“Documentário resgata obra e pensamento do tropicalista Rogério Duarte”

Rogerio
“Fui uma pessoa muito próspera e auspiciosa até determinada época. Depois da prisão, fui para o hospício, eu fui arrasado” – Arquivo – Rede Brasil Atual

[Há exatos 50 anos, nascia o disco-manifesto Tropicália, o marco fundador de um dos mais importantes movimentos musicais brasileiros. Para celebrar a efeméride e render uma justa homenagem, o cineasta, produtor e artista plástico José Walter Lima lançou esta semana nos cinemas o documentário Rogério Duarte, o Tropikaoslista, que dá voz ao multi-artista que é considerado mentor e um dos idealizadores do movimento tropicalista.

A arte, as lembranças, as crenças, os hobbies e as reflexões sobre a Tropicália são apresentados por meio de um longo depoimento de Rogério Duarte. Não há entrevistas com outros artistas, amigos, nem familiares. Na tela, fala apenas Duarte e imagens de arquivo dão conta do rico e conturbado universo do baiano nascido em Ubaíra.

Esse trabalho é uma tentativa de uma retomada da vanguarda artística do cinema brasileiro. Trata-se de um documentário sem as mesmices pachorrentas, cheio de entrevistas. Só quem fala é o protagonista. Nesse caso, Rogério Duarte. Ao longo desses anos, o que vemos é um deserto total no que se refere ao cinema de linguagem. Dentro desse conceito foi realizado esse filme, contando a magnitude tropical desse maravilhoso pensador, ator de muitas ações nos bastidores que contribuíram para mudar os paradigmas da cultura“, afirma o diretor José Walter Lima.

Duarte é o criador das capas dos principais discos tropicalistas, entre eles de álbuns de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Mautner, além de cartazes de filmes, como Deus e O Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e Idade da Terra, de Glauber Rocha, o anárquico grito contra a ditadura Meteorango Kid, Herói Intergaláctico, de André Luiz Oliveira, O Desafio, de Paulo Cezar Saraceni, e Cara a Cara, de Julio Bressane.

Gênio marginal

Ao sair da missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, no Rio de Janeiro, Rogério e seu irmão foram sequestrados por agentes da ditadura. A brutalidade que sofreu durante os dez dias de tortura e o período que passou na prisão transformaram para sempre a vida do artista que, depois, teve de se esconder em sua cidade natal durante muitos anos em um processo que ele chama de “inxílio”.

“Eu fui uma pessoa muito próspera e auspiciosa até uma determinada época. Depois da prisão, eu fui para o hospício, eu fui arrasado, digamos assim. Quando eu saí da prisão, eu vi a diferença: ninguém queria mais conversa comigo porque os ‘homens’ estavam atrás de mim, entende? Todos fecharam a porta. Todos. Primeiro, eu fui preso em abril e torturado, mas escapei e fiquei meio louco. Durante esse período, até o fim do ano, eu vivi uma vida de zumbi. Foi aí que ninguém queria mais me receber em lugar nenhum. Aí, eu pirei legal, né? Até que minha família me pegou e internou em São Paulo. No fim do exílio de Caetano, encontrei com ele na Bahia e disse: ‘Agora, nunca mais vou dar sopa’. Aquele charme discreto da burguesia nunca mais vai me pegar de novo”, declara Rogério no longa.

Não faltam, aliás, alfinetadas na turma que compunha o movimento tropicalista. “Há um componente político na Tropicália que foi um pouco esquecido. Se vamos falar do nosso tropicalismo, da Tropicália do Hélio [Oiticica], também do Caetano, sem dúvida nenhuma… Mas não dessa coisa que dizem da música popular que virou grife, meio colonizada e que também muito importa, mas [que] não tem a mesma contundência de protesto, de manifestação, de revolução, de transformação no nível político”, diz.

E continua: “Havia ideias tropicalistas que foram abandonadas. As próprias roupas que a gente usou na época do movimento, que o Guilherme [Araújo, então empresário de Caetano e Gil] comprava de Carnaby Street [em Londres]… A ideia inicial era figurinos feitos por Lina Bardi. Então, o Guilherme dá um jeito de ‘beatinizar’ o tropicalismo. Na medida em que o establishment reincorporou o tropicalismo e o colocou a seu serviço, eu disse ‘Estou fora’.

Em uma das metáforas mais bonitas do filme, Rogério Duarte explica sua postura marginal. “Como a gente era, assim digamos, à gauche [do francês, à esquerda] da Tropicália, eu fiz um trecho que se chama Marginália. Sou marginal porque descobri que a margem fica dentro do rio. Isso era muito mais importante porque era um paradoxo. A margem fica dentro do rio e não na margem. Mas o rio era o Rio de Janeiro.

O engajamento na programação visual da União Nacional dos Estudantes, a UNE, as agitações tropicalistas com o grupo baiano e Hélio Oiticica, seus contatos com a Bossa Nova, a profunda amizade que nutria por Glauber Rocha, a descoberta do xadrez aos 50 anos, a vida de sitiante no interior da Bahia, sua dedicação ao movimento Hare Krishna e a descoberta do câncer também são abordados no filme.

Outro destaque é a participação de dois de seus companheiros tropicalistas na homenagem feita por José Walter Lima: Caetano Veloso canta Gayana, de autoria de Rogério, e Gilberto Gil interpreta Não Tenho Medo da Vida, que compôs depois de uma conversa com o Rogério.

Apesar da linearidade que não combina muito com a obra do protagonista, Rogério Duarte, o Tropikaoslista apresenta ao público a obra e o pensamento de um gênio provocador que nem sempre teve os créditos e a atenção que mereceu. Uma pena que esta celebração tenha chegado aos cinemas só dois anos depois de sua morte, em 2016.]

Serviço

Rogério Duarte, o Tropikaoslista
Direção: José Walter Lima
Elenco: Rogério Duarte, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paquito, Carlos Rennó, Luis Caldas, Armandinho, Diogo Duarte
Distribuição: O2 Play
Ano: 2016
País: Brasil
Gênero: Documentário
Duração: 88 minutos

Por Xandra Stefanel, especial para RBA.

“O Maio de 68 e o movimento antiguerra: de Londres a Berlim”

Guerra Fria
Berlim Ocidental era a capital da guerra fria

[Na Grã-Bretanha tínhamos decidido formar uma organização chamada Campanha Solidariedade Vietname (Vietnam Solidarity Campaign, VSC). O estado-maior da VSC tinha sido convidado a enviar um representante para discursar no Congresso sobre a guerra do Vietname, que se realizaria em Berlim Ocidental e que era organizado pela Liga estudantil socialista alemã (Sozialistischer Deutscher Studentenbund, SDS). Foi decidido que eu iria como orador e que estabeleceria contacto com representantes dos movimentos do mesmo tipo que a VSC de outros países da Europa.

O movimento antiguerra crescia em todo o mundo. Personalidades democratas dos Estados Unidos começavam a preocupar-se. Enquanto o presidente Johnson e o seu governo prosseguiam a escalada, um candidato defensor da paz, o senador Eugène MacCarthy, tinha-se declarado a favor de um governo de coligação em Saigão, que incluísse a Frente de Libertação Nacional (FLN), o que teria levado ao colapso imediato da estratégia americana na Indochina. Outros senadores, como Wayne Morse e Fulbright em particular, começavam a revelar publicamente as suas apreensões. Morse declarou que esta guerra era “ilegal, imoral” e que era “uma intervenção militar totalmente injustificada”. Fulbright foi mais comedido, mas usou a sua autoridade como presidente do poderoso comité do Senado para os Negócios Estrangeiros para contestar a versão oficial do que estava a acontecer no Vietname do Sul.

Berlim Ocidental era a capital da guerra fria. Alguns anos antes, a realização nesta cidade de um Congresso pelo Vietname seria impensável. No entanto, os acontecimentos de 1967 tinham modificado algumas atitudes. A esmagadora maioria da população era fortemente proamericana, mas uma parte crescente da população tinha rompido com a ideologia dominante. Em 1967, tinha sido organizada pela SDS em Berlim Ocidental uma manifestação contra a visita do xá do Irão, chefe de um regime torcionário que assentava numa polícia secreta, a SAVAK, cujos chefes se gabavam de constituir a rede de repressão mais eficaz desde o desaparecimento da Gestapo.

Oposição à guerra

A polícia recebeu ordem para limpar as ruas e difundiu uma mensagem a dizer que “dois polícias tinham sido agredidos”. Era uma mentira que conduzia inevitavelmente à violência. Um membro da SDS, Benne Ohnesborg, recebeu golpes terríveis e caiu, semi-inconsciente, no pavimento. Enquanto jazia, chegou outro polícia e matou-o a tiro. O presidente da câmara de Berlim Ocidental, um certo Sr. Alberts, ficou profundamente chocado pelo acontecimento e foi ouvir a falsa mensagem de rádio. Deu a conhecer publicamente o seu desacordo, o que era um suicídio político. Foi substituído por um social-democrata insípido chamado Schultz, mas toda a gente em Berlim sabia que o poder estava, de facto, nas mãos do senador Neubauer, responsável pela Administração Interna, que a SDS acusava de ser um “nacional-socialista”. De um autoritarismo extremo, ele estava na extrema-direita do partido social-democrata alemão (SPD).

Foi isto que soube quando cheguei a Berlim em fevereiro para falar no Congresso1.

Fui diretamente para o Clube republicano onde conheci os dirigentes berlinenses da SDS, que me informaram da situação local. A administração social-democrata Schultz-Neubauer proibiu a manifestação prevista, usando o argumento da ameaça à ordem pública. O plano era marchar sobre o setor da ocupação americana e manifestar a nossa oposição à guerra. Em resposta, Schultz tinha declarado que a sua polícia “limparia as ruas com uma vassoura de aço”. A tensão estava ao rubro, enquanto se esperava pela decisão a tomar pelo estado-maior da SDS. Iam desafiar a proibição ou não? Se o fizessem, não havia dúvida que se tornaria uma situação violenta e sangrenta. Os estudantes estavam em cólera. A ferida provocada pelo assassinato de Ohnesborg ainda estava aberta e muitos falavam de vingança. Da minha parte, não tinha percebido que uma manifestação estava planeada e ainda menos que tinha sido proibida.

Proibição

Enquanto escutava o debate – que me era traduzido em simultâneo, por Elsa, favorável à anulação da proibição e que não estava nada inclinada a traduzir de forma entusiasta as posições contrárias; estes últimos aperceberam-se disso e juntaram outra pessoa, partidária do seu ponto de vista – os dirigentes da SDS entraram e apresentaram-se. Eram três: Rudi Dutschke, que tinha deixado Berlim Leste e estudava teologia; Gaston Salvatori, sobrinho do chileno Salvador Allende, estudante em Berlim; e Karl Dietrich Wolf, de Frankfurt.

Levaram-me à parte, para uma sala ao lado, para me explicar a gravidade da situação. Um debate clandestino, que eu desconhecia, abriu-se então. Seria necessário apelar para os tribunais de Berlim Ocidental para pôr em causa a proibição ou então seria considerada como uma capitulação face às instituições que se queria derrubar? Já me tinha recusado a ser arrastado para esse debate da proibição, declarando que para mim era uma questão puramente tática que só poderia ser decidida pelo próprio Congresso. Não houve contestação neste ponto, mas perguntaram-me qual seria a minha proposta. Expliquei gentilmente que não diria nada, dada a minha ignorância de muitas coisas sobre a situação em Berlim Ocidental e que essa seria também, sem dúvida, a atitude da maior parte daqueles que vieram de fora.

Quanto ao recurso aos tribunais, não tinha dúvidas: era preciso um advogado que avançasse um processo contra a administração local. Eles trocaram olhares e sorrisos. Dutschke concordou plenamente comigo. Os outros não disseram nada. No dia seguinte, na abertura do Congresso, foi anunciado que se apresentava um apelo contra a decisão do presidente da Câmara. Não houve quase nenhum murmúrio de protesto na assistência, extremamente numerosa, para minha alegria e surpresa. Havia milhares e milhares de estudantes no interior e no exterior da Universidade livre de Berlim, onde estávamos em sessão.

Uma nova crise eclodiu no conselho municipal. Neubauer disse ao chefe da polícia: “Não importa se houver algumas mortes, é preciso partir um milhar de cabeças”. O chefe da polícia recusou estas ordens e demitiu-se. O seu suplente, um outro social-democrata de direita, substituí-o e declarou que “os atingiria tão duramente que eles iam a correr até Moscovo”. Foi com estes métodos que a social-democracia se preparava para defender a liberdade e a democracia.

SDS, força em crescimento

O nascimento da SDS marcou um ponto de viragem na história da Alemanha. Tradicionalmente, os estudantes apoiavam a direita e os dois principais partidos políticos da Alemanha do pósguerra – a CDU/CSU e o SPD, cujos líderes tinham sido escolhidos pelos Estados Unidos – não ficaram descontentes. A geração nascida durante a guerra ou logo após ela, no entanto, era muito diferente da anterior. Após a guerra, não tinha havido uma verdadeira purga dos fascistas: o novo inimigo era já visível e as velhas inimizades deviam ser ultrapassadas para o enfrentar.

A Alemanha dos anos 50 tinha sido, na aparência, aprovadora e passiva. Mas a memória da guerra não podia ser tão facilmente apagada pelas gerações que coexistiam na República Federal. Nos anos 60, os estudantes dos campus sabiam perfeitamente que os seus pais não tinham conseguido resistir ao ascenso do fascismo. A chegada de Hitler ao poder varreu todos os vestígios da democracia e destruiu os dois maiores partidos operários da Europa, o que deixou a marca política e psicológica nas crianças dos anos 50. Mesmo com o silêncio absoluto que prevalecia nesta questão, eles sabiam profundamente que algo estava errado.

A guerra do Vietname serviu de catalisador. “Somos uma minoria ativa!”, cantavam os militantes da SDS nos comícios e nas manifestações. Foi assim que gritaram a sua desconfiança face a um passado presente no coração de cada família: mais vale uma minoria ativa do que uma maioria passiva, cega perante os crimes cometidos todos os dias. Essa era a mensagem da SDS alemã que, nos anos seguintes, seria retomada por alguns dos seus partidários, num caminho desesperado e autodestrutivo. A “minoria ativa” ia ser, posteriormente, interpretada como a justificação para a “guerrilha urbana” nas cidades alemãs, com consequências trágicas.

A Ofensiva do Tet

Foi no segundo dia que falei no Congresso, sobre a guerra e a solidariedade. A FLN tinha lançado uma nova ofensiva militar no Vietname do Sul para marcar o novo ano vietnamita – o Tet. A ofensiva do Tet tinha começado quando nos preparávamos para começar o Congresso. Cada nova vitória foi anunciada à assembleia no meio de aplausos cada vez mais fortes. Os vietnamitas estavam a caminho de demonstrar, da maneira mais concreta que se pode imaginar, que era possível lutar e vencer.

Foi um elemento decisivo na formação da consciência da nossa geração. Pensámos que a mudança não só era necessária, como era possível. O tema da solidariedade internacional parecia mais vital que nunca e eu ataquei violentamente a cimeira de Glassboro nos Estados Unidos, onde Kossyguine2 e Johnson tinham brindado juntos, enquanto o Vietname era devastado pelos bombardeiros americanos. Declarei que era uma obscenidade. Os discursos, na maior parte, foram aplaudidos e interrompidos aos gritos de “Ho-Ho-Ho Chi Minh!”, que percorreu toda a Europa nesse ano . (…)

Depois Rudi Dutschke levantou-se e fez uma forte intervenção ligando a luta contra os Estados Unidos no Vietname com as batalhas a travar contra a ordem burguesa na Europa. Ele falou sobre estender as bases do movimento estudantil por uma “longa marcha através das instituições”, uma expressão muito utilizada e discutida na SDS. A teoria de Dutschke deriva largamente da de Herbert Marcuse, o veterano filósofo da Escola de Frankfurt de antes da guerra, que tinha uma grande influência entre os estudantes alemães. Esta “longa marcha” não significava “minar por dentro”, mas ganhar experiência em todas as frentes – educação, computadores, comunicação de massas, organização da produção – ao mesmo tempo que se preservava a própria consciência política.

O objetivo da “longa marcha” era construir contrainstituições. Zonas libertadas dentro da sociedade burguesa que seriam o equivalente das zonas libertadas pelos partidários de Mao, na China, durante a longa guerra civil conduzida pelos comunistas chineses. A universidade era um lugar decisivo nessa perspetiva, porque era lá que novos quadros podiam ser educados e preparados para substituir os quadros da classe dominante. (…)

Um dos momentos altos do Congresso foi a subida à tribuna de dois jovens americanos negros, ambos veteranos do Vietname. Mesmo antes de tomarem a palavra, receberam uma ovação da sala de pé. Depois, descreveram brevemente a guerra, explicando a utilização dos negros como carne para canhão. Disseram-nos que a América negra estava à beira de grandes ruturas e, dando os braços, entoaram um canto que nunca tínhamos ouvido, apesar de ser muito conhecida nos Estados Unidos:

“Não quero ir para o Vietname,
Porque o Vietname é onde eu estou,
Diabo não, eu não irei!
Diabo não! Eu não irei”

Os aplausos duraram vários minutos, enquanto os dois veteranos saudavam com o punho erguido.

Todas as pessoas esperavam a decisão do tribunal em relação à manifestação. Eu estava seguro que o juiz tinha recebido informações sobre o estado de espírito e o grande número de participantes no Congresso. O poeta austro-alemão Erich Fried estava a falar quando foi interrompido pela presidência: o tribunal autorizou a manifestação na condição de ela não se aproximar dos soldados ou dos quartéis americanos da cidade. Era uma vitória que foi acolhida como tal, mas nesse momento Rudi Dutschke pediu a palavra e subiu à tribuna. Estava satisfeito com o resultado, mas queria contestar a restrição. Era intolerável que não pudéssemos tentar conversar com soldados americanos. A sua voz ergueu-se:

Mas, camaradas, é precisamente isso que devemos fazer. Se o inimigo define as regras do jogo e nós aceitamos, isso significa, como Herbert Marcuse nos disse muitas vezes, que agimos aceitando as suas regras”.

Desta vez, novamente, o Congresso dividiu-se. Então Fried, ele próprio veterano antinazi, que teve de fugir da Áustria e procurar refúgio em Londres, escreveu uma mensagem para Dutschke: “A nossa vitória é que conseguimos a manifestação. Nenhuma provocação, por favor! Eu disse e salvei a minha alma”. Dutschke parou e leu essa mensagem para si próprio. Depois de uma pausa, informou a assembleia do seu conteúdo e admitiu que a sua própria resposta estava errada. Toda a gente suspirou de alívio.

Manifestámo-nos à tarde. Foi um espetáculo a que Berlim não assistia há mais de trinta anos. 15.000 pessoas, sobretudo jovens, um mar de bandeiras vermelhas e retratos gigantes de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, que foram brutalmente assassinados nessa mesma cidade em 1919, sob as ordens dos antepassados políticos de Schultz e Neubauer. Havia também grandes cartazes de Ho Chi Minh e Che Guevara, cuja imagem dominava o nosso cortejo. Descemos o Kurfurstendam marchando e correndo, terminando com uma enorme concentração, em que alguns de nós foram de novo convidados a falar. Levantámos as nossas bandeiras mesmo no coração da Europa dominada pelos americanos.

Rudi Dutschke

A imprensa reacionária de Axel Springer tinha advertido os berlinenses de que haveria violência e sangue, que Dutschke era “o inimigo número um” e que os cidadãos deviam preparar-se para defender Berlim. Mas na realidade a manifestação foi pacífica.

De todas as palavras de ordem gritadas naquele dia, a que parecia mais próxima da realidade era: “A FLN vencerá!”. Quanto à menos provável, havia que escolher, mas “Todo o poder aos sovietes!” parecia a mais distante das probabilidades numa Berlim em que Neubauer tinha uma grande base. (Anos mais tarde ele foi condenado por corrupção em larga escala, envolvido num caso criminal e perdeu o emprego, mas continuou a defender o seu modo autoritário de administrar a cidade). Festejámos o sucesso da manifestação e eu convidei os dirigentes da SDS a enviar ativistas à nossa manifestação no mês seguinte, em Londres.

Mais tarde, numa noite em abril de 1968, recebi um telefonema de Berlim. Era uma amiga da SDS e, durante alguns minutos, ela foi incapaz de falar, porque soluçava sem conseguir controlar-se. Paralisado pela inquietação, pedi-lhe que explicasse o que tinha acontecido. Um fanático de extrema-direita tinha atirado sobre Rudi Dutschke. Ainda está vivo? O ferimento era grave? Onde estava? Estava nos cuidados intensivos, inconsciente. A bala tinha entrado na cabeça e a operação era iminente, mas as possibilidades de sobreviver eram muito pequenas3. A SDS apelou a manifestações em toda a Alemanha e estava a informar os seus amigos em toda a Europa.

Naquela noite, o telefone não parou de tocar. Esta tentativa de assassinato chocou-nos a todos.]

Artigo de Tariq Ali, publicado em contretemps.eu (link is external)4. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Notas

1 Este Congresso teve lugar a 17 e 18 de fevereiro de 1968.

2 Alexis Nikolayevich Kossyguine, soldado do Exército Vermelho em 1919, ingressou no PCUS em 1927, tornando-se funcionário do partido, após as grandes purgas estalinistas em 1938, depois tornou-se membro do Politburo em 1948. Após a queda de Khrushchev em novembro de 1964, ele tornou-se primeiro-ministro soviético no que inicialmente era uma troika com Leonid Brezhnev como secretário-geral do PCUS e Anastase Mikoyan (e depois Nikolai Podgornyi) como presidente. É nessa condição que ele representa a URSS na cimeira de Glassboro nos Estados Unidos. Depois de adoecer, Kossyguine foi destituído do cargo em outubro de 1980 e morreu algumas semanas depois.

3 Rudi Dutschke nunca recuperou completamente deste atentado, após o qual ele se retirou para a Grã-Bretanha, de onde foi expulso, e depois para a Dinamarca, onde morreu em 1979. A nova esquerda alemã perdia assim um dirigente e teórico promissor que, por causa da sua experiência na Alemanha Oriental, poderia construir uma ponte entre as duas alemanhas. Em Paris, no Quartier Latin, por iniciativa da Juventude Comunista Revolucionária (JCR) entre outros, 3.000 manifestantes expressaram a sua solidariedade com a SDS após o ataque contra Rudi Dutschke.

4 Em nota de entrada, o site contretemps.eu(link is external) refere: Tariq Ali, um dos animadores da New Left Review; foi um dos fundadores do Grupo Marxista Internacional (IMG, secção britânica da IVª Internacional) e um dos porta-vozes da nova esquerda britânica nos anos 60 e 70.

Este artigo é um extrato do seu livro Street Fighting Years (“Anos de luta de rua”, título inspirado numa canção de Mick Jagger do verão de 1968: “Street Fighting Man”), que conta o seu percurso de jovem revoltado, nascido no Paquistão, que se tornou militante revolucionário. Este texto apareceu em francês pela primeira vez em Imprecor nº 267 de 6 de junho de 1988.

Termos relacionados 1968 – 50 anos depoisCultura

Outras leituras

Un mundo sin bancos es posible – El Libertario

Tarsila está no MOMA sem a sutileza nem o equilíbrio que merece – El País

Nos 70 anos da Declaração Universal, direitos humanos sofrem ‘brutal ataque’ – Rede Brasil Atual

O Maio de 68 e o movimento antiguerra: de Londres a Berlim – Esquerda Net

Os três mandamentos da lei de Deus

Deus
Blog Espírita Canoro – (imagem alterada)

Deus veio me visitar ontem.

Isso mesmo. Em carne e osso, se é possível se referir a Deus dessa forma.

Eu estava na sala, sentado no sofá, tentando assistir TV.

O Senhor sentou-se ao meu lado.

– E aí, Marcião? Muita gente me chama assim, por que Ele não chamaria?

Tentei não acreditar. Me belisquei. Me dei tapa na cara. Gritei

– Não adianta,  disse-me Ele. Relaxa cara! Isto é só entre nós.

– Então o que o Senhor quer? – perguntei preocupado e assustado.

– Está surpreso? Não se preocupe. Vou lhe ditar os meus mandamentos – revelou.

– Mas o Senhor já não tinha feito isso antes? – ponderei.

– Aquilo foi uma experiência. Tanto que escolhi Moisés, o mais burro dos judeus – disse o Senhor.

– Judeu burro não existe Senhor – ponderei de novo.

– Deixe de ser puxa-saco – reagiu.

– Os caminhos de Deus são retos – pensei.

– É isso mesmo. Mas nem pense em me entender. Cuide da sua vidinha que já terá feito um grande negócio – avisou.

– Vidinha! – reagi.  O Senhor vem aqui e me escolhe para ditar as suas leis e chama a minha vida de vidinha! – reclamei.

– Preste atenção, idiota! Primeiro eu não vim aqui e o escolhi. Eu o escolhi e depois vim aqui. E não vim aqui ditar lei nenhuma. Vim ditar os meus mandamentos. Eu posso e Eu mando. Deu pra entender? – esbravejou.

– Tá bom, não precisa se irritar. Mas podemos conversar um pouco antes. Gostaria de saber algumas coisas – solicitei inseguro.

– Vá em frente. Tenho todo o tempo do mundo. Nunca se esqueça de que Eu sou o Senhor do tempo – esclareceu mais uma vez.

– Sim, Senhor, doutor… – brinquei provocativo.

– Olha o respeito. Na sua terra chamar alguém de doutor não é exatamente um elogio – disse, fuzilando-me com os olhos.

– Desculpe – roguei-lhe.

– Então vamos, pergunte – falou, impaciente.

– Onde o Senhor esteve estes anos todos depois que ditou as le… os mandamentos para Moises? Isso faz tempo pra cacete! – gaguejei.

– Eu não ditei coisa alguma. Eu escrevi numa pedra. Nunca se esqueça de que Eu sou o Senhor de tudo o que é sólido. Você não pensa não? – irritou-se de novo.

– E como eu iria ditar alguma coisa se o sujeito era analfabeto? – disse mais irritado ainda.

Compreendi o quanto Deus é sábio.

– E não faz tempo pra cacete coisa alguma. Foi agorinha mesmo – disse ainda bravo.

– Mas dizem que isso foi a sete mil, oito mil anos! – me admirei.

– Mas o que é o tempo para mim, Marcião? Nada! O tempo não existe. Eu sou o Senhor do tempo e posso dispor dele da forma que Eu quiser – disse mais compreensivo,

– Posso ser franco com o Senhor? – perguntei baixinho.

– Vá em frente – estimulou.

– Mas que merda é essa que o Senhor fez? Um mundo miserável. Cheio de gente pobre, doente, passando fome. Guerras. Futricas. Roubos… – açulei, destemido.

– Ah, quer dizer que sou o responsável por essa merda toda? – me interrompeu.

– Deixo dois caras pelados no Paraíso, debaixo de uma árvore cheia de frutos e uma cobra para eles brincarem, eles se enrolam todo e Eu é que sou o culpado? – esbravejou.

– Tá certo. O Senhor tem razão. Mas não poderia ter criado mais alguma coisinha. As roupas? Um automóvel? – ponderei contrito.

– Eu estava com pressa. Queria sair de férias. Fui dar uma voltinha. Uma desopilada. Uma espairecida. Ou você pensa que fazer o universo todo do nada é trabalho fácil? – reclamou, indignado.

– Concordo. Mas só não entendo porque demorou tanto tempo para voltar. Que férias longas – apontei com cautela.

– Já lhe disse que o tempo não existe. Pode até existir para você, que, aliás, nem sabe o que fazer com ele. Mas pra mim… – não concluiu acusador.

Achou que eu tivesse entendido, mas não entendi nada.

– Mais alguma coisa? – perguntou irônico.

– Depois que a gente morre… pra onde a gente vai? – perguntei, aflito e temeroso.

– Pra lugar nenhum. Vai ficar por aqui mesmo, apodrecendo em algum buraco. Isso se alguém não resolver lhe queimar o corpo e jogar suas cinzas num rio qualquer – esclareceu secamente.

– Poxa, mas isso não é justo – choraminguei.

– Quem decide o que é justo ou não sou Eu, o Todo Poderoso. Pois pra mim é justo. Justíssimo – rebateu tranquilo.

– Mas o que então a gente está fazendo na Terra?- inquiri surpreso.

– E eu sei lá! Vocês estão aqui e não sabem o que estão fazendo e querem ainda por cima que eu saiba – reagiu sem muita convicção.

– Mas não foi o Senhor que nos colocou aqui? – retruquei.

– Não coloquei vocês aqui coisa nenhuma! Coloquei apenas dois caras pelados e uma cobra no Paraíso– esbravejou retumbante.

– Tá bom. Pode ditar os seus novos 10 mandamentos – desisti.

– Obrigado por me permitir ditar meus mandamentos – aprendi que quando quer Deus sabe ser sarcástico.

– Mas não são 10, são 3 – emendou.

– Só!?!?- me surpreendi.

– Só! Pra que mais? Os mandamentos de Deus não são a constituição brasileira, com suas centenas capítulos, parágrafos, incisos… E, aliás, vocês nem sabem o que fazer com aquilo tudo – ironizou.

– É verdade – pela primeira vez eu concordava integralmente com Deus.

– Posso ditar? – perguntou inquisidor.

– Pode – respondi eufórico.

– Só uma coisa antes. Serão só três artigos, mas vão ter notas explicativas – esclareceu.

Eu estava gostando cada vez mais de Deus

– Mas eu posso acrescentar algumas observações, com a Sua anuência, naturalmente – e quando for necessário . O Senhor é quem decide se é ou não é oportuno ou não? – perguntei-lhe humilde e bajulador.

– Poder, poder, não pode. Mas como atrapalhei seu programa de TV vou lhe fazer uma concessão. Pode sim – concedeu, benevolente.

Agradeci e esperei embevecido.

– Primeiro Mandamento: trepar todos os dias.

– Trepar? – reagi. Não seria melhor fazer amor ou transar?

– NÃO! – trovejou.  Amor é outra coisa.  Vocês nunca entenderam isso direito. E transar é muito vulgar. Se fossem vocês e não Eu quem tivessem criado o mundo isto aqui já teria acabado numa grande esbórnia. Deixe trepar mesmo. É mais plástico – esclareceu, irritado.

– E a nota explicativa? – saí de fininho do puxão de orelhas.

– Nota Explicativa: use uma ou mais de uma das partes do corpo para trepar. Não se preocupe com o tempo, até porque o tempo não existe. Quanto mais tempo durar, melhor será – ditou, ensinando.

– Pode ser homem com homem, mulher com mulher? – perguntei, envergonhado.

– Pode ser homem com homem, mulher com mulher, homem com duas mulheres, duas mulheres com três homens… – esclareceu divinamente.

– Mas tem um problema. E se o sujeito estiver sozinho? Sem ninguém. Perdido num deserto? – tentei ser inteligente.

– Qual é o problema? Que trepe com ele mesmo. Que use as mãos. Pra que porra você acha que eu botei mãos em vocês? – lembrou com precisão.

Deus realmente é insuperável.

– Segundo Mandamento: durma depois do almoço.

– Peraí, Senhor. Tem milhões de pessoas, quiçá bilhões que nem têm o que comer; não têm emprego, não têm acesso aos direitos mais elementares… – tentei argumentar.

– PODE PARAR – reagiu, trovejante.

– Pode parar com esse seu papo de comunista. É no sentido figurado, seu ignorante. É uma licença poética – disse entre debochado e irritado.

Entendi, mas levantei outra questão – e se o sujeito tiver um trabalho daqueles que ocupam o dia todo, sem hora para nada? O patrão ou o chefe dele não vai gostar da história…

O Senhor não deu a menor confiança às minhas observações, mas esclareceu, ditando a Nota Explicativa :

– Caso seu patrão, seu chefe, seu dono, sua mulher, seu homem ou um idiota qualquer venha reclamar de sua dormidinha mande ele à merda ou à puta que o pariu e continue dormindo. Se você perder o emprego a natureza lhe proverá o sustento .

Pensei comigo que os caminhos do Senhor, às vezes, são tortuosos e intrigantes.

O Senhor olhou-me duramente.

– Posso continuar? – perguntou

– Sou o seu servo, Senhor – disse, sem saída.

– Terceiro Mandamento: Beba vinho.

– Gostei Senhor. Beber vinho realmente faz bem à saúde e alegra a vida – emendei, bajulador.

O Senhor não deu a menor confiança à minha observação e ditou a Nota Explicativa: Beba pelo menos um copo de vinho a cada hora.

– Mas, Senhor – argumentei escandalizado. No final do dia, ou até antes, um sujeito pode ficar completamente bêbado!

– E qual é o problema? O ser humano não sabe nunca quando está sóbrio ou ébrio mesmo – contra-argumentou com profunda sabedoria.

Deus é infinitamente benevolente e eu tinha mais uma questão.

– Mas Senhor, se dirigirmos bêbados podemos provocar acidente, ferir pessoas, matar. E se formos pegos numa blitz vamos ser multados, presos e podemos até ter o nosso carro apreendido pela polícia – argumentei, pesaroso.

O Senhor tem o mapa de todos os caminhos, a chave de todas as portas, a solução para todos os mistérios.

– Primeiro, seu estúpido – desta vez Ele não trovejou, só xingou – a maioria das pessoas nem carro tem. Estou admirado que um comunista como você não tenha se lembrado desse simples detalhe – espezinhou.

– Segundo, quem mais provoca acidente de automóvel é quem não sabe dirigir. E mais de 99% não pessoas não consegue distinguir a direção de um poste de luz. Então, beber ou não beber não fará a menor diferença – esclareceu.

– Terceiro, ao contrário do que dizem os idiotas dos médicos, beber faz bem à saúde. E se não fizer assim tão bem ao corpo, pelo menos faz bem ao espírito, e vai ajudá-los a enfrentar mais levemente essa existência miserável a que vocês foram condenados – sentenciou

O Senhor havia terminado. Estava resplandecente.

– Antes que o Senhor vá embora posso levantar mais duas questões? – perguntei sem temor.

– Claro. Sou todo ouvidos – disse, benevolente.

– Primeiro: se Adão e Eva tiveram apenas dois filhos homens e um, ainda, matou outro, como foi possível que o ser humano crescesse e se multiplicasse – perguntei sério.

– Boa pergunta – respondeu admirado. Não sei. Eu não estava lá. Não fiquei para ver.

– Mas o Senhor não é aquele que tudo sabe, que tudo vê, que tudo ouve? – eu estava perplexo.

– Só o que me interessa – respondeu, educado.

– Segundo: que história foi aquela de o Senhor fazer um filho numa mulher que continuou virgem depois do ato? – tirei uma casquinha.

– Não fui eu quem fez o filho e praticou o ato. Foi a pomba do Espírito Santo – defendeu-se.

– Mas por aqui pomba também tem outro sentido – insinuei.

– Então pense e tente decifrar o enigma – me desafiou.

E antes de ir, o Senhor voltou a me desafiar – você sabe o que vai fazer com isso?

– Isso o que? – me surpreendi.

– Com as leis que lhe ditei – disse quase desaparecendo.

– Não sei – confessei.

– Faça o que quiser com elas, mas não perca seu tempo enrolando as pessoas com essa conversa idiota sobre religião; não ande sobre as águas que você pode se afogar e nem tente fazer milagres que isso não funciona – e Deus desapareceu. (MTS)

“Os hippies soviéticos”

Hippie com
Cortesia de Soviet Hippies para Esquerda Net.

[Embora os militantes de esquerda veteranos fiquem incomodados com a ideia, na imaginação popular a cultura hippie continua associada a protestos políticos. Durante o auge da radicalização estudantil da década de 1960, a música, roupas e estética visual associadas ao movimento hippie permearam a cultura de protesto da Nova Esquerda. Esta imagem continua a animar nos dias de hoje as caricaturas de direita sobre a Esquerda.

Embora este tipo particular de rebelião cultural fosse mais proeminente nas sociedades fordistas do ocidente capitalista, esta atravessou o Atlântico e ganhou forma própria na cada vez mais estagnada União Soviética de Leonid Brezhnev. Aí, milhares de jovens descontentes reuniram-se numa rede underground de pessoas que se identificavam enquanto hippies, à qual chamaram Sistema. A história do movimento, maioritariamente esquecida, é o foco de um recente documentário intitulado Soviet Hippies, onde se capta esta parte cultural única da Guerra Fria, na qual um difuso sentimento antiautoritário ressoou com os jovens dos dois lados da Cortina de Ferro. Loren Balhorn falou recentemente com o realizador, Terje Toomistu.

O seu filme documenta a vida de uma rede de hippies chamada Sistema, concentrada, sobretudo nos Estados Bálticos, mas que se espalhou pela URSS. De onde surgiu o nome e por que se tornou na alcunha deste grupo de miúdos soviéticos rebeldes e de cabelos compridos?

De acordo com o que se diz, esta surgiu com um hippie carismático que vivia em Moscovo no final de 1960, chamado Sontse, que significa “ensolarado”. Os outros hippies referiam-se a ele como “o sol”, pelo que o grupo à sua volta começou aos poucos a ser chamado de “sistema solar”. É provável que o nome Sistema venha daí. De qualquer modo, nesta fase o Sistema ainda não funcionava como aquilo que viria a tornar-se mais tarde: uma rede auto organizada e autossustentável de pessoas que partilhavam certos valores e ideais, viajando pelo país e reunindo em casa das pessoas e em acampamentos temporários com muitas pessoas.

Quando surgiu esta rede?

A rede propriamente dita surgiu alguns anos depois, no início dos anos de 1970. O movimento começou entre algumas pessoas das maiores cidades da União Soviética que tinham acesso à música ocidental. Algum tempo depois, começaram a questionar-se sobre se existiriam outras pessoas como elas noutras partes do país, e rapidamente estabeleceram contacto com outras pessoas de cabelos comprimidos em cidades de grandes dimensões. Foi aí que o Sistema se começou a desenvolver enquanto cultura, com os hippies a viajar pela URSS e a fazer “couch surfing”, digamos assim, em casa de outras pessoas de cabelos compridos. Os membros do Sistema compilavam em cadernos os números de telefone de hippies de outras cidades, permitindo-lhes estabelecer contacto com pessoas com os mesmos ideais em Kaunas, Tallinn e outros sítios, durante as suas viagens de verão.

E a política do movimento hippie? Parece-me que estes se estavam a rebelar contra o mesmo tipo de atitudes conservadoras e normas sociais que no contexto ocidental, embora sob um diferente sistema socioeconómico e instituições políticas. Ao passo que, nos anos de 1960, muitos jovens rebeldes nos Estados Unidos da América idealizavam, por exemplo, a Revolução Cultural de Mao na China, muitos das pessoas no seu filme parecem idealizar tudo o que fosse estado-unidense. Porém, tal como o filme admite muitos dos primeiros hippies eram filhos da elite soviética. Quais os problemas e fatores que deram origem a este afastamento da sociedade soviética?

Existiram certamente algumas semelhanças entre o Leste e o Ocidente, mas também algumas diferenças. Na URSS o pacifismo não era puramente político – tinha também implicações a nível quotidiano. A sociedade soviética da altura era profundamente autoritária e altamente militarista. A maioria dos hippies rejeitava essas atitudes e tentavam modelar as suas vidas diárias em torno de valores como a “paz” e o “amor”.

Dito isto, a cena hippie começou com pessoas que tinham acesso a música e a jornais ocidentais e é claro que isso só poderia acontecer entre a elite – as únicas pessoas na União Soviética que tinham acesso a bens do Ocidente. Altos funcionários – membros do Partido Comunista, agentes do KGB, etc. – conseguiam obter autorização para viajar para países ocidentais, trazendo geralmente todo o tipo de presentes estrangeiros e exóticos para os seus filhos. Os filhos da elite também tinham mais dinheiro para comprar discos em contrabando, algo que era muito caro. Muitas vezes, as pessoas formavam pequenos clubes de quatro ou cinco amantes de música que reuniam dinheiro para comprar um disco que, depois, copiam à vez para cassete.

Nesse sentido, continha um aspeto de dissidência, mas também era uma questão de estatuto. Se se tinha uma boa coleção de discos, tinha-se muitos amigos. Por isso, pelo menos no início, os hippies eram filhos de famílias soviéticas poderosas. Em termos ideológicos, existia certamente uma idealização do Ocidente como sendo o “mundo livre” e, a um menor nível, uma idealização do mercado livre.

Então o movimento tinha um certo cunho pró-mercado livre?

Sim, porque associavam o mercado livre a boa música e a boas calças de ganga. Não é que fossem a favor do capitalismo per se, mas tinham uma noção idealizada da liberdade de consumo. Isto era mais ou menos verdade entre a população soviética em termos mais gerais: o consumo era reprimido e, em consequência, idealizado. As pessoas queriam usar calças de ganga como expressão desse desejo de liberdade. É difícil julgá-los por isso em retrospectiva: numa sociedade onde os bens são difíceis de obter, é compreensível que o consumo ganhasse esse significado.

Uma coisa que não surge no seu filme é a invasão soviética do Afeganistão em 1979. A guerra no Afeganistão teve algum efeito no movimento hippie? Cresceu ou teve alguma relação com o sentimento anti-guerra?

Bem, o Afeganistão não entra no meu filme porque o documentário concentra-se no surgimento do movimento hippie, que se tornou numa entidade social visível em 1971, quando os hippies se reuniram em Moscovo para protestar contra a guerra do Vietname. Esta ocasião foi escolhida por se alinhar com o posicionamento em termos de política externa do Governo soviético, bem como com o pacifismo prevalente entre a comunidade hippie. Foi também um momento importante para o movimento, sobretudo porque foram todos detidos e identificados pela polícia, o que de repente fez com que ser hippie na URSS fosse algo muito perigoso.

Desta forma, as autoridades mataram o elemento político do movimento – este se tornou muito mais underground, mais virado para si mesmo e talvez mais espiritual, mas também muito mais envolvido com drogas e álcool. Os aspetos sociais e políticos recuaram. Quando pergunto aos hippies mais velhos se estes se interessavam por política, estes respondem geralmente que viam a política como algo estagnado. Sentiam não ter como mudar algo na sociedade soviética e que seriam presos caso tentassem. De certa forma, acho que a sua rejeição da política era em si mesmo um protesto.

Existia alguma ligação entre o movimento hippie, ou o Sistema, e a intelligentsia de Leninegrado ou a dissidência soviética avant-garde, ou tratavam-se de meios separados? 

Existiam certamente ligações. Na Estónia, por exemplo – que era uma sociedade comparativamente livre em relação à maioria da URSS – as pessoas que trabalhavam na música e nas artes, literatura, etc., estavam sempre meio que entre estas esferas oficiais e não oficiais, produzindo a sua arte livre e radical ao mesmo tempo em que tentavam manter boas relações com as autoridades. Muitas pessoas também se aproximaram da cultura hippie quando eram jovens, antes de se tornarem artistas soviéticos “oficiais”, mais estabelecidos e respeitados. Foquei-me deliberadamente no Sistema, este grupo de hippies mais radicais que realmente “saíram” da sociedade soviética e viajaram pelo país como espíritos livres, mas existiram certamente ligações com artistas e a intelligentsia.

E o género? Não é bem um foco do filme, mas várias das pessoas entrevistadas fazem comentários ao de leve onde sugerem que as políticas de género na comunidade não eram particularmente progressistas. Existia um elemento feminista nestes meios? 

Os hippies soviéticos não tiveram uma revolução sexual comparável à que associamos aos hippies ocidentais – as comunas, o amor livre e tudo isso. Os hippies soviéticos apaixonavam-se, viajavam pelo país em casais, passavam de um parceiro para outro, etc., mas não existia esse elemento de “amor livre”. Havia, claro, muito sexo, mas mais sob forma de casos que ocorriam entre pessoas nas suas viagens pela União Soviética. Nesse sentido era muito convencional, mas ainda assim muito mais liberal que o resto da sociedade soviética!

Perguntei a várias mulheres hippies se se consideravam feministas, mas estas geralmente diziam que isso não se relacionava com as sua vidas (com algumas exceções, claro). Porém, ouvi falar de uma mulher chamada Ophelia que liderava um grupo de hippies de Moscovo e que se interessava muito por drogas psicodélicas. Teve vários namorados ao mesmo tempo e praticava uma forma consciente de “amor livre”. O movimento tinha mulheres fortes, mas em geral “os homens eram homens e as mulheres eram mulheres”, por assim dizer. Há que ter em mente que muitas mulheres eram socializadas no movimento quando se apaixonavam por homens hippies.

Em muitos países do Bloco de Leste houve certamente uma sobreposição entre políticas pró-democracia e um ressurgimento do nacionalismo. Houve uma dinâmica semelhante na comunidade hippie soviética? No documentário há pelo menos um hippie ucraniano que afirma “odiar a Rússia”, por exemplo.

Sim e não. Alguns hippies envolveram-se com o nacionalismo, sobretudo nos Bálticos onde as pessoas ainda viam a era soviética como uma era de ocupação, havendo assim um toque nacionalista desde o início. Ainda assim, o Sistema era multicultural e multinacional, com o russo servindo geralmente de língua comum. Os hippies que se envolveram mais com a espiritualidade não se relacionaram muito com o crescimento do nacionalismo nos anos de 1980, embora alguns dos protagonistas do filme, sobretudo os ucranianos, misturassem um pouco a cultura hippie com nacionalismo.

Tal como terá possivelmente visto no filme, os desenvolvimentos não foram iguais. Alguns hippies pós-soviéticos mantiveram-se comprometidos com o pacifismo e tentaram organizar manifestações contra a guerra no Leste da Ucrânia, por exemplo. A reunião anual de hippies em Moscovo, onde foi filmada a cena de encerramento do documentário, comemora o protesto anti-guerra de 1971 que tornou o movimento hippie visível aos olhos do público. Algumas das pessoas com quem falámos aí pareciam sentir uma certa continuidade entre o pacifismo dessa era e dos dias de hoje.

Há uma cena particularmente engraçada no filme, onde dois hippies mais velhos descrevem a um grupo de jovens espantados a forma como cultivavam o seu ópio e canábis. O conceito de uso destas drogas de forma recreativa foi importado do Ocidente ou estava relacionado com tradições locais? 

Essas drogas já lá estavam. Não é como se os hippies soviéticos tivessem pensado de repente “oh, os hippies do Ocidente fumam erva? Como é que podemos arranjar?”. Existiam campos de canábis em algumas partes da Rússia, Ásia Central e Ucrânia, geralmente para produção de cânhamo. Os hippies mais velhos contam histórias de mulheres hippies a correrem nuas pelos campos de canábis, recolhendo o pólen no seu suor e produzindo haxixe a partir disso.

Também fiquei surpreendido com as quantidades. A unidade de medida menor para a canábis era a de uma caixa de fósforos, depois uma chávena de chá e, depois disso, geralmente um cesto inteiro. As autoridades perceberam eventualmente que se estava a passar alguma coisa com a erva, mas ficaram mais preocupados com o aspeto do negócio que propriamente com o uso da droga.

Estavam mais preocupados com o envolvimento de cidadãos soviéticos em “especulação” que no facto de estes usarem drogas – suspeito que alguns agentes nem conseguisse compreender o conceito. Existem muitas histórias sobre rusgas da polícia a casas de hippies nas quais procuravam literatura proibida e ignoravam por completo as pilhas de canábis na mesa da cozinha. Muitos me contam que fumavam charros no Café Moscow, na baixa de Tallinn, pois ninguém reconhecia o cheiro ou sabia o que aquilo era. Para consumir ópio geralmente faziam chá de papoila. No entanto, o problema aqui se prendia com a dificuldade de medir a quantidade de ópio que ia com o chá, pelo que por vezes as pessoas morriam de overdose.

Uma coisa que noto na música rock da era soviética em geral é a sua mistura de estilos bastante eclética, onde combinam influências e géneros do cânone do pop-rock ocidental com as suas próprias criações e de formas bastante surpreendentes para os ouvidos mais habituados às cenas musicais americanas ou britânicas. Até que ponto é que estes músicos conseguiam promover o seu trabalho através de canais estatais e oficiais? Alguns dos telediscos que surgem no documentário parecem ter custos de produção particularmente elevados. Tocavam na televisão ou na rádio ou eram totalmente alternativos? 

Eram maioritariamente alternativos. Aqueles que conseguiam gravar a sua música de forma profissional geralmente descreviam-no como um “milagre”. A banda estonada Suuk, por exemplo, conseguiu gravar (link is external) o seu disco em 1976 num único dia numa “rádio móvel” do Estado. Este era o caso da Estónia, onde as pessoas tinham mais liberdades que no resto da URSS, motivo pelo qual o meio era mais vibrante aí que nos restantes sítios. Ainda assim, estas bandas não assinavam ou não eram promovidas pela Melodia, a editora musical do Estado. Ocorreram algumas exceções, mas eram muito raras e obscuras. É particularmente difícil encontrar gravações de boa qualidade de música alternativa russa desse período. Devido ao acesso limitado a materiais de gravação, estas bandas tinham de improvisar e de ser muito criativas na forma como produziam as sua música, o que lhes conferia um som único e muito específico.

O filme mostra um excerto de um noticiário soviético onde denunciavam os hippies por roubo de fios de cabines telefónicas para usarem nas guitarras, mas não são apresentados mais detalhes. Esta parece ser uma queixa comum e oficial em relação aos hippies na URSS. Que se passava?

Isso era porque na União Soviética muitas pessoas construíam as suas próprias guitarras, enquanto a maioria dos instrumentos disponíveis na URSS eram fabricados na antiga Checoslováquia. Os miúdos hippies da era soviética no final dos anos de 1960 usavam as bobines eletromagnéticas dos telefones nas guitarras elétricas, algo que, quando colocado debaixo das cordas da guitarra, transformava uma guitarra acústica numa elétrica. Como os materiais de captação não estavam acessíveis através dos canais oficiais, os miúdos faziam os seus próprios destruindo cabines telefónicas.

Muitas das pessoas que participam no documentário relatam terem sido enviadas para hospitais psiquiátricos pelos seus pais ou por outras figuras de autoridade, como retaliação pelo seu envolvimento na cena hippie. Era algo comum?

Um dos hippies do filme conta ter sido enviado pela sua mãe para uma ala psiquiátrica pois a sua resposta entusiástica a uma versão contrabandeada do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles fez com que ela pensasse que ele tinha enlouquecido. Este caso ilustra o poder das normas sociais na sociedade soviética da época, na qual, não apenas as autoridades, mas também grande parte da população, impunha uma cultura muito antiquada e conformista. Além do assédio policial, os hippies também se deparavam com o policiamento moral dos cidadãos comuns, que se referiram a estes de forma pejorativa como “os tipos de cabelo comprido”, os denunciavam à polícia ou os assediavam nas ruas.

É por isso que os hippies que eram vistos como líderes ou considerados demasiado visíveis para o gosto do Estado eram muitas vezes enviados para hospitais psiquiátricos ao invés de prisões. Um dos maiores receios dos hippies era o de serem enviados para os hospitais por doenças da pele ou infeções sexualmente transmissíveis, pois estes eram particularmente rígidos. Muitas vezes as autoridades identificavam ou simplesmente inventavam a presença de piolhos nos detidos, e usavam isso como argumento para forçá-los a cortar os cabelos. Isto era muito difícil para muitos deles a nível psicológico, pois os cabelos longos eram considerados como sendo “a bandeira da liberdade”, um grande símbolo de não conformismo na URSS à época.

Contudo, um aspeto interessante na dinâmica com os hospitais psiquiátricos era o facto de muitos hippies e outros dissidentes se internarem voluntariamente em alas psiquiátricas de forma a evitarem o serviço militar obrigatório. Cruzavam-se muitas vezes com outros artistas, músicos e pessoas “boémias” em geral, todos eles procurando evitar o serviço militar. Os funcionários do hospital foram percebendo gradualmente que esta era uma estratégia dos objetores de consciência, e então lhes era dado um diagnóstico e eram mandados embora. É importante notar que, embora muitos hippies tenham tido experiências horríveis e traumatizantes em alas psiquiátricas, estas também tiveram um aspeto positivo para muitos.

Em retrospectiva, como é que os hippies soviéticos que entrevistou refletiam sobre a sua experiência trinta ou quarenta anos depois? Estavam orgulhosos do que tinham feito? Tinham saudades?

Há mais de seis anos que trabalho neste projeto – organizámos há uns anos uma exposição num museu na Estónia e o filme foi exibido em cinemas do país durante vários meses. Foi uma importante contribuição para a revitalização de velhas amizades e ligações entre hippies, e de alguma forma trouxe o movimento de volta – ou pelo menos as memórias. Muitos dos hippies soviéticos que ainda são vivos esperam que o filme e a experiência que este documenta ajudem a inspirar a juventude dos dias de hoje – afinal, mesmo que o sistema sociopolítico dos países da antiga URSS tenham mudado muito desde os anos de 1970, a luta antimilitarista e o conformismo social permanecem iguais.]

Tradução: Érica Almeida Postiço. Artigo publicado na revista Jacobin (link is external).

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