Isso sem falar que também podem causar distúrbios na neurotransmissão cerebral, dificultando assim a retenção da lembrança.

Estresse
Alguns cientistas já reconhecem que o estresse é uma das principais causas de perda de memória recente, sendo que sua intensidade e tipo influenciam bastante nesse processo. A exposição às neurotoxinas geradas pode causar uma alteração na atividade normal do sistema nervoso central, resultando até em uma atrofia da estrutura onde as memórias se originam, o hipocampo.

Medicamentos

Quando o medicamento lida diretamente com o sistema nervoso central, há uma chance de ele afetar suas lembranças. Além de reduzir a atenção do paciente, eles também podem causar uma mudança no fluxo normal de neurotransmissão, diminuição da consciência e liberação de neurotoxinas, fatores que podem determinar uma alteração na memória de curto prazo. Vale ficar atento.

Doenças graves
Algumas doenças graves, como insuficiência cardíaca ou doença renal crônica, também podem causar problemas na memória de curto prazo. Elas provocam a liberação de neurotoxinas, redução do sensório e da circulação cerebral, que estão entre os principais motivos para o rápido esquecimento.

Apneia obstrutiva do sono
Esta doença crônica é caracterizada pelo bloqueio parcial ou total das vias respiratórias, o que causa repetidas pausas na respiração durante o sono. Além do ronco, os principais sintomas da apneia obstrutiva são o aumento da agitação durante a noite, uma falta de disposição e a sonolência em excesso durante o dia. Esses três pontos afetam a atenção do indivíduo e, com isso, afetam também a capacidade de funcionamento da memória de curto prazo.

Transtorno do ciclo sono-vigília

O período de sono e de vigília dos seres humanos segue um padrão, conhecido como circadiano. Em condições normais, esse período está sincronizado com fatores naturais e oscila dentro de um período de 24 horas. Algumas coisas, porém, como o jet leg provocado por viagens em fusos horários diferentes, estresse e disfunções hormonais, podem causar alterações nesse ciclo. É aí que aparece aquela famosa insônia ou a sonolência. Da mesma forma que a apneia, este problema pode afetar a atenção por causa da falta de disposição e sonolência, interferindo na memória de curto prazo da pessoa.

Doenças psiquiátricas
O transtorno de ansiedade, transtorno depressivo e outras doenças psiquiátricas podem causar perda de memória recente por diversos fatores, principalmente aqueles envolvendo o sistema nervoso. Elas podem ser responsáveis pela geração de neurotoxinas, provocar a diminuição da capacidade do sistema nervoso em se adaptar ao longo do desenvolvimento ou até mesmo afetar a capacidade de funcionamento dos neurotransmissores. Além da possibilidade do paciente sofrer com déficit de atenção, que também pode afetar a memória.

Acho isso tudo muito confuso e creio que o melhor mesmo é ser desmemoriado.

Márcio Tadeu dos Santos

Nota

[1] https://super.abril.com.br/blog/superlistas/7-fatores-que-podem-te-levar-a-perda-de-memoria-recente/

 

“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito”

A casa
Poltrona Nerd

Eu sou um sujeito que tem certa facilidade para enjoar das coisas e das pessoas.

O “certa facilidade” não entra acima apenas como retórica, até porque muitas vezes demoro um bocado para que esse enjoo me apareça.

Por exemplo, gostava muito de futebol mas aos poucos fui me desinteressando do esporte.

Foi assim com o cinema. Quando ainda era razoavelmente jovem, não havia “fita” à qual eu não tivesse assistido.

Depois migrei para a fase seletiva e posteriormente deixei de ir aos cinemas.

Hoje, quando muito, dou uma olhada nos filme disponíveis na internet, evitando os dublados.

Num dos capítulos (não lembro qual) de La casa de papel (que faz um bom sucesso na Netflix) uma das duas jovem do grupo de ladrões é acusada exatamente por não se fixar em nada, e, como eu, de desistir com certa pressa de tudo e de todos.

Quem a critica, a classifica como “imatura” – o que não deixa de ser um julgamento moral, e, portanto sem consistência.

Pois então: VIVA A IMATURIDADE!

Aliás, sobre La casa de papel hora dessas vou me fixar na série espanhola.

Até o momento não estou exatamente gostando do que vejo, pois a mim me parece um amontado de clichês, algumas “homenagens” – especialmente às séries e aos filmes norte-americano -, quando não, trechos inteiramente copiados dessas películas.

Mas, como disse acima, isso fica para um futuro que espero não distante, isso se eu também não desistir de continuar assistindo-a e, consequentemente, de abordá-la.

Embora eu ainda continue, nos meus textos, falando de política, começo a me enjoar desse quéquéqué todo a respeito de Lula e se é justo ou não que ele permaneça preso em Curitiba.

Até como uma boa desculpa, costumo cuidar de assuntos que estão acontecendo agora e daqui para frente.

Embora eu, às vezes, use o subterfúgio de falar do passado, mas como uma espécie da “gancho” para criticar o presente, ou aquilo que pressinto estar por acontecer no futuro.

Igualmente também não gosto de “finalizar” os assuntos; dá-los por acabado, como se fossem eles minhas opiniões definitivas.

Acho isso uma grande bobagem.

E pelo menos aqui creio estar na boa companhia de Aldous Huxley.

Aqui, a propósito, se impõe necessariamente o Prefácio de Manuel da Costa Pinto para as Portas da Percepção – Céu e Inferno, (Editora Globo) de Aldous Huxley. (MTS)

 . . . . . . . . . .  

A casa 02
Reprodução (capa Editora Globo)

[A alusão que Aldous Huxley faz ao poeta William Blake nos títulos de seus dois ensaios sobre as drogas alucinógenas não deve nos enganar: As portas da percepção (1954) e Céu e Inferno (1956) são meditações escritas à luz radiosa da razão, relatos de experiências com a mescalina que não conduzem a uma adesão imediata aos paraísos artificiais, mas sim a uma idéia de alargamento da consciência que não elide seu elemento reflexivo.

Essa observação é fundamental por causa da história nada desprezível da recepção de Huxley em um âmbito que ultrapassa os limites da chamada “alta cultura” (na qual ele havia se consagrado como autor dos clássicos Contraponto e Admirável mundo novo). No final dos anos 60, o compositor, cantor e poeta Jim Morrison criou na Califórnia uma banda de rock chamada The Doors, cujo nome fora inspirado na leitura de As portas da percepção. Morrison morreria em Paris em 1971, provavelmente de overdose, mas sua curta e fulminante trajetória — marcada não apenas pelo sucesso musical e por escândalos comuns dentro do universo pop, como também por uma produção poética que chegou a ser comparada à de Rimbaud — acabaria estabelecendo uma ponte entre a poética visionária de Blake, o erotismo sacrificial dos concertos dos Doors e a obra de Huxley, que assim ganharia uma aura de guru da contracultura.

Essa identificação estava sintetizada num trecho do célebre poema em prosa “O matrimônio do céu e do inferno” — “If the doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, infinite” (“Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito”, segundo tradução de José Arantes publicada pela editora Iluminuras). E, no entanto, a imagem de Huxley como uma espécie de profeta aristocrático da era hippie não parece resistir à leitura de As portas da percepção e Céu e Inferno. É bem verdade que ele mesmo alimentou a confusão ao colher os títulos dos ensaios nos aforismos de um poeta “maldito”, que mimetizou suas alucinações tanto com as palavras quanto em telas que representam personagens bíblicas em cenários apocalípticos. E também é verdade que Morrison estava sendo fiel à letra de Huxley ao conferir a suas experiências com mescalina e ácido lisérgico um caráter ritual inspirado no xamanismo: afinal, o escritor inglês escolhera a mescalina para seus experimentos justamente por causa da função sagrada que o peiote (raiz da qual é extraída a droga) desempenha nas religiões dos índios americanos.

O fato, porém, é que em nenhum momento Huxley parece buscar nos alucinógenos uma conversão mística ou uma ruptura absoluta com o mundo ordinário.

Tampouco parece movido por um desacordo essencial em relação aos cárceres psicológicos e perceptivos da realidade empírica. Enquanto Blake era um gnóstico para quem “o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria”, Huxley fez do excesso de sabedoria e de curiosidade um caminho para o palácio do êxtase: é a razão que, percebendo sua insuficiência perante a pluralidade do mundo, busca uma abertura para novas formas de percepção que sejam uma alternativa ao solipsismo (essa perversão do idealismo) e ao behaviorismo (perversão do empirismo).

Nesse sentido, Aldous Huxley é um perfeito agnóstico.

Vale a pena fazer aqui um pequeno desvio para explicar a origem desse termo.

Afinal, a expressão “agnóstico” foi literalmente inventada pelo avô de Aldous — o eminente biólogo Thomas Henry Huxley — durante as acirradas polêmicas surgidas depois da publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, em 1859. Ferrenho defensor da teoria da evolução, Thomas Henry se viu na obrigação de rebater as críticas dos criacionistas (religiosos que faziam uma leitura fundamentalista das Escrituras, defendendo a idéia de que o homem foi gerado por Deus em sua conformação atual), formulando então um conceito que passou a ser um estandarte do antidogmatismo e da emancipação do pensamento:

Quando cheguei à maturidade intelectual e comecei a perguntar-me se era ateu, teísta ou panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre-pensador, percebi que quanto mais aprendia e refletia menos fácil era a resposta, até que por fim cheguei à conclusão de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definições, com exceção da última. A única coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era a única coisa em que eu discordava delas.

Estavam bastante seguras de que tinham atingido uma certa ‘gnose’ — haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o problema da existência, enquanto eu estava bastante seguro do contrário e possuía uma convicção razoavelmente forte de que o problema era insolúvel. […] Portanto, meditei e inventei o que me parece ser um rótulo adequado: ‘agnóstico’. Pensei nele como uma antítese sugestiva dos ‘gnósticos’ da história da Igreja, que professavam conhecer coisas em que eu era ignorante.

Aldous Huxley foi um legítimo herdeiro do ethos iluminista e anti-religioso de seu avô. As Portas da percepção e Céu e Inferno são relatos pacíficos de uma experiência extraordinária e sugerem um autor que não transfere para a escrita as fendas e as instabilidades de sua paisagem interior. Estamos longe do estilo candente de um Thomas de Quincey ou de um Artaud — para citar dois outros escritores que associaram drogas a um estado de espírito demoníaco. Com Huxley, estamos mais próximos do ceticismo moderno de Montaigne ou Hume; ele desconfia igualmente do totalitarismo da razão e das quimeras de nossa imaginação e só se interessa por estas últimas em sentido antropológico, como uma fresta por onde se pode sondar a alma humana Mesmo quando tematiza as drogas em obras de ficção, o escritor inglês parece estar preocupado menos com o transe que elas provocam em personagens individuais do que com seus efeitos sobre o mecanismo psicológico das massas — caso dos narcóticos imaginários consumidos no universo asfixiante de Admirável mundo novo (o soma, que provoca um bem-estar politicamente anestesiante) e na sociedade utópica do romance A ilha (a moksha, uma pílula que “liberta do cativeiro do próprio ego”). Talvez seja por isso, por essa falta de predisposição ao fantástico (“sou e, até onde minha memória alcança, sempre fui pouco dado a devaneios”), que, ao provar pela primeira vez a mescalina, em 1953, Huxley tenha descoberto não um novo continente, mas um novo olhar sobre cenários familiares: “Nada de paisagens, espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformação se dava no reino dos fatos objetivos.

O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava”. A essa ausência de figuras sobrenaturais, porém, corresponde a perplexidade diante do caráter transcendente que os objetos adquirem a partir da alteração do estado de consciência de quem os observa. Descrevendo as transformações que sofrem as flores de um vaso, uma cadeira ou um simples pedaço de tecido na percepção de alguém que ingeriu a droga, Huxley nos revela o “milagre do inteiro desabrochar da existência em toda sua nudez” e uma nova dimensão de tempo, “um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação”.

A despeito das referências de Huxley ao taoísmo e a místicos como são João da Cruz ou Swedenborg, essa “visão sacramentai da realidade” proporcionada pela mescalina se restringe a um plano estritamente natural.

Huxley admira os estados de espírito extáticos porque eles proporcionam exemplos do caráter irredutível da existência — e, sob esse aspecto, o uso argumentativo que Huxley faz de Buda e de Mestre Eckhart tem uma surpreendente semelhança com o sentido que este grande nome da mística renana ou o filósofo japonês Nishida adquirem na obra de Heidegger. De resto, quando Huxley descreve sua percepção “narcotizada” de uma cadeira como “minha Despersonalização na Desindividualização que era a cadeira”, a frase parece remeter exatamente à distinção que o filósofo de Ser e tempo faz entre o ente manipulável (tal qual instituído pela razão instrumental) e o ser autêntico (cuja eterna irrupção fora encoberta pela dicotomia sujeito-objeto e seria redescoberta pela superação heideggeriana da metafísica).

À diferença de Heidegger, porém, Huxley considera que tanto o esquecimento da totalidade do ser quanto seu oposto — a abertura da consciência para a irrupção dos acontecimentos —- são um fenômeno do mundo biológico.

Para ele, o cérebro e o sistema nervoso seriam uma “válvula redutora”, que evita — por meio do caráter seletivo da memória e das restrições impostas pela linguagem — que o homem seja esmagado pela torrente de informações a que sua “onisciência” potencial estaria sujeita.

Seria um anacronismo tentar avaliar a correção dessas afirmações a partir das descobertas recentes das neurociências. Nem As portas da percepção nem Céu e Inferno são tratados científicos. Huxley cita vários pesquisadores de seu tempo, consulta especialistas, explica a ação química dos diferentes tipos de drogas, defende suas virtudes e aponta seus malefícios — mas parece se guiar sobretudo por aquele espírito de curiosidade intelectual formulado por Montaigne na aurora da modernidade. Céu e Inferno — texto que dá continuidade às experiências relatadas em As portas da percepção — é uma cartografia da mente cuja analogia entre os estados possíveis da consciência e as zonas do globo (com sua diversidade de fauna e flora) deve muito à descrição, feita nos Ensaios de Montaigne, das “maravilhas” encontradas pelos navegantes nos antípodas das terras civilizadas.

Em Céu e Inferno, essas metáforas geográficas expressam “a dessemelhança essencial das regiões longínquas da mente” que as drogas permitem desbravar. Para o leitor de hoje, elas têm também um significado ético: ensinam a olhar com tolerância e compreensão para essas pequenas epifanias que nos consolam de um mundo em que o prazer é mercantilizado pela indústria do combate ao narcotráfico e em que a mente é agenciada pelos psicofármacos. Aliás, a proliferação atual das drogas normalizantes — que reduzem o cérebro a uma glândula e transformam a existência num protocolo — torna ainda mais urgente a necessidade de transcendência que podemos detectar pela onipresença do uso de alucinógenos nas mais variadas culturas. Como escreve Aldous Huxley : “Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma”. ]

No Brasil temos invasão de cobras e vacas que voam

A cobra
A cobra verde nas vizinhanças (MTS)

Por favor, nenhuma analogia com a jararaca do Lula ou suas estripulias para se safar da prisão, pois hoje é Dia do Trabalho e Lula permanece encarcerado em Curitiba, de onde, parece, não sairá tão cedo, embora eu, particularmente, ache isso uma injustiça.

Não por “tudo que Lula fez pelo Brasil e pelos pobres”, como dizem os petistas, especialmente os fanáticos, que aparentam cada vez mais insanidade, o que é seguramente um perigo porque é tênue a linha que separa a vida da morte, mas sim porque não gosto nada, nada da justiça e muito menos do Estado, que acho uma desnecessidade.

A história da vaca voadora me foi contada no século passado por uma educadora bastante jovem, bastante competente e bastante bonita.

Ao pedir aos seus petizes (será que eu teria de falar petizos e petizas?) que identificassem uma caraterística dos animais que ela ia citando, tudo corria normalmente: o gato – MIA, o cachorro – LATE, o pintinho – PIA até que se chegou à vaca. Em uníssono os pequenos gritaram a plenos pulmões – VOA.

Obviamente que não se tratava de crianças ignorantes, de pais desnaturados e estúpidos mas de crianças cujo único contato com uma vaca era via uma caixinha de leite.

Mas o que explica o voo da vaca?

Simples também!

Fazia sucesso na tevê o desenho da vaca voadora.

Por falta tempo (por conta as labutas diárias pela sobrevivência) os pais dessas crianças delegaram o encargo de educá-las às emissoras de TV.

A serra e a cobra

Cotia fica dentro daquilo que eu tomo a liberdade de chamar de “escarpa interna” da Serra do Mar.

A escarpa externa da Serra naturalmente é voltada para o mar, qual seja, o Oceano Atlântico.

Dia desses estava conversando com um velho amigo cotiano, advogado , e ele, como eu, aliás, reclamava de que o município de Cotia, “tão bonito”, dizia ele (com o que eu concordo) estava ficando totalmente desfigurado pela especulação imobiliária, não apenas aquela voltada à construção de residência, mas, igualmente, pelos chamados parques industriais.

Aqui mesmo em Cotia, ainda no início dos anos 90, abri uma discussão a respeito da responsabilidade dos cotianos na desfiguração do município, com a atração não apenas das indústrias, mas muito especialmente das favelas, o que é e sempre foi o resultado mais visível da industrialização.

Essas especulações todas (aqui vale sim o plural) fizeram desaparecer não apenas parte da Mata Atlântica, mas, igualmente e como seria naturalmente indesejável, a sua suntuosa e rica fauna.

Por exemplo, onde estão as capivaras que ocupavam os banhados das terras baixas, se nem banhados temos mais?

E cadê a Cutia, ou Acoti, ou Acuti de onde o município emprestou o seu nome?

Onde estão os bugios? Os micoestrelas? Os tatus? Os serelepes?

Mas ainda restam as cobras, algumas delas, é verdade. Mas mesmo assim “Ora, viva”.

Na casa vizinha ontem apareceram duas (por estas bandas conhecidas como cobra d´água), aquelas cobras verdes, lindas, que não fazem mal a ninguém, a não ser a ratos, alguns pássaros menores e certos insetos – todos precisam de proteínas como se vê.

Em casa mesmo apareceu uma cobra coral (coral falsa, bem entendido) muito bela e ousada, dentro de residência.

Que folgada!

Tive de colocar porta a fora a intrusa.

Mas a história mais bacana aconteceu quando minha mãe ainda estava viva.

Estávamos todos sentados numa lateral da casa: minha mãe, meu pai, eu e ainda os dois cachorros.

Pois não é que uma cobra coral falsa desfilou calmamente entre nós todos e sem que nenhum de nós lhes prestasse atenção ou reverência?

Pois então, com tantos problemas de desmatamento, de destruição da Mata Atlântica, de desfiguração do município onde nasci e de especulação imobiliária desenfreada eu ainda vou me preocupar com um cara que está preso em Curitiba? (MTS)

“O Maio de 68 e o movimento antiguerra: de Londres a Berlim”

Guerra Fria
Berlim Ocidental era a capital da guerra fria

[Na Grã-Bretanha tínhamos decidido formar uma organização chamada Campanha Solidariedade Vietname (Vietnam Solidarity Campaign, VSC). O estado-maior da VSC tinha sido convidado a enviar um representante para discursar no Congresso sobre a guerra do Vietname, que se realizaria em Berlim Ocidental e que era organizado pela Liga estudantil socialista alemã (Sozialistischer Deutscher Studentenbund, SDS). Foi decidido que eu iria como orador e que estabeleceria contacto com representantes dos movimentos do mesmo tipo que a VSC de outros países da Europa.

O movimento antiguerra crescia em todo o mundo. Personalidades democratas dos Estados Unidos começavam a preocupar-se. Enquanto o presidente Johnson e o seu governo prosseguiam a escalada, um candidato defensor da paz, o senador Eugène MacCarthy, tinha-se declarado a favor de um governo de coligação em Saigão, que incluísse a Frente de Libertação Nacional (FLN), o que teria levado ao colapso imediato da estratégia americana na Indochina. Outros senadores, como Wayne Morse e Fulbright em particular, começavam a revelar publicamente as suas apreensões. Morse declarou que esta guerra era “ilegal, imoral” e que era “uma intervenção militar totalmente injustificada”. Fulbright foi mais comedido, mas usou a sua autoridade como presidente do poderoso comité do Senado para os Negócios Estrangeiros para contestar a versão oficial do que estava a acontecer no Vietname do Sul.

Berlim Ocidental era a capital da guerra fria. Alguns anos antes, a realização nesta cidade de um Congresso pelo Vietname seria impensável. No entanto, os acontecimentos de 1967 tinham modificado algumas atitudes. A esmagadora maioria da população era fortemente proamericana, mas uma parte crescente da população tinha rompido com a ideologia dominante. Em 1967, tinha sido organizada pela SDS em Berlim Ocidental uma manifestação contra a visita do xá do Irão, chefe de um regime torcionário que assentava numa polícia secreta, a SAVAK, cujos chefes se gabavam de constituir a rede de repressão mais eficaz desde o desaparecimento da Gestapo.

Oposição à guerra

A polícia recebeu ordem para limpar as ruas e difundiu uma mensagem a dizer que “dois polícias tinham sido agredidos”. Era uma mentira que conduzia inevitavelmente à violência. Um membro da SDS, Benne Ohnesborg, recebeu golpes terríveis e caiu, semi-inconsciente, no pavimento. Enquanto jazia, chegou outro polícia e matou-o a tiro. O presidente da câmara de Berlim Ocidental, um certo Sr. Alberts, ficou profundamente chocado pelo acontecimento e foi ouvir a falsa mensagem de rádio. Deu a conhecer publicamente o seu desacordo, o que era um suicídio político. Foi substituído por um social-democrata insípido chamado Schultz, mas toda a gente em Berlim sabia que o poder estava, de facto, nas mãos do senador Neubauer, responsável pela Administração Interna, que a SDS acusava de ser um “nacional-socialista”. De um autoritarismo extremo, ele estava na extrema-direita do partido social-democrata alemão (SPD).

Foi isto que soube quando cheguei a Berlim em fevereiro para falar no Congresso1.

Fui diretamente para o Clube republicano onde conheci os dirigentes berlinenses da SDS, que me informaram da situação local. A administração social-democrata Schultz-Neubauer proibiu a manifestação prevista, usando o argumento da ameaça à ordem pública. O plano era marchar sobre o setor da ocupação americana e manifestar a nossa oposição à guerra. Em resposta, Schultz tinha declarado que a sua polícia “limparia as ruas com uma vassoura de aço”. A tensão estava ao rubro, enquanto se esperava pela decisão a tomar pelo estado-maior da SDS. Iam desafiar a proibição ou não? Se o fizessem, não havia dúvida que se tornaria uma situação violenta e sangrenta. Os estudantes estavam em cólera. A ferida provocada pelo assassinato de Ohnesborg ainda estava aberta e muitos falavam de vingança. Da minha parte, não tinha percebido que uma manifestação estava planeada e ainda menos que tinha sido proibida.

Proibição

Enquanto escutava o debate – que me era traduzido em simultâneo, por Elsa, favorável à anulação da proibição e que não estava nada inclinada a traduzir de forma entusiasta as posições contrárias; estes últimos aperceberam-se disso e juntaram outra pessoa, partidária do seu ponto de vista – os dirigentes da SDS entraram e apresentaram-se. Eram três: Rudi Dutschke, que tinha deixado Berlim Leste e estudava teologia; Gaston Salvatori, sobrinho do chileno Salvador Allende, estudante em Berlim; e Karl Dietrich Wolf, de Frankfurt.

Levaram-me à parte, para uma sala ao lado, para me explicar a gravidade da situação. Um debate clandestino, que eu desconhecia, abriu-se então. Seria necessário apelar para os tribunais de Berlim Ocidental para pôr em causa a proibição ou então seria considerada como uma capitulação face às instituições que se queria derrubar? Já me tinha recusado a ser arrastado para esse debate da proibição, declarando que para mim era uma questão puramente tática que só poderia ser decidida pelo próprio Congresso. Não houve contestação neste ponto, mas perguntaram-me qual seria a minha proposta. Expliquei gentilmente que não diria nada, dada a minha ignorância de muitas coisas sobre a situação em Berlim Ocidental e que essa seria também, sem dúvida, a atitude da maior parte daqueles que vieram de fora.

Quanto ao recurso aos tribunais, não tinha dúvidas: era preciso um advogado que avançasse um processo contra a administração local. Eles trocaram olhares e sorrisos. Dutschke concordou plenamente comigo. Os outros não disseram nada. No dia seguinte, na abertura do Congresso, foi anunciado que se apresentava um apelo contra a decisão do presidente da Câmara. Não houve quase nenhum murmúrio de protesto na assistência, extremamente numerosa, para minha alegria e surpresa. Havia milhares e milhares de estudantes no interior e no exterior da Universidade livre de Berlim, onde estávamos em sessão.

Uma nova crise eclodiu no conselho municipal. Neubauer disse ao chefe da polícia: “Não importa se houver algumas mortes, é preciso partir um milhar de cabeças”. O chefe da polícia recusou estas ordens e demitiu-se. O seu suplente, um outro social-democrata de direita, substituí-o e declarou que “os atingiria tão duramente que eles iam a correr até Moscovo”. Foi com estes métodos que a social-democracia se preparava para defender a liberdade e a democracia.

SDS, força em crescimento

O nascimento da SDS marcou um ponto de viragem na história da Alemanha. Tradicionalmente, os estudantes apoiavam a direita e os dois principais partidos políticos da Alemanha do pósguerra – a CDU/CSU e o SPD, cujos líderes tinham sido escolhidos pelos Estados Unidos – não ficaram descontentes. A geração nascida durante a guerra ou logo após ela, no entanto, era muito diferente da anterior. Após a guerra, não tinha havido uma verdadeira purga dos fascistas: o novo inimigo era já visível e as velhas inimizades deviam ser ultrapassadas para o enfrentar.

A Alemanha dos anos 50 tinha sido, na aparência, aprovadora e passiva. Mas a memória da guerra não podia ser tão facilmente apagada pelas gerações que coexistiam na República Federal. Nos anos 60, os estudantes dos campus sabiam perfeitamente que os seus pais não tinham conseguido resistir ao ascenso do fascismo. A chegada de Hitler ao poder varreu todos os vestígios da democracia e destruiu os dois maiores partidos operários da Europa, o que deixou a marca política e psicológica nas crianças dos anos 50. Mesmo com o silêncio absoluto que prevalecia nesta questão, eles sabiam profundamente que algo estava errado.

A guerra do Vietname serviu de catalisador. “Somos uma minoria ativa!”, cantavam os militantes da SDS nos comícios e nas manifestações. Foi assim que gritaram a sua desconfiança face a um passado presente no coração de cada família: mais vale uma minoria ativa do que uma maioria passiva, cega perante os crimes cometidos todos os dias. Essa era a mensagem da SDS alemã que, nos anos seguintes, seria retomada por alguns dos seus partidários, num caminho desesperado e autodestrutivo. A “minoria ativa” ia ser, posteriormente, interpretada como a justificação para a “guerrilha urbana” nas cidades alemãs, com consequências trágicas.

A Ofensiva do Tet

Foi no segundo dia que falei no Congresso, sobre a guerra e a solidariedade. A FLN tinha lançado uma nova ofensiva militar no Vietname do Sul para marcar o novo ano vietnamita – o Tet. A ofensiva do Tet tinha começado quando nos preparávamos para começar o Congresso. Cada nova vitória foi anunciada à assembleia no meio de aplausos cada vez mais fortes. Os vietnamitas estavam a caminho de demonstrar, da maneira mais concreta que se pode imaginar, que era possível lutar e vencer.

Foi um elemento decisivo na formação da consciência da nossa geração. Pensámos que a mudança não só era necessária, como era possível. O tema da solidariedade internacional parecia mais vital que nunca e eu ataquei violentamente a cimeira de Glassboro nos Estados Unidos, onde Kossyguine2 e Johnson tinham brindado juntos, enquanto o Vietname era devastado pelos bombardeiros americanos. Declarei que era uma obscenidade. Os discursos, na maior parte, foram aplaudidos e interrompidos aos gritos de “Ho-Ho-Ho Chi Minh!”, que percorreu toda a Europa nesse ano . (…)

Depois Rudi Dutschke levantou-se e fez uma forte intervenção ligando a luta contra os Estados Unidos no Vietname com as batalhas a travar contra a ordem burguesa na Europa. Ele falou sobre estender as bases do movimento estudantil por uma “longa marcha através das instituições”, uma expressão muito utilizada e discutida na SDS. A teoria de Dutschke deriva largamente da de Herbert Marcuse, o veterano filósofo da Escola de Frankfurt de antes da guerra, que tinha uma grande influência entre os estudantes alemães. Esta “longa marcha” não significava “minar por dentro”, mas ganhar experiência em todas as frentes – educação, computadores, comunicação de massas, organização da produção – ao mesmo tempo que se preservava a própria consciência política.

O objetivo da “longa marcha” era construir contrainstituições. Zonas libertadas dentro da sociedade burguesa que seriam o equivalente das zonas libertadas pelos partidários de Mao, na China, durante a longa guerra civil conduzida pelos comunistas chineses. A universidade era um lugar decisivo nessa perspetiva, porque era lá que novos quadros podiam ser educados e preparados para substituir os quadros da classe dominante. (…)

Um dos momentos altos do Congresso foi a subida à tribuna de dois jovens americanos negros, ambos veteranos do Vietname. Mesmo antes de tomarem a palavra, receberam uma ovação da sala de pé. Depois, descreveram brevemente a guerra, explicando a utilização dos negros como carne para canhão. Disseram-nos que a América negra estava à beira de grandes ruturas e, dando os braços, entoaram um canto que nunca tínhamos ouvido, apesar de ser muito conhecida nos Estados Unidos:

“Não quero ir para o Vietname,
Porque o Vietname é onde eu estou,
Diabo não, eu não irei!
Diabo não! Eu não irei”

Os aplausos duraram vários minutos, enquanto os dois veteranos saudavam com o punho erguido.

Todas as pessoas esperavam a decisão do tribunal em relação à manifestação. Eu estava seguro que o juiz tinha recebido informações sobre o estado de espírito e o grande número de participantes no Congresso. O poeta austro-alemão Erich Fried estava a falar quando foi interrompido pela presidência: o tribunal autorizou a manifestação na condição de ela não se aproximar dos soldados ou dos quartéis americanos da cidade. Era uma vitória que foi acolhida como tal, mas nesse momento Rudi Dutschke pediu a palavra e subiu à tribuna. Estava satisfeito com o resultado, mas queria contestar a restrição. Era intolerável que não pudéssemos tentar conversar com soldados americanos. A sua voz ergueu-se:

Mas, camaradas, é precisamente isso que devemos fazer. Se o inimigo define as regras do jogo e nós aceitamos, isso significa, como Herbert Marcuse nos disse muitas vezes, que agimos aceitando as suas regras”.

Desta vez, novamente, o Congresso dividiu-se. Então Fried, ele próprio veterano antinazi, que teve de fugir da Áustria e procurar refúgio em Londres, escreveu uma mensagem para Dutschke: “A nossa vitória é que conseguimos a manifestação. Nenhuma provocação, por favor! Eu disse e salvei a minha alma”. Dutschke parou e leu essa mensagem para si próprio. Depois de uma pausa, informou a assembleia do seu conteúdo e admitiu que a sua própria resposta estava errada. Toda a gente suspirou de alívio.

Manifestámo-nos à tarde. Foi um espetáculo a que Berlim não assistia há mais de trinta anos. 15.000 pessoas, sobretudo jovens, um mar de bandeiras vermelhas e retratos gigantes de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que foram brutalmente assassinados nessa mesma cidade em 1919, sob as ordens dos antepassados políticos de Schultz e Neubauer. Havia também grandes cartazes de Ho Chi Minh e Che Guevara, cuja imagem dominava o nosso cortejo. Descemos o Kurfurstendam marchando e correndo, terminando com uma enorme concentração, em que alguns de nós foram de novo convidados a falar. Levantámos as nossas bandeiras mesmo no coração da Europa dominada pelos americanos.

Rudi Dutschke

A imprensa reacionária de Axel Springer tinha advertido os berlinenses de que haveria violência e sangue, que Dutschke era “o inimigo número um” e que os cidadãos deviam preparar-se para defender Berlim. Mas na realidade a manifestação foi pacífica.

De todas as palavras de ordem gritadas naquele dia, a que parecia mais próxima da realidade era: “A FLN vencerá!”. Quanto à menos provável, havia que escolher, mas “Todo o poder aos sovietes!” parecia a mais distante das probabilidades numa Berlim em que Neubauer tinha uma grande base. (Anos mais tarde ele foi condenado por corrupção em larga escala, envolvido num caso criminal e perdeu o emprego, mas continuou a defender o seu modo autoritário de administrar a cidade). Festejámos o sucesso da manifestação e eu convidei os dirigentes da SDS a enviar ativistas à nossa manifestação no mês seguinte, em Londres.

Mais tarde, numa noite em abril de 1968, recebi um telefonema de Berlim. Era uma amiga da SDS e, durante alguns minutos, ela foi incapaz de falar, porque soluçava sem conseguir controlar-se. Paralisado pela inquietação, pedi-lhe que explicasse o que tinha acontecido. Um fanático de extrema-direita tinha atirado sobre Rudi Dutschke. Ainda está vivo? O ferimento era grave? Onde estava? Estava nos cuidados intensivos, inconsciente. A bala tinha entrado na cabeça e a operação era iminente, mas as possibilidades de sobreviver eram muito pequenas3. A SDS apelou a manifestações em toda a Alemanha e estava a informar os seus amigos em toda a Europa.

Naquela noite, o telefone não parou de tocar. Esta tentativa de assassinato chocou-nos a todos.]

Artigo de Tariq Ali, publicado em contretemps.eu (link is external)4. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Notas

1 Este Congresso teve lugar a 17 e 18 de fevereiro de 1968.

2 Alexis Nikolayevich Kossyguine, soldado do Exército Vermelho em 1919, ingressou no PCUS em 1927, tornando-se funcionário do partido, após as grandes purgas estalinistas em 1938, depois tornou-se membro do Politburo em 1948. Após a queda de Khrushchev em novembro de 1964, ele tornou-se primeiro-ministro soviético no que inicialmente era uma troika com Leonid Brezhnev como secretário-geral do PCUS e Anastase Mikoyan (e depois Nikolai Podgornyi) como presidente. É nessa condição que ele representa a URSS na cimeira de Glassboro nos Estados Unidos. Depois de adoecer, Kossyguine foi destituído do cargo em outubro de 1980 e morreu algumas semanas depois.

3 Rudi Dutschke nunca recuperou completamente deste atentado, após o qual ele se retirou para a Grã-Bretanha, de onde foi expulso, e depois para a Dinamarca, onde morreu em 1979. A nova esquerda alemã perdia assim um dirigente e teórico promissor que, por causa da sua experiência na Alemanha Oriental, poderia construir uma ponte entre as duas alemanhas. Em Paris, no Quartier Latin, por iniciativa da Juventude Comunista Revolucionária (JCR) entre outros, 3.000 manifestantes expressaram a sua solidariedade com a SDS após o ataque contra Rudi Dutschke.

4 Em nota de entrada, o site contretemps.eu(link is external) refere: Tariq Ali, um dos animadores da New Left Review; foi um dos fundadores do Grupo Marxista Internacional (IMG, secção britânica da IVª Internacional) e um dos porta-vozes da nova esquerda britânica nos anos 60 e 70.

Este artigo é um extrato do seu livro Street Fighting Years (“Anos de luta de rua”, título inspirado numa canção de Mick Jagger do verão de 1968: “Street Fighting Man”), que conta o seu percurso de jovem revoltado, nascido no Paquistão, que se tornou militante revolucionário. Este texto apareceu em francês pela primeira vez em Imprecor nº 267 de 6 de junho de 1988.

Termos relacionados 1968 – 50 anos depoisCultura

Outras leituras

Un mundo sin bancos es posible – El Libertario

Tarsila está no MOMA sem a sutileza nem o equilíbrio que merece – El País

Nos 70 anos da Declaração Universal, direitos humanos sofrem ‘brutal ataque’ – Rede Brasil Atual

O Maio de 68 e o movimento antiguerra: de Londres a Berlim – Esquerda Net

“Sem emenda – Ódios do tempo presente”

Politicamente correto
Tribuna da Internet

[Chamam-lhes movimentos tribais. Reflexos ou populismo de tribo. Também há quem diga fanatismo e respectivas hordas ou mesmo fanatismo nacionalista. Os mais específicos falarão de supremacia branca, de racismo e de xenofobia. Eis umas tantas designações correntes para estes fenómenos actuais ou ódios contemporâneos. Estes termos parecem estranhamente empenhados em denunciar comportamentos brancos, de preferência europeus e americanos. Todos eles com inimigos declarados: negros, árabes, indianos e chineses e ainda uns acrescentos de muçulmanos, ciganos, romenos e outros imigrantes.

Acontece que estes comportamentos e estes valores, reais e detestáveis, não são únicos e são exactamente iguais a outros, simétricos e também detestáveis, de negros, árabes e indianos, contra os brancos e mesmo uns contra os outros. E todos se parecem com outros, não menos tribais, não menos fanáticos e também totalmente detestáveis: os das claques desportivas, das ideologias partidárias e dos ódios de classe…

Lamentavelmente, há sempre duas medidas. Se o racismo for dos brancos, dos cristãos e dos europeus, não tem perdão. Se for dos negros, dos muçulmanos e dos africanos, tem desculpas.

Se a xenofobia for prática corrente de brancos, europeus e cristãos, trata-se de odiosa forma de estar no mundo, de despotismo de exploradores e de intolerável egoísmo. Se for a rotina de negros, índios, Indianos, chineses, árabes e ciganos, são as reacções naturais de defesa e da dignidade.

Se o tribalismo for de partidos políticos ou de classes sociais, é forma superior de consciência de classes e de empenho cívico. Mas se for de nação ou região, é a deriva fascista e o populismo soberanista opressor.

Verdade é que os ódios do tempo presente têm estas formas de se exprimir. Umas são desculpadas pelas modas, outras não, mas todas igualmente destruidoras da razão. No Parlamento, a ira, a falta de cortesia e a agressividade são semelhantes às que se exprimem no estádio de futebol. Está em vigor o princípio segundo o qual o radicalismo adversário é fonte de orgulho e de razão. Quando é exactamente o contrário. A agressividade e a hostilidade adversária são estéreis, destinadas a regimentar e não a fundamentar. Diz-se que a ruptura entre esquerda e direita salva a democracia e clarifica argumentos. Nada mais enganador. Em todos os momentos difíceis da vida de um país, foi necessário fazer convergir esforços e razões. Na vida política e social da democracia, a ruptura não é saudável. Quando acontece, vencem a revolução, o caos, a ditadura e a corrupção.

São os reflexos condicionados que fazem com que se julgue a corrupção com dois pesos. Se for da direita, da banca, das grandes famílias, das empresas e dos patrões, é excelente ou inexistente para a direita, mas péssima e condenável para a esquerda. Mas, se for da esquerda, dos socialistas, dos comunistas e aparentados, ou não existe ou tem perdão por ser popular, mas péssima e pecaminosa para a direita. Ambas, esquerda e direita, consideram que a única corrupção com direito à existência é a sua própria. Ambas só têm olhos para a corrupção da outra.

Diz-se hoje que a corrupção é de classe e o terrorismo é político. Ora, cada vez mais se percebe que não têm cor nem ideologia, que a esquerda é tão corrupta quanto a direita, que a esquerda recorre tanto ao terrorismo quanto a direita. O terrorismo e a corrupção já não têm ideologia, nem classe, nem política, nem filosofia, nem desculpa! São os ódios do tempo presente. São os inimigos das liberdades e dos direitos dos cidadãos.

Certos estilos de governo e alguns géneros de liderança são também objectos destes dois pesos. Putin, Trump, Fujimori, Chavez, Maduro, Lula, Berlusconi ou Sócrates: bons exemplos do modo como gestos iguais, estilos semelhantes e métodos afins têm uma valoração moral e uma classificação política muito diferentes. Na política, como na guerra. Ou como na banca e nos estádios. O princípio é simples: os meus favoritos podem mentir e roubar; podem enganar e trair; podem matar e destruir: o que lhes peço é que sejam eficientes e destruam os adversários. E que o árbitro não veja.]

Publicada por António Barreto para o site Jacarandá – (DN, 15 de abril de 2018)

Chico Buarque faz show repleto de “Fora Temer” e de “Lula Livre”

Rita e Chico

Ontem fui ao show do Chico Buarque de Holanda numa casa da zona sul da capital paulista chamada Tom Brasil.

Já é uma casa de shows bastante tradicional e cheia de histórias para serem contadas.

Quem tem dinheiro arrisca, vez ou outra, uma ida à Tom Brasil.

Na entrada fiquei sabendo que por lá também se apresentarão pelos próximos dias Diana Krall e Richard Chamberlain. Ela é canadense, ele, norte-americano.

Pra falar a verdade eu nem sabia de Chamberlain estava ainda vivo.

A Diana Krall é um bocado chata, quer dizer, para o meu gosto ela é ruim, embora tenha um prestígio enorme em boa parte do mundo.

A canadense vive se apresentando em São Paulo.

Talvez o povo de São Paulo tenha muita grana para jogar fora e um gosto duvidoso.

Eu não daria um tostão furado para nenhum dos dois.

Eu também não tenho maiores apreços pelo Chico Buarque de Holanda, contrariando a maioria, inclusive aqueles que detestam as suas posições políticas mas o veneram enquanto artista.

De uns anos para cá – uns 30 ou 40 – peguei uma birra danada da MPB.

Nem ouço essa gente mesmo quando me distraio.

Fui assistir a convite de Salete, minha prima, e de minha tia Rita , que vocês podem ver na foto acima.

Elas são petistas fanáticas e obviamente que alguém iria começar a berrar “fora Temer” e “Lula livre” mais cedo ou mais tarde.

Até que demorou um pouco, e isso só ocorreu quando Chico voltou três vezes ao bis.

Um sujeito que estava sentado conosco, e que também era jornalista (um cara razoavelmente jovem e que diz não perder as apresentações de Chico – ele estava ontem assistindo pela segunda vez e voltaria hoje com a esposa, que também já assistira ao show anteriormente) disse que provavelmente esta seja a última turnê de Chico.

Não sei exatamente de onde ele tirou essa informação.

A casa estava lotada e o show começou no horário previsto.

Eu achava que havia coxinhas demais na plateia, mas pelo gritos de “fora Temer” e “Lula livre” creio que me enganei.

Muita gente pode até ter ido do embalo, impulsionada por aquele velho “efeito manada”, mas o certo é que muitos berraram especialmente “Lula livre” acompanhados ao violão pelo próprio Chico.

Muita gente não me pareceu muito convicta da santidade de Lula, apesar dos gritos, mas o Temer – tido como um usurpador – realmente está na pior.

Pesquisa da consultoria Ipsos, divulgada pela BBC Brasil, hoje, mostra que Temer (69%) só não está em pior situação quem o venezuelano Maduro.

E o presidente brasileiro ainda vai ao Peru participar da Cúpula das Américas.

Vai um bocado desmoralizado e muito desprestigiado e ainda deixa Carmem Lúcia acumulando funções – STF e presidência da República.

Muita gente acha um troço desses temeroso, mas não creio que Carmem Lúcia terá tempo para fazer alguma besteira nesse interinato.

O que resta de concreto é que Lula continua resistindo e Temer, caindo.

A questão não é a incompreensão pela idade mas sim a incapacidade por não conhecer

O chapeu

Estou insistentemente sendo chamado de velho.

Algumas pessoas são bastante jovens, outras, nem tanto.

À luz da ciência, estou ainda a três anos da velhice, que começa aos 70.

Mas já estou dentro do que se chama “terceira idade” que inicia-se, segundo sei lá quem, aos 60.

Já tenho direito, portanto, a furar filas em bancos e a ser atendido preferencialmente em hospitais e postos de saúde.

Não sei se isso é exatamente justo, pensando-se nas pessoas mais jovens que muitas vezes passam horas e mais horas em filas descomunais.

Não me vexa essa história de ser compreendido como “um velho”, pois entendo perfeitamente o que essa gente quer dizer: eles/elas ficam irritados/das quando, por exemplo, eu contesto alguns de seus posicionamentos.

Não entendo, porém, que eles/as queiram me colocar numa espécie de quarentena ou me dar um “passa menino” ou melhor, um “passa velhote”.

Creio que a coisa é de outra natureza.

É falta de argumento mesmo.

Uma espécie de reação à própria incompetência e ignorância; em não ter como contra argumentar quando contestados.

Nada disso, porém, é desculpável, mas é explicitamente compreensível.

Longe de mim não entender tamanha estupidez.

Há também outra questão a ser posta, mas necessariamente antes de postá-la devo lembrar como entendo diferente a Moral da Ética.

Esse é entendimento meu, com o qual boa parte dos filósofos não concorda.

Moral vem a ser aquilo que eu defino (numa atitude unilateral) como certo ou como errado.

Por exemplo: há alguns anos mulheres não “podiam” sair às ruas à noite por que “era feio”.

Ao contrário, nós, os homens, podíamos.

Alguém conseguiria explicar, que não pela ótica moral, a razão desse tipo de discriminação?

Já a Ética , entendo eu também, diz respeito a valores, quer sejam aqueles acordados em cartas, como por exemplo, em constituições, quer sejam aqueles ancorados nos uso e nos costumes de uma dada sociedade, mais propriamente, nos pactos sociais.

Portanto, o que permeia todo esse bangue-bangue que ora se vê pelo país não passa pela Ética, como querem fazer ver algumas pessoas, como, por exemplo, na caso do julgamento do HC de ontem do Lula, mas sim pelas questões morais: “Lula é ladrão” / “Lula é um santo, apenas comparável a Deus”.

Se disso irá resultar uma luta fratricida (entre o Bem e o Mal), como alguns estão a prever, é coisa para se ver, mas, creio, muito pouco provável.

O certo é que o mundo sempre se dividiu entre o novo (o jovem) e o antigo (o velho).

A questão é descobrir quem são os jovens e quem são os velhos dessa história milenar.

Fugindo do assunto, segue, em nota, o texto “Medo e hipocrisia minam combate às fake news”, discussão relevante – embora aqui no caso provincianos [1]  – e um texto do jornal El País  [2] .

Notas

[1] “Medo e hipocrisia minam combate às fake news”

[Não é mais novidade para ninguém que a guerra contra as notícias falsas se converteu na principal preocupação do meio jornalístico. Em todas as partes, surgem iniciativas para checagem de dados e para desmentir declarações e números falsos. Pela primeira vez em muito tempo, a discussão deixou de ser um novo modelo de negócio ou um revolucionário software, e os profissionais e as organizações passaram a debater rigor na apuração, verificação de versões e técnicas para qualificarem suas notícias. Por conta disso, cheguei a dizer que as fake news não eram uma notícia tão ruim para o jornalismo, pois nos obrigaram a pensar nossas próprias práticas. Mas passados poucos meses desse diagnóstico, vejo que o combate às notícias falsas corre riscos sérios e eles vêm justamente de quem menos se esperaria, aqueles que declararam guerra às fake news. Dois fatores primordiais contribuem para isso: alguma hesitação em enfrentar o problema e doses generosas de hipocrisia e marketing a envolver certas iniciativas.

Levantamento recente do Duke Reporter’s Lab mapeou 149 empreendimentos de checagem de dados no planeta. Mais de 70% deles estão na América do Norte e na Europa, e só os Estados Unidos contam com 47 projetos do tipo. O Brasil é o segundo país no mundo com mais checadores: 8 iniciativas entre as 15 detectadas na América do Sul. Essa posição privilegiada pode ser resultado de diversos fatores que vão do senso de oportunidade comercial de seus líderes à preocupação genuína sobre a crescente influência ilegítima de bots espalhadores de notícias falsas no debate público. No ano passado, uma pesquisa da GlobeScan já apontava o Brasil como o país mais preocupado com as fake news. O cenário se deteriorou ainda mais nos últimos meses, a ponto de a tradicional pesquisa da Edelman sobre confiança apontar que 75% dos brasileiros temem que as fake news sejam usadas como “armas”. Em um ano, a confiança na mídia local caiu 5 pontos, conforme o estudo, e quase metade dos ouvidos disse não saber em que empresas do setor confiar. Dos 28 países pesquisados, a mídia está em território de desconfiança em 22.

Receio e timidez

Reagir a uma paisagem hostil como esta é necessário e urgente. Iniciativas como Aos Fatos e Lupa têm se mostrado cada vez mais visíveis à medida que oferecem ao público os resultados de suas checagens. É um trabalho importante, útil e procurado, criando terreno fértil para iniciativas regionais, como a recente campanha de financiamento coletivo para a implantação do Filtro, no Rio Grande do Sul. A exemplo de outras tantas, é um projeto bem-intencionado, com profissionais comprometidos e com nítido interesse público – fazer verificações durante a campanha eleitoral – mas sem base financeira que venha a sustentá-la de forma perene. Essa vulnerabilidade atinge a medula do projeto, pois é determinante para sua criação. Se os recursos projetados não forem arrecadados, o Filtro pode simplesmente não funcionar.

No estado vizinho, outra boa iniciativa surgiu no grupo NSC, que assumiu as operações da RBS em Santa Catarina. O Prova Real se explica como “uma iniciativa de fact-checking e debunking”, o que significa que verifica fatos e faz desmentidos, adotando “metodologia certificada para comparar os ditos com os fatos e classificar quanto ao nível de veracidade”. Segundo a página especialmente criada para o projeto (bastante didática!), “o objetivo é promover a informação correta, e não criar rótulos ou manchar reputações. O Prova Real checa o grau de veracidade de declarações públicas e publicadas, notícias falsas e imagens. Também checa o cumprimento de leis e contratos”. A equipe de jornalistas responsável pelas verificações foi treinada pela Agência Lupa, conta com manual próprio e a iniciativa vai abastecer veículos impressos, online, de rádio e de TV do Grupo NSC, o que é bastante promissor.

Apesar desses esforços, dois detalhes fragilizam a iniciativa, a meu ver. Os conteúdos checados são classificados conforme quatro etiquetas: Exato, Não é Bem Assim, É Chute, Não Fecha. Perceba que o Prova Real não carimba que uma notícia é falsa ou mentirosa, por exemplo. Não se trata apenas de nomenclatura. Um projeto que assume a função de desmentir ou desmascarar dados ou declarações não pode medir palavras quando a informação não condiz com o que foi verificado. Afirmar que um conteúdo é falso é necessário para, diante do público, separar o joio do trigo, e o Prova Real não faz isso, impedido pelas próprias etiquetas que criou e segue.

O serviço de checagem do Washington Post tem uma escala de um a quatro pinóquios para classificar o grau de falsidade dos conteúdos!

Outro fator que reduz o ímpeto da iniciativa é que, ao final das checagens, o Prova Real reproduz o contraponto de quem foi checado. Assim, a última palavra não fica com a equipe checadora, mas com a fonte cuja declaração foi questionada. Foi assim quando o projeto foi apurar fala do governador Eduardo Pinho Moreira sobre número de tornozeleiras eletrônicas em Santa Catarina. Após verificar que a informação “não fechava” – era falsa, portanto! -, o Prova Real publicou no final da checagem “o que diz o governo do estado”. Resumo da ópera: mesmo tendo falado coisas distantes da verdade, o governador ficou com a palavra final. Isso se deu em outras tantas oportunidades, e os veículos da NSC simplesmente abriram mão de atuarem como agentes de certificação das informações corretas, respaldados por suas próprias equipes de checagem.

A meu ver, o Prova Real incorre em dois erros: não afirma com todas as letras que um conteúdo é falso e renuncia à condição de agente certificador da informação. Com isso, expõe desnecessariamente seus profissionais, e não necessariamente separa o que é real e o que não é…

Hesitações como essa reduzem o poder de fogo dos fact-checking. Mas não só.

Em 27 de março, o concorrente Notícias do Dia publicou o editorial “Informação confiável” em que reafirmava seu “pacto” com leitores e assinantes “como antídoto para a propagação das fake news”. Na mesma edição, passou a publicar uma série de três reportagens sobre motivação e prejuízos com as notícias falsas, sobre o papel dos usuários nas redes sociais, e com dicas de como identificar material impostor e como verificar sua autenticidade.

Mostrar como as engrenagens da desinformação funcionam é muito importante e esse gesto alimenta o que os especialistas chamam de media literacy, a educação para um consumo crítico da mídia. Mas, convenhamos, não basta produzir reportagens e escrever editoriais para reduzir as notícias falsas. Se os próprios veículos convencionais contribuem para espalhar mentiras – a exemplo da Folha de S.Paulo no caso Marielle Franco, criticado pela ombudsman do jornal), jornalistas e meios precisam fazer mais para combater as fake news. As redações têm as condições objetivas para evitar publicações falsas e para aprimorar a qualidade de suas notícias à medida que adotam procedimentos mais rigorosos e cuidadosos.

Só piora!

Se estamos mesmo em guerra contra as notícias falsas, hesitação, receio, medo ou bom-mocismo não vão nos ajudar a vencê-las. As dificuldades são muitas para quem quer soterrar informações errôneas e fazer prevalecer as que têm correspondência com fatos e dados.

Notem que a própria noção de fake news é complicada, e vem sendo revista por quem se dedica a pensar sobre o assunto. Claire Wardle, do First Draft, critica a expressão, dizendo que ela não dá conta da variedade e complexidade do fenômeno: não são apenas notícias falsas, há paródias e outras formas de manipulação. Por isso, ela aponta para o que chama de “ecossistema de desinformação”.

O jornalista britânico James Ball, autor de “Post-Truth: how bullshit conquered the world” (Pós-verdade: como a besteira conquistou o mundo), evita a expressão “fake news” e adota “bullshit”, que poderíamos traduzir como besteira, bobagem, e que sinaliza para algo além das mentiras e boatos. Segundo Ball, não são apenas os políticos a espalharem o lixo por aí. Velha mídia, nova mídia, empresas especializadas em produzir material enganoso, redes sociais, plataformas digitais, pessoas comuns, todos ajudam a borrar as fronteiras entre verdadeiro e falso. E serviços de checagem de dados, sozinhos, não solucionarão a questão.

Em regiões mais organizadas, normativas estão sendo pensadas. No início de março, a Comissão Europeia publicou um relatório que encomendou a especialistas para orientar seus países sobre o tema. Não se trata apenas de um diagnóstico do problema, mas também de princípios para ajudar os formuladores de políticas a propor leis e incentivar boas práticas.

Embora haja iniciativas que até automatizem as checagens, o cenário bem distópico. Em levantamento de Aos Fatos, leitores até desconfiam das notícias recebidas por WhatsApp, mas não verificam suas autenticidades, e as coisas só tendem a piorar, já que têm surgido técnicas muitíssimo sofisticadas para manipular áudios e vídeos. A situação é tão complicada que até mesmo o Tribunal Superior Eleitoral – preocupado com as fake news nas eleições deste ano – embarcou em notícia falsa para justificar que está preocupado em combater as tais notícias falsas, conforme conta o jornalista Leonardo Sakamoto.

1º de abril

No momento em que escrevo essas linhas, esbarro numa peça publicitária da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) que mais parece deboche. “Verdade seja dita: a mentira não merece nem mais um dia”, brada retumbante o anúncio que continua: “Nesses tempos de tantas notícias falsas com trânsito livre pela internet, mentira deixou de ser coisa de um dia e virou companheira de todas as horas. Mas, para azar dela, continuamos aqui. Dedicados, diariamente, a estragar essa festa”…

Por alguns segundos, a ANJ esquece que seus associados também estão na internet – nas versões online dos jornais impressos – e que eles também contribuem para um ambiente de confusão informativa. Basta acessar qualquer site jornalístico e ver que, no entorno das notícias, também figuram “links recomendados”, “links patrocinados” e anúncios que emulam a linguagem jornalística. Ora, esses conteúdos são publicidades (mal) disfarçadas, que vendem soluções mágicas para problemas de saúde, que apelam para os instintos mais básicos dos leitores e que só sobrevivem se fertilizarem um ambiente de conteúdos viralizantes. Para sintetizar: as notícias falsas e suas variantes de desinformação contaminaram tanto o ecossistema informativo que são estruturantes de seu modelo de negócio.

Neste sentido, eu vejo com muita desconfiança quando iniciativas de fact-checking ou de promoção de qualidade jornalística são patrocinadas por gigantes da tecnologia, como Facebook e Google. Faz parte do modelo de negócio dessas plataformas gerar, impulsionar e fazer circular os conteúdos com alto potencial viralizante, não importando se eles são verdadeiros, ambíguos ou falsos. Quantos mais cliques, melhor. Quanto mais reações e compartilhamentos, maior o alcance desses materiais, mais pessoas terão acessado seus conteúdos, e a grande roda estará girando, distribuindo centavos aqui e ali.

Veja o caso do projeto Credibilidade. Ele é uma coalizão de empresas jornalísticas para enfrentar o problema da queda de confiança na mídia de forma prática, fomentando discussões nas organizações e formulando práticas e ferramentas que possam ser usadas por seus membros. Capítulo brasileiro do projeto Trust, iniciado na Universidade de Santa Clara nos Estados Unidos, o Credibilidade tem entre seus parceiros nomes de peso como a Folha de S.Paulo e O Globo, e conta com patrocínio de ninguém menos que… Google! É muito importante que os veículos brasileiros estejam juntos e empenhados em aperfeiçoar suas práticas, produtos e serviços, mas por que tal iniciativa precisa ser dependente de recursos de uma corporação de tecnologia que vive à base do tráfego de dados? Por que jornais, revistas e demais meios não investem seu próprio capital para redesenhar seus procedimentos, já que os resultados de tais mudanças irão incidir diretamente em seus negócios? É como se uma rede de supermercados topasse financiar um plano de saúde para as vacas dos pecuaristas de uma região. Com a medida, o leite e o queijo ficariam melhores, mas os criadores conseguiriam vender seus produtos para outros supermercados além da rede patrocinadora?

Trust e seu capítulo brasileiro Credibilidade não são os únicos a padecerem desse mal. O Cross Check, iniciativa da First Draft, que fez um ótimo trabalho de checagem nas eleições francesas do ano passado, é patrocinado pelo Google News Lab! Aliás, o projeto está sendo gestado no Brasil, mas enfrenta dificuldades internas para se impor…

Mas é claro que, no livre mercado, Google pode investir seus milhões onde bem quiser e talvez haja até justificativas de sua responsabilidade pela sanidade do meio digital. Mas por que empresas de mídia não colocam suas fichas nesse jogo também? E mais grave: ao aceitarem uma ajudinha dessas empresas de tecnologia, não ficam dependentes de sua boa vontade de financiamento? Reféns do capital high-tech, conseguirão os veículos de mídia ter independência editorial para cobrir esse setor com rigor e compromisso? Por acaso, você já viu alguma checagem de dados desses veículos sobre Google ou Facebook?

Sejamos francos: plataformas como Facebook e Google não querem acabar com as fake news. Se quisessem, estimulariam conteúdos de qualidade em detrimento de falsidades, mas não fazem isso porque fake news e bizarrices são mais virais que matérias jornalísticas ou informativas. Se quisessem acabar com as fake news, as plataformas restringiriam a dispersão indiscriminada e mudariam seus próprios modelos de negócio, abrindo mão das vantagens financeiras vindas da publicidade mentirosa, da confusão, das manipulações e apelações. Em outras palavras: elas se beneficiam com as besteiras, com a desinformação.

A mesma hipocrisia que sustenta a campanha da ANJ embasa os movimentos das gigantes de tecnologia na cruzada contra as fake news. Não passa de discurso, de estratégia de marketing, de slogans e verbas dispendidas para serem apresentadas em seus balanços sociais. É investimento em imagem tão somente.

A declarada guerra contra as notícias falsas exige mais de profissionais e organizações jornalísticas. Se quiserem mesmo se contrapor ao ecossistema de desinformação, precisarão capacitar equipes, aprimorar procedimentos de apuração, contratar jornalistas especializados, e desenvolver ferramentas e sistemas próprios para desmentir e desmascarar falsidades. Precisarão assumir o protagonismo de certificação dos fatos, refinando seus critérios editoriais e investindo maciçamente em coberturas de qualidade. Não poderão terceirizar suas funções mais básicas de verificação e checagem. Terão que afastar o medo, o marketing e a hipocrisia, e eleger a coragem e o compromisso com o público para produzir jornalismo de qualidade nítida e cristalina. É só a credibilidade do sistema jornalístico que está em jogo. Só.

É preciso arregaçar as mangas e avançar para além do que já foi oferecido. Sim, ontem, foi o dia da mentira, e embora isso desagrade à ANJ, está longe de ser o último.]

Por Rogério Christofoletti em 05/04/2018 na edição 981 do Observatório da Imprensa, publicado originalmente pelo objETHOS.

Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.

 

[2] A arte de manipular multidões – Técnicas para mentir e controlar as opiniões se aperfeiçoaram na era da pós-verdade

https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/22/opinion/1503395946_889112.html?id_externo_rsoc=FB_CC

 

De jornais e doenças, um longo passeio pela vida

Nossa euUm sujeito está insistindo para que eu “monte” um jornal para “agitar” o município de Cotia, na Grande São Paulo.

Ele e eu somos aqui.

Ele é mais velho que eu (não sei exatamente qual a sua idade) e nunca daqui saiu.

Eu já bati um bocado de pernas e estou por aqui provisoriamente (até quando eu não sei – espero que a estada seja breve).

Disse-lhe que meu negócio não é mais “fazer” jornal, pois há muito migrei para outras plataformas (sites e blog, por exemplo) e não mais me apetece fazer esse tipo de jornalismo (que eu conheço bastante bem), o que fatalmente me levaria a depender de prefeitos e de vereadores, gente pelas quais nutro o mais absoluto horror e desprezo.

Poderia eu brincar/provocá-lo dizendo que toparia a empreitada se ele a bancasse (ele tem bastante dinheiro para tanto, embora seja um cara razoavelmente pão-duro).

Mas jamais lhe diria um despropósito desse quilate, pois além dele ser meu amigo, trata-se de um sujeito bastante respeitável e respeitado.

Mas não me entendam mal.

A pessoa em questão não tem intenções de tirar proveito da ideia, ganhar dinheiro ou influência.

Tenho certeza! Longe disso!

Ele está mesmo a fim de “agitar” Cotia; ele que sempre me pareceu ligeiramente (me permitam dizer dessa forma) um anarquista.

“O infarto lhe pega, doutor” [1]

Enfim, trata-se de um sujeito bem-intencionado (embora se diga que de boas intenções o inferno esteja cheio – mas não é absolutamente o seu caso), como muita gente também bem-intencionada tenta ser cordata e afável comigo, no pós-infarto, dizendo que eu vou me recuperar bem (já estaria, segundo esses observadores informais; o que não é exatamente a opinião de médicos e médicas que me atendem) e que vou acabar correndo, fazendo trilhas mais pesadas e difíceis e até subindo e descendo morros e montanhas.

Esse tipo de incentivo vem de forma mais sofisticada, com citações de outras pessoas que tiveram as mesmas sequelas que eu e, em alguns casos, até maiores, e se recuperaram bem, aliás, muito bem, obrigado.

Acredito em todas elas, por que não?

Mas há um pequeno probleminha nessas historietas incentivadoras e bem-intencionadas todas: os citados e/ou citadas, como exemplos, têm, todos eles e todas elas, por volta de 30 anos, talvez 33 ou 34 anos, enquanto eu estou já batendo nos meus 69 anos (daqui a pouco, em outubro).

Portanto há uma razoável diferença de idade a favor dos moços e das moças sugeridas como exemplos.

Ora, a essa altura, infartado ou não, dificilmente eu conseguiria subir ou descer montanhas, correr (coisa que eu nunca fiz) ou até mesmo me tornar um maratonista (coisa, aliás, para mim incompreensível).

Vá lá que eu ainda caminhe em média 10 quilômetros por dia e pretendo continuar a fazê-lo enquanto o coração e o restante do corpo me permitirem.

Agora sonhar com mais do que isso não é o caso, pois não faço, em absoluto, o tipo sonhador [2].

Mas ok, para as ambas as sugestões acima – jornal e plena recuperação –, valeram as boas intenções, coisa pelas quais agradeço, porém não creio.

Notas

[1] A banca do distinto: https://www.vagalume.com.br/elis-regina/a-banca-do-distinto.html

[2] Como Nossos Pais – https://www.letras.mus.br/belchior/44451/