Sínodo Pan-Amazônico: início de um diálogo para buscar novos caminhos

Sinodo
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[As perguntas anexadas ao documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico, publicado no dia 8 deste mês pelo Vaticano, “revelam a atitude dos autores do texto, que procuram iniciar um diálogo e não antecipar respostas”, pontua o teólogo Paulo Suess à IHU On-Line, ao comentar o documento que foi enviado para dioceses e prelazias brasileiras pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e também está disponível na internet.

Na avaliação de Suess, o núcleo do documento está diretamente relacionado com o objetivo central do Sínodo Pan-Amazônico, que é a busca por “novos caminhos” para a evangelização na Amazônia. Isso fica explícito, informa, nas 18 vezes em que o documento menciona a necessidade de se buscarem “novos caminhos”. Essa busca, frisa, está articulada com três questões fundamentais apresentadas no texto: “a questão dos sujeitos e protagonistas”, à medida que “o Sínodo está sendo realizado pelos bispos, para e com os povos amazônicos”; “a construção de uma Igreja com rosto amazônico”, que “visa à construção de uma Igreja descolonizada, inculturada e contextualizada”; e “um novo estilo de vida de todos”, a partir de “caminhos dialogais e interconectados”, nos quais o “processo de evangelização não pode ser separado do zelo pelas culturas, nem do cuidado com o território e a ecologia”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Suess também destaca que a avaliação geral do documento preparatório depende de premissas que Kant formulou em suas três Críticas: Que podemos saber? Que devemos fazer? Que podemos esperar? “Nos três campos — no saber, no fazer e no esperar — aguardam a Igreja tarefas gigantes, tanto na preparação do Sínodo como na sua realização, em outubro de 2019”, conclui.

Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia.

Entre suas publicações, estão Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia – A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017) e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual sua avaliação geral do documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico, publicado no dia 8 de junho pelo Vaticano, em especial dos três conjuntos de perguntas que correspondem às diferentes partes do documento?

Paulo Suess – As perguntas anexadas ao “Documento Preparatório” para o Sínodo Pan-Amazônico podem ser ampliadas, resgatadas e contextualizadas pelas respostas. Revelam a atitude dos autores do texto, que procuram iniciar um diálogo e não antecipar respostas.

A avaliação geral do “Documento Preparatório” depende de premissas que Kant (1724-1804), em suas três Críticas para o campo da filosofia, assim formulou: Que podemos saber? Que devemos fazer? Que podemos esperar? Nos três campos — no saber, no fazer e no esperar — aguardam a Igreja tarefas gigantes, tanto na preparação do Sínodo como na sua realização, em outubro de 2019.

Que podemos saber? Um Documento Preparatório” não deve substituir o próprio Sínodo com propostas concretas que se esperam das comunidades e lideranças das comunidades amazônicas. Hoje, os trabalhos científicos e os dados sociológicos, econômicos, geográficos e ecológicos sobre a Amazônia enchem bibliotecas. Menos conhecidos são a real história da Amazônia, suas culturas e o núcleo central dessas culturas, a sabedoria dos povos que habitam essa grande área. Mas essa lacuna sobre a Amazônia pode gradativamente ser superada através de uma metodologia participativa e sinodal que o “Documento Preparatório” e a própria organização do Sínodo propõem. Como o objetivo do Sínodo é refletir sobre “novos caminhos” da Igreja na Amazônia e, portanto, decidir sobre mudanças na prática pastoral, cabe a todos os envolvidos nesse Sínodo não somente invocar saberes teológicos construídos no decorrer dos séculos e indicar supostos limites de negociação para transformações pastorais, litúrgicas e teológicas, mas sobretudo procurar saber até onde certos saberes teológicos são históricos e não necessariamente normativos para todos os tempos. A “Igreja em saída”, que o Papa Francisco propõe, nos lembra que Jesus não foi pedreiro que construiu muros, mas carpinteiro que fez portas e janelas. Precisamos resgatar a liberdade do cristianismo dos primeiros séculos e do próprio Vaticano II, que nos falou da infalibilidade do povo de Deus no ato da fé (in credendo), porque “Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé — o sensus fidei — que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus” (EG 119).

Que devemos fazer?

Precisamos nos exercitar na escuta recíproca entre todos. Para a Igreja universal é de vital importância escutar os povos indígenas e as comunidades que vivem na Amazônia, como os primeiros interlocutores deste Sínodo. Nessa escuta, podem-se conhecer os desafios e encontrar os novos caminhos que Deus pede à Igreja. O Papa Francisco nos deu um exemplo quando veio ao encontro dos representantes dos povos da Amazônia, em Puerto Maldonado (Peru), não somente para “visitar”, mas para “escutar”. A escuta é um ato de fé e “requer um magistério eclesial aberto para a escuta do Espírito Santo, que garante unidade e diversidade” [60] [1] . “É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles” (EG 198) e por suas culturas [75], que são “culturas do encontro” na vida cotidiana, nas quais se vive em “harmonia pluriforme” (EG 220) com “sobriedade feliz” (LS 224s) [cf. 4].

Que podemos esperar?

A finalidade principal deste Sínodo é modelar uma Igreja com “rosto amazônico”, o que significa libertar o povo de Deus de todas as formas de alienação e neocolonialismo, que destroem sua biodiversidade pela imposição de modelos culturais (religiosos, educativos, econômicos, políticos) estranhos à sua vida. Ainda hoje existem restos do projeto colonizador que demoniza as culturas indígenas [cf. 24]. Ao Sínodo cabe, portanto, “colaborar na construção de um mundo capaz de romper com as estruturas que sacrificam a vida e com as mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e interculturalidade” [4]. Cabe aos padres sinodais fazer aparecer melhor o rosto amazônico da Igreja, ou seja, “aprofundar o processo de inculturação(EG 126) [79] e denunciar profeticamente as situações de injustiça no mundo e na região [cf. 66].

As grandes distâncias geográficas da Amazônia produziram também grandes distâncias pastorais. O mistério da encarnação e a prática pastoral da inculturação apontam para a superação real dessas distâncias. Novas tecnologias (carros, canoas com motores sofisticados e internet) exercem um papel secundário nessa superação das distâncias geográficas e pastorais. O “Documento de Aparecida”, de 2007, descreve a defasagem entre exigências pastorais e realidade assim: “O número insuficiente de sacerdotes e sua não equitativa distribuição impossibilitam que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia. Recordando que a Eucaristia faz Igreja, preocupa-nos a situação de milhares dessas comunidades privadas da Eucaristia dominical por longos períodos” (DAp 100e) [cf. 64]. A carência eucarística afeta mistérios centrais da vida cristã: A comunhão trinitária na Igreja “tem seu ponto alto na Eucaristia, que é princípio e projeto da missão do cristão” (DAp 153). Como as comunidades na Amazônia podem “viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de maneira que toda a sua vida seja cada vez mais vida eucarística” (DAp 251)?

Espera-se do Sínodo que a Igreja possa gerar processos que respondam às realidades concretas dos povos amazônicos. Os “novos caminhos” ainda são devedores do Vaticano II, cujo Decreto “Presbyterorum ordinis” é taxativo: “Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). Espera-se do Sínodo coerência e relevância, coerência com as promessas e afirmações até normativas da Igreja e relevância para com os povos originários que nunca “estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora” [24].

IHU On-Line – Quais são as três questões mais importantes do documento preparatório?

Paulo Suess – O “Documento Preparatório” com seu Questionário segue a inspiração do Papa Francisco, que já no primeiro anúncio da realização de uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica, no dia 15 de outubro de 2017, definiu como sua finalidade principal “encontrar novos caminhos para a evangelização”. O “Documento Preparatório” menciona 18 vezes esses “novos caminhos” para a evangelização da Igreja na Amazônia. Esses novos caminhos, marcados por três cuidados, são o fio condutor proposto para o trabalho do Sínodo Pan-Amazônico: o sujeito (os povos da Amazônia), a microrregião (rosto amazônico) e a macrorregião (novo estilo de vida de toda a humanidade).

– Primeiro, a questão dos sujeitos e protagonistas

O Sínodo está sendo realizado pelos bispos, para e com os povos amazônicos [1], cujas vidas são ameaçadas e cujos territórios são disputados [cf. 24]. Trata-se, portanto, de um protagonismo partilhado com todo o povo de Deus e de um caminhar sinodal. A participação dos povos amazônicos vai além de meras consultas, porque o povo de Deus é dotado com o “instinto da fé” (sensus fidei), que o torna infalível em seu conjunto (EG 119; cf. LG 12; DV 10) [61].

– Segundo, a construção de uma Igreja com rosto amazônico

A Igreja com rosto amazônico visa à construção de uma Igreja descolonizada, inculturada e contextualizada. Com esse pano de fundo, “urge avaliar e repensar os ministérios que hoje são necessários para responder aos objetivos de “uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” [81]. Onde já se mostra este rosto amazônico e indígena é na presença e atuação das mulheres nas comunidades. A reivindicação de avançar na admissão de viri probati ainda é a reivindicação de uma Igreja clerical e machista de meio século atrás. Ao falarmos de uma Igreja indígena descolonizada haveremos de falar de viri probati e uxores probatae, de homens e mulheres que marcaram por longos anos sua relevância pastoral na Igreja. O “Documento Preparatório” não se antecipa a essas propostas, porém abre o caminho para elas.

– Terceiro, um novo estilo de vida de todos

Os “novos caminhos” não são caminhos paralelos que se encontram na eternidade, mas caminhos dialogais e interconectados. O processo de evangelização não pode ser separado do zelo pelas culturas, nem do cuidado com o território e a ecologia [cf. 52]. “‘Tudo está interligado’ (LS 16, 91, 117, 138, 240) [cf. 48] é a grande insistência do Papa Francisco para facilitar o diálogo com as raízes espirituais das grandes tradições religiosas e culturais” [72]. Os “novos caminhos” convidam para um novo estilo de vida de “sobriedade feliz” [LS 224s], que assume a mística da interligação e interdependência de tudo que foi criado. Interligados são a mãe Terra e toda a humanidade, as religiões e os sonhos. Também a cruz e a ressurreição fazem parte da polaridade sinergética da vida. Ela nos permite “encontrar Deus em todas as coisas”, como os místicos Mestre Eckhart e Inácio de Loyola nos ensinaram. Seu lema, que pode nos inspirar para um novo estilo de vida, nos impulsiona a “praticar a solidariedade global” [74], viver a “corresponsabilidade no trabalho comum” [25] e superar a ação desordenada do ser humano ante a natureza que ameaça o futuro de suas próprias condições de vida. “Encontrar Deus em todas as coisas” é uma chave importante para superar a “cultura do descarte” (LS 6) [2] e assumir “uma conversão ecológica que implica um novo estilo de vida, cujo foco é o outro. Urge praticar a solidariedade global e superar o individualismo, abrir novos caminhos de liberdade, verdade e beleza” [74].

IHU On-Line – Alguma questão importante não foi contemplada pelo documento?

Paulo Suess – O “Documento Preparatório” para o Sínodo não tinha a tarefa de contemplar todas as questões importantes e pertinentes para a região Amazônica. Seguiu-se a proposta do Papa Francisco de que “uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas […]; o anúncio concentra-se no essencial […]. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade” (EG 35). De fato, nem as questões do trabalho nem as do ecumenismo ou as do diálogo inter-religioso foram aprofundadas. As questões realmente importantes para os povos da Amazônia (povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e afrodescendentes, a população rural e a dos centros urbanos) só saberemos depois da devolução do Questionário com respostas, propostas e novas perguntas.

IHU On-Line – O documento preparatório segue a metodologia “ver, julgar (discernir) e agir”. Qual é a importância desse método para esse Sínodo em especial?

Paulo Suess – A metodologia indutiva do “ver-julgar-agir”, que parte da realidade pluridimensional concreta, marca desde Medellín a teologia latino-americana. Já no início de seu pontificado, o Papa Francisco nos convida, no processo de evangelização, a assumir a cultura do outro e nos adverte: “Às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador” (EG 117). Se a proposta para este Sínodo é a construção de uma Igreja com rostos amazônicos, que são muitos, e se o desafio da pastoral na Amazônia são as grandes distâncias, então, para superar as duas distâncias, a cultural, que “abrange a totalidade da vida de um povo” (EG 115), e a geográfica, que envolve as estruturas eclesiais e ministeriais, se oferece o método indutivo, que permite contextualizar o “ver, julgar (discernir) e agir”.

Contextualizar o cristianismo na Amazônia significa abrir “novos caminhos” no plural das culturas e de sua evolução histórica, porque “não faria justiça à lógica da encarnação pensar num Cristianismo monocultural” (EG 117). “Contexto” significa busca de proximidade para ver a pessoa e os povos em sua história, cultura, relações sociais e geografia, nas contradições de interesses, conflitos e poderes. Como se situar nesse mundo amazônico entre isolamento e aggiornamento? Como traduzir os artigos de fé, os sinais de justiça, as imagens de esperança e as práticas de solidariedade para os interlocutores do mundo tradicional e do moderno ao mesmo tempo? Como viver a inculturação da fé e a contraculturalidade do Evangelho? Como manter a Igreja universalmente unida e localmente enraizada? Precisamos um novo conceito de unidade na diversidade do Espírito Santo, porque “o cuidado da casa comum” inclui também o cuidado da casa de cada um.

IHU On-Line – Qual sua avaliação particular da dimensão bíblico-teológica do documento, especialmente em sua proposta de anunciar o Evangelho na Amazônia levando em conta uma dimensão social, ecológica, sacramental e eclesial-missionária?

Paulo Suess – Todas as dimensões mencionadas não são subdivisões da “dimensão bíblico-teológica” do documento, mas, dentro da metodologia do “ver, julgar e agir”, da segunda parte do texto que trata do “Discernir (julgar) – para uma conversão pastoral e ecológica”.

Se você pergunta por “minha avaliação particular”, diria o seguinte: Eu tenho muitas razões para dar força ao texto assim como está. Que essa “conversão pastoral e ecológica”, em todos os subitens, é cinco vezes introduzida com o mantra de “Anunciar o Evangelho de Jesus na Amazônia” é uma falha estilística, não semântica, que poderia ser evitada por um título mais abrangente da segunda parte do Documento: “II. DISCERNIR. Para uma conversão pastoral e ecológica a partir do anúncio do Evangelho de Jesus na Amazônia”. O restante, encontrar em todas as cinco dimensões (na dimensão bíblico-teológica, social, ecológica, sacramental e eclesial-missionária) razões para a “conversão pastoral e ecológica” a partir do anúncio do Evangelho, é uma questão hermenêutica.

Na dimensão bíblico-teológica destacam-se os mistérios da criação, da encarnação e da redenção como criação nova. A dimensão social enfatiza a “conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana(EG 178) [42]. A dimensão ecológica remete ao “vínculo intrínseco entre o campo social e o ambiental” [49]. A dimensão sacramental é caracterizada por “um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida” [57] e na vida sacramental se realiza a contemplação de Deus em todas as coisas. A dimensão eclesial-missionária articula “a participação de todos” no louvor a Deus com “a prática da justiça a favor dos pobres” [60] e “um grande exercício de escuta recíproca” [64]. As cinco dimensões “para uma conversão pastoral e ecológica” não são uma tempestade torrencial, mas uma chuva suave para regar os “novos caminhos” e absorver a poeira da estrada.

IHU On-Line – Que reações o senhor já percebeu acerca de como o documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico está sendo recebido na Igreja brasileira, em especial na Amazônia? O que está sendo preparado para que os leigos tenham acesso ao questionário?

Paulo Suess – Faz tempo que existe junto à CNBB a Comissão Episcopal para a Amazônia e, desde o ano passado, também a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), cujo presidente é o cardeal Cláudio Hummes. Ambos os organismos, através de Encontros e Assembleias territoriais, estão assessorando dioceses e comunidades da Pan-Amazônia e da sociedade brasileira nas questões ecológicas, econômicas e pastorais pertinentes a esta macrorregião. Na CNBB e nos organismos vinculados com ela, como no Cimi, o “Documento Preparatório” já era esperado, e está sendo divulgado pelos diferentes sítios na internet. A CNBB já imprimiu o documento e o enviou para as dioceses e prelazias.

No Brasil, as respostas do questionário serão enviadas para o seguinte e-mail: sinodoamazonia@gmail.com. CNBB e REPAM-Brasil estão criando uma plataforma específica para a comunicação acerca do sínodo.

Ainda é cedo para registrar reações acerca do documento, sobretudo das comunidades, no interior do país, das quais se esperam respostas e propostas concretas, seguindo o convite do Papa Francisco, em Porto Maldonado: “Ajudai os vossos Bispos, ajudai os vossos missionários e as vossas missionárias a fazerem-se um só convosco e assim, dialogando com todos, podeis plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” [90]. Esta interiorização do documento, da discussão e do recolhimento das respostas através do questionário, que se espera até meados de janeiro, vai depender muito dos nossos e das nossas agentes de pastoral. Seria recomendável que cada região, diocese, paróquia ou comunidade constituísse um Grupo de Trabalho Sinodal (GTS) encarregado de fazer, no final do processo de recolhimento das respostas, uma síntese das respostas.

IHU On-Line – Como será feita a avaliação dessas respostas? Até que ponto a sinodalidade pode ser efetiva?

Paulo Suess – A partir de janeiro, o grupo de assessores do Sínodo vai sintetizar as respostas. Essa síntese exige muita sensibilidade, para não desfigurar as respostas por “valorizações” nas quais seus autores não se conseguiriam mais reconhecer. A partir dessa síntese, os assessores redigem o “Documento de Trabalho” que será discutido e aprovado pelo “Conselho Pré-Sinodal”. Depois, o “Documento de Trabalho” será enviado aos delegados do próprio Sínodo. Está previsto que todos os bispos e prelados da Pan-Amazônia serão delegados do Sínodo, além de representantes das Conferências Episcopais dos Continentes e da Cúria Romana.

Um sínodo não funciona como uma democracia liberal, mas como uma cooperativa. No Brasil, muitas cooperativas já fracassaram, enquanto outras deram bons resultados. A sinodalidade pode ser efetiva, perfeita não. Efetivo, o Sínodo Pan-Amazônico já se mostrou na elaboração do “Documento Preparatório”. Com as contribuições heterogêneas, que devem vir das bases da Igreja da Amazônia Legal, o desafio de um trabalho sinodal na elaboração do “Documento de Trabalho” pode ser maior, mas novamente efetivo e não perfeito. Se for perfeito, será o fim da história. Sendo efetivo, nos leva a alguns passos à frente, e o processo continua.

IHU On-Line – Quais são os documentos centrais que fundamentam teoricamente o Documento Preparatório para o Sínodo e que, certamente, vão fundamentar também o “Documento de Trabalho”?

Paulo Suess – Na busca de “novos caminhos” para a inculturação e descolonização da Igreja na Amazônia, o Sínodo se situa num processo que mais explicitamente começou com o Concílio Vaticano II (1962-1965). “A providência do Pai e a bondade da criação alcançam seu ponto culminante no mistério da encarnação do Filho de Deus, que se aproxima e abraça todos os contextos humanos, mas sobretudo o dos mais pobres. O Concílio Vaticano II menciona esta proximidade contextual com palavras como adaptação e diálogo (cf. GS 4, 11; CD 11; UR 4; SC 37ss) e encarnação e solidariedade” (cf. GS 32) [39].

No tempo pós-conciliar, a Igreja latino-americana assumiu intenções profundas do Vaticano II, cunhou expressões próprias e sacudiu as colunas de uma teologia dedutiva cristalizada. A teologia conciliar foi indutiva. A leitura latino-americana das palavras-chave dessa teologia indutiva, que constrói seu argumento a partir da realidade concreta (cf. GS 62,2), forjou a Teologia da Libertação e outras teologias contextuais, como, por exemplo, a Teologia Índia [cf. 82]. O processo pós-conciliar incorporou novos verbetes no dicionário teológico-pastoral: “libertação” e “opção pelos pobres” (Medellín, 1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base” (Puebla, 1979), “inserção” e “inculturação” (Santo Domingo, 1992), “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres (Aparecida, 2007).

Desde as “Conclusões de Santo Domingo”, o magistério latino-americano acrescentou, explicitamente, ao paradigma da libertação o paradigma da inculturação. A inculturação da fé e de todas as atividades eclesiais que emergem dessa fé (pastoral, liturgia, teologia, anúncio, missão, obras sociais), são “imperativos do seguimento de Jesus” (DSD 13), que redimiu a humanidade na proximidade histórico-cultural da encarnação. O paradigma da inculturação, na síntese do DAp, foi novamente proposto como caminho para expressar cada vez melhor a catolicidade. Palavras como “assumir” (DAp 280b, 330, 348), “contexto” (DAp 276, 331), “inserir” (DAp 329, 517h) e “presença” (DAp 215, 474b) pertencem ao campo semântico da inculturação: “Com a inculturação da fé, a Igreja se enriquece com novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé com a vida e assim contribuindo para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também cultural” (DAp 479).

Para a Igreja universal, esse processo de busca de “novos caminhos” estava também presente no Sínodo sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, de 2012. A Exortação Apostólica Evangelii gaudium (2013), do Papa Francisco, “sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual” concretizou as propostas do Sínodo sobre a Nova Evangelização e fez dos “novos caminhos” o fio condutor do seu pontificado (cf. EG 14). A Evangelii gaudium, com suas palavras-chave de “diálogo” (EG 142), “encontro” (EG 239) e “Igreja em saída” (EG 20ss), ofereceu novos verbetes para o dicionário teológico-pastoral. O “Documento Preparatório” está familiarizado com esses paradigmas que, em seu conjunto, estão presentes na proposta dos “novos caminhos” para o Sínodo. A convocação do próprio Sínodo só é possível no interior desse processo do qual o Papa Francisco é o avalista aglutinador.

Nos documentos centrais, que fundamentam o “Documento Preparatório”, está presente a memória histórica do povo de Deus que lembra a Igreja de promessas cumpridas e de outras, ainda não cumpridas, no decorrer de uma longa caminhada. O Sínodo Pan-Amazônico é herdeiro dessa caminhada. O Sínodo, em relação à Igreja, é como o anjo que tocou o profeta Elias e disse: “Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer”. O profeta levantou-se, comeu e bebeu e, com a força desse alimento, andou quarenta dias e quarenta noites, até chegar ao Horeb, monte de Deus” (1Rs 19,8). O Sínodo pode ser o anjo que nos toca. Os “novos caminhos” são lembrete desse longo caminho pelo deserto, mas também promessa da realização da utopia do Horeb e do Reino.]

Nota

[1] Os números entre colchetes se referem ao “Documento Preparatório” que se encontra no sítio da RELAMI – Brasil (Rede Latino-Americana de Missiólogos e Missiólogas) com a enumeração dos parágrafos de 1 até 90.

Título original do texto “Sínodo Pan-Amazônico. O Documento Preparatório e o Questionário – início de um diálogo para buscar novos caminhos. Entrevista especial com Paulo Suess”       in IHU Unisinos.

Ler nem sempre ajuda alguém que está precisando de muita ajuda

Hei
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O primeiro livro que eu vi em minha casa foi “Hei de Vencer”, de Arthur Riedel, que o publicou no início dos anos 50 ou mesmo na década de 40.

As suas primeiras edições (o livro fez, à época, um razoável sucesso) foram da editora Pensamento, ligada ao Círculo Esotérico do Pensamento.

O livro era de minha mãe e seu pai, o seo “Bepe” (José Boschetti), tinha ligações com o círculo místico.

O autor da obra era Arthur Riedel, um paulistano nascido em 27 de maio de 1888 e vice-presidente do Supremo Conselho Esotérico.

Provavelmente meu avô a tenha presenteado com a obra antes de morrer. Ele faleceu em 1955, dois anos depois de Riedel.

O autor da obra era, como se vê, ligado ao esoterismo e costumava receber em casa diversas pessoas para discutir o assunto e refletir sobre ele.

Pelo que sei meu avô nunca participou desses encontros e creio que nem das reuniões do Círculo Esotérico, limitando-se a comprar alguns de seus livros e outras publicações quaisquer.

Mística, minha mãe costuma ver feitiçarias em todo canto, temia despachos, pedia socorro a “macumbeiros” (sic), rezadores e benzedores com certa constância.

Mais tarde, quando deixou o catolicismo e migrou para uma igreja evangélica passou a ler compulsivamente a bíblia.

Leu-a várias vezes antes de perder parcialmente a visão e me presenteou com um de seus exemplares; os outros foram “tomados emprestado, mas nunca devolvidos” por uma de suas empregadas também evangélica.

Meu pai, ao contrário, nunca teve um livro sequer.

Ele sempre foi um sujeito meio chulo, algo grosseiro, avesso aos avanços da técnica e do conhecimento, enfim, da modernidade.

Em sua defesa, lembro que ele lia a Última Hora paulista e vez ou outra, quando eu ainda era pequeno, me levava ao cinema, mas a sua preferência era por filmes de bangue-bangue e alguns “capa e espada”.

Ele fazia jus à valentia que sempre procurou externar.

Sem muita certeza, até porque sempre foi muito difícil tirar alguma confissão e reflexão dele, creio que meu pai, até por ancestralidade, vivia ainda imerso no bandeirantismo paulista.

Minha mãe teve irmãos e irmãs. Que me lembre nenhum deles, nem cunhados e nem cunhadas, tiveram contatos mais íntimo com algum livro.

Portanto, a dona Elvira, minha mãe, seguiu, pari passu, e sozinha, o senhor José Boschetti, o pai, sempre ávido por leitura e que professava uma religiosidade particularmente mística, o que, por suposto, tornava a sua vida caótica e confusa.

“Kotodama” – o espirito das palavras

Kodama
Teoria da Conspiração

[Kotodama, do japonês, literalmente, “espírito da palavra”, mais comumente traduzido como “poder da palavra”, é conhecido popularmente como a crença japonesa no poder das palavras, que pode alterar ambientes, afetar objetos e todo aquele hocus pocus que vocês já devem estar acostumados…

Que as palavras têm poder, nós já iremos chegar lá, mas vejamos os kanji, primeiro:

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Quanto a “gen”, o seu significado é o de palavra oral.

O processo de formação dos kanji é muito interessante. Basicamente, há kanji que são chamados de ‘básicos’ ou ‘originários’, os quais serão utilizados como radicais na composição de kanji mais complexos. Dessa forma, “kuchi”, que significa “boca”, é um desses, vejam só:

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Muito parecido com a parte inferior do kanjigen”, certo? Errado! Eles são exatamente o mesmo! Agora vocês perguntam: “o que são aqueles ‘risquinhos’ ali em cima”? Oras, o que vocês acham que são?

Sim, os japoneses são nerds e já sabiam física há milhares de anos atrás. Os risquinhos nada mais são do que a representação das ondas sonoras, a verbalização da palavra.  Basta procurar qualquer dicionário pictográfico de kanji. Eles explicam como é que os kanji se formaram a partir de imagens que ilustram o sentido da palavra.

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Para os que ainda desconfiam que “gen” significa a palavra verbalizada, tal kanji é usado como radical na composição da (e de várias outras) palavra “go”, que significa “idioma” ou “língua” (no sentido de ‘language’).

Já “rei”, o significado é “espírito”, “fantasma”, “alma penada”. Contudo, não podemos confundir com “tamashii”, cujo kanji é diferente e cujo significado é “alma”, “espírito”. Explico: enquanto “tamashii” significa a alma humana, “rei” é a essência espiritual propriamente dita.

Só para vocês terem uma idéia de como o buraco é mais embaixo, o kanjitamashii” também é pronunciado como “kon”, que é um dos quatro elementos do xintoísmo. “Kon”, no shinto, também é chamado de “waketama”, ou seja, “almas separadas individualmente”, outra forma de dizer “crianças do kami”, ou seja, nós, os seres humanos. A alma (kon) é chamada dessa forma (waketama) porque ela é composta de quatro partes, quais sejam, “aramitama”, ou a coragem, “nigimitama”, ou a amizade, “sachimitama”, ou o amor, e “kushimitama”, ou a sabedoria.

É óbvio que o significado de cada uma dessas palavras é muito mais complexo e intrínseco, mas essa explicação fica para outra oportunidade…

Voltando ao significado de “rei”, que é o que importa nesse momento, no shinto, “rei” é outro dos quatro elementos.

Podemos associar “kon” ao intelecto que só os seres humanos possuem (a alma intelectiva de São Tomás de Aquino) e ao plano mental, enquanto “rei” é a manifestação do espírito e corresponde ao plano espiritual.

Após esse breve estudo etimológico, podemos finalmente conceituar Kotodama como a arte de animar através da verbalização da palavra.

Aoi Kuwan , para Teoria da Conspiração.

Os três mandamentos da lei de Deus

Deus
Blog Espírita Canoro – (imagem alterada)

Deus veio me visitar ontem.

Isso mesmo. Em carne e osso, se é possível se referir a Deus dessa forma.

Eu estava na sala, sentado no sofá, tentando assistir TV.

O Senhor sentou-se ao meu lado.

– E aí, Marcião? Muita gente me chama assim, por que Ele não chamaria?

Tentei não acreditar. Me belisquei. Me dei tapa na cara. Gritei

– Não adianta,  disse-me Ele. Relaxa cara! Isto é só entre nós.

– Então o que o Senhor quer? – perguntei preocupado e assustado.

– Está surpreso? Não se preocupe. Vou lhe ditar os meus mandamentos – revelou.

– Mas o Senhor já não tinha feito isso antes? – ponderei.

– Aquilo foi uma experiência. Tanto que escolhi Moisés, o mais burro dos judeus – disse o Senhor.

– Judeu burro não existe Senhor – ponderei de novo.

– Deixe de ser puxa-saco – reagiu.

– Os caminhos de Deus são retos – pensei.

– É isso mesmo. Mas nem pense em me entender. Cuide da sua vidinha que já terá feito um grande negócio – avisou.

– Vidinha! – reagi.  O Senhor vem aqui e me escolhe para ditar as suas leis e chama a minha vida de vidinha! – reclamei.

– Preste atenção, idiota! Primeiro eu não vim aqui e o escolhi. Eu o escolhi e depois vim aqui. E não vim aqui ditar lei nenhuma. Vim ditar os meus mandamentos. Eu posso e Eu mando. Deu pra entender? – esbravejou.

– Tá bom, não precisa se irritar. Mas podemos conversar um pouco antes. Gostaria de saber algumas coisas – solicitei inseguro.

– Vá em frente. Tenho todo o tempo do mundo. Nunca se esqueça de que Eu sou o Senhor do tempo – esclareceu mais uma vez.

– Sim, Senhor, doutor… – brinquei provocativo.

– Olha o respeito. Na sua terra chamar alguém de doutor não é exatamente um elogio – disse, fuzilando-me com os olhos.

– Desculpe – roguei-lhe.

– Então vamos, pergunte – falou, impaciente.

– Onde o Senhor esteve estes anos todos depois que ditou as le… os mandamentos para Moises? Isso faz tempo pra cacete! – gaguejei.

– Eu não ditei coisa alguma. Eu escrevi numa pedra. Nunca se esqueça de que Eu sou o Senhor de tudo o que é sólido. Você não pensa não? – irritou-se de novo.

– E como eu iria ditar alguma coisa se o sujeito era analfabeto? – disse mais irritado ainda.

Compreendi o quanto Deus é sábio.

– E não faz tempo pra cacete coisa alguma. Foi agorinha mesmo – disse ainda bravo.

– Mas dizem que isso foi a sete mil, oito mil anos! – me admirei.

– Mas o que é o tempo para mim, Marcião? Nada! O tempo não existe. Eu sou o Senhor do tempo e posso dispor dele da forma que Eu quiser – disse mais compreensivo,

– Posso ser franco com o Senhor? – perguntei baixinho.

– Vá em frente – estimulou.

– Mas que merda é essa que o Senhor fez? Um mundo miserável. Cheio de gente pobre, doente, passando fome. Guerras. Futricas. Roubos… – açulei, destemido.

– Ah, quer dizer que sou o responsável por essa merda toda? – me interrompeu.

– Deixo dois caras pelados no Paraíso, debaixo de uma árvore cheia de frutos e uma cobra para eles brincarem, eles se enrolam todo e Eu é que sou o culpado? – esbravejou.

– Tá certo. O Senhor tem razão. Mas não poderia ter criado mais alguma coisinha. As roupas? Um automóvel? – ponderei contrito.

– Eu estava com pressa. Queria sair de férias. Fui dar uma voltinha. Uma desopilada. Uma espairecida. Ou você pensa que fazer o universo todo do nada é trabalho fácil? – reclamou, indignado.

– Concordo. Mas só não entendo porque demorou tanto tempo para voltar. Que férias longas – apontei com cautela.

– Já lhe disse que o tempo não existe. Pode até existir para você, que, aliás, nem sabe o que fazer com ele. Mas pra mim… – não concluiu acusador.

Achou que eu tivesse entendido, mas não entendi nada.

– Mais alguma coisa? – perguntou irônico.

– Depois que a gente morre… pra onde a gente vai? – perguntei, aflito e temeroso.

– Pra lugar nenhum. Vai ficar por aqui mesmo, apodrecendo em algum buraco. Isso se alguém não resolver lhe queimar o corpo e jogar suas cinzas num rio qualquer – esclareceu secamente.

– Poxa, mas isso não é justo – choraminguei.

– Quem decide o que é justo ou não sou Eu, o Todo Poderoso. Pois pra mim é justo. Justíssimo – rebateu tranquilo.

– Mas o que então a gente está fazendo na Terra?- inquiri surpreso.

– E eu sei lá! Vocês estão aqui e não sabem o que estão fazendo e querem ainda por cima que eu saiba – reagiu sem muita convicção.

– Mas não foi o Senhor que nos colocou aqui? – retruquei.

– Não coloquei vocês aqui coisa nenhuma! Coloquei apenas dois caras pelados e uma cobra no Paraíso– esbravejou retumbante.

– Tá bom. Pode ditar os seus novos 10 mandamentos – desisti.

– Obrigado por me permitir ditar meus mandamentos – aprendi que quando quer Deus sabe ser sarcástico.

– Mas não são 10, são 3 – emendou.

– Só!?!?- me surpreendi.

– Só! Pra que mais? Os mandamentos de Deus não são a constituição brasileira, com suas centenas capítulos, parágrafos, incisos… E, aliás, vocês nem sabem o que fazer com aquilo tudo – ironizou.

– É verdade – pela primeira vez eu concordava integralmente com Deus.

– Posso ditar? – perguntou inquisidor.

– Pode – respondi eufórico.

– Só uma coisa antes. Serão só três artigos, mas vão ter notas explicativas – esclareceu.

Eu estava gostando cada vez mais de Deus

– Mas eu posso acrescentar algumas observações, com a Sua anuência, naturalmente – e quando for necessário . O Senhor é quem decide se é ou não é oportuno ou não? – perguntei-lhe humilde e bajulador.

– Poder, poder, não pode. Mas como atrapalhei seu programa de TV vou lhe fazer uma concessão. Pode sim – concedeu, benevolente.

Agradeci e esperei embevecido.

– Primeiro Mandamento: trepar todos os dias.

– Trepar? – reagi. Não seria melhor fazer amor ou transar?

– NÃO! – trovejou.  Amor é outra coisa.  Vocês nunca entenderam isso direito. E transar é muito vulgar. Se fossem vocês e não Eu quem tivessem criado o mundo isto aqui já teria acabado numa grande esbórnia. Deixe trepar mesmo. É mais plástico – esclareceu, irritado.

– E a nota explicativa? – saí de fininho do puxão de orelhas.

– Nota Explicativa: use uma ou mais de uma das partes do corpo para trepar. Não se preocupe com o tempo, até porque o tempo não existe. Quanto mais tempo durar, melhor será – ditou, ensinando.

– Pode ser homem com homem, mulher com mulher? – perguntei, envergonhado.

– Pode ser homem com homem, mulher com mulher, homem com duas mulheres, duas mulheres com três homens… – esclareceu divinamente.

– Mas tem um problema. E se o sujeito estiver sozinho? Sem ninguém. Perdido num deserto? – tentei ser inteligente.

– Qual é o problema? Que trepe com ele mesmo. Que use as mãos. Pra que porra você acha que eu botei mãos em vocês? – lembrou com precisão.

Deus realmente é insuperável.

– Segundo Mandamento: durma depois do almoço.

– Peraí, Senhor. Tem milhões de pessoas, quiçá bilhões que nem têm o que comer; não têm emprego, não têm acesso aos direitos mais elementares… – tentei argumentar.

– PODE PARAR – reagiu, trovejante.

– Pode parar com esse seu papo de comunista. É no sentido figurado, seu ignorante. É uma licença poética – disse entre debochado e irritado.

Entendi, mas levantei outra questão – e se o sujeito tiver um trabalho daqueles que ocupam o dia todo, sem hora para nada? O patrão ou o chefe dele não vai gostar da história…

O Senhor não deu a menor confiança às minhas observações, mas esclareceu, ditando a Nota Explicativa :

– Caso seu patrão, seu chefe, seu dono, sua mulher, seu homem ou um idiota qualquer venha reclamar de sua dormidinha mande ele à merda ou à puta que o pariu e continue dormindo. Se você perder o emprego a natureza lhe proverá o sustento .

Pensei comigo que os caminhos do Senhor, às vezes, são tortuosos e intrigantes.

O Senhor olhou-me duramente.

– Posso continuar? – perguntou

– Sou o seu servo, Senhor – disse, sem saída.

– Terceiro Mandamento: Beba vinho.

– Gostei Senhor. Beber vinho realmente faz bem à saúde e alegra a vida – emendei, bajulador.

O Senhor não deu a menor confiança à minha observação e ditou a Nota Explicativa: Beba pelo menos um copo de vinho a cada hora.

– Mas, Senhor – argumentei escandalizado. No final do dia, ou até antes, um sujeito pode ficar completamente bêbado!

– E qual é o problema? O ser humano não sabe nunca quando está sóbrio ou ébrio mesmo – contra-argumentou com profunda sabedoria.

Deus é infinitamente benevolente e eu tinha mais uma questão.

– Mas Senhor, se dirigirmos bêbados podemos provocar acidente, ferir pessoas, matar. E se formos pegos numa blitz vamos ser multados, presos e podemos até ter o nosso carro apreendido pela polícia – argumentei, pesaroso.

O Senhor tem o mapa de todos os caminhos, a chave de todas as portas, a solução para todos os mistérios.

– Primeiro, seu estúpido – desta vez Ele não trovejou, só xingou – a maioria das pessoas nem carro tem. Estou admirado que um comunista como você não tenha se lembrado desse simples detalhe – espezinhou.

– Segundo, quem mais provoca acidente de automóvel é quem não sabe dirigir. E mais de 99% não pessoas não consegue distinguir a direção de um poste de luz. Então, beber ou não beber não fará a menor diferença – esclareceu.

– Terceiro, ao contrário do que dizem os idiotas dos médicos, beber faz bem à saúde. E se não fizer assim tão bem ao corpo, pelo menos faz bem ao espírito, e vai ajudá-los a enfrentar mais levemente essa existência miserável a que vocês foram condenados – sentenciou

O Senhor havia terminado. Estava resplandecente.

– Antes que o Senhor vá embora posso levantar mais duas questões? – perguntei sem temor.

– Claro. Sou todo ouvidos – disse, benevolente.

– Primeiro: se Adão e Eva tiveram apenas dois filhos homens e um, ainda, matou outro, como foi possível que o ser humano crescesse e se multiplicasse – perguntei sério.

– Boa pergunta – respondeu admirado. Não sei. Eu não estava lá. Não fiquei para ver.

– Mas o Senhor não é aquele que tudo sabe, que tudo vê, que tudo ouve? – eu estava perplexo.

– Só o que me interessa – respondeu, educado.

– Segundo: que história foi aquela de o Senhor fazer um filho numa mulher que continuou virgem depois do ato? – tirei uma casquinha.

– Não fui eu quem fez o filho e praticou o ato. Foi a pomba do Espírito Santo – defendeu-se.

– Mas por aqui pomba também tem outro sentido – insinuei.

– Então pense e tente decifrar o enigma – me desafiou.

E antes de ir, o Senhor voltou a me desafiar – você sabe o que vai fazer com isso?

– Isso o que? – me surpreendi.

– Com as leis que lhe ditei – disse quase desaparecendo.

– Não sei – confessei.

– Faça o que quiser com elas, mas não perca seu tempo enrolando as pessoas com essa conversa idiota sobre religião; não ande sobre as águas que você pode se afogar e nem tente fazer milagres que isso não funciona – e Deus desapareceu. (MTS)

“Conto Zen: O Apego”

vaso-porcelana
Reprodução

[Um dia morreu o guardião de um mosteiro Zen. Para decidir quem seria a nova sentinela, o mestre convocou os discípulos e disse:

– O primeiro que resolver o problema que eu apresentarei assumirá o posto.

Então, numa mesa que estava no centro da sala, colocou um vaso de porcelana muito raro, com uma rosa amarela de extraordinária beleza. E disse apenas:

– Aqui está o problema!

Todos ficaram a olhar para a cena: o vaso belíssimo, de valor inestimável, com a maravilhosa flor ao centro! O que representaria? O que fazer? Qual o enigma? De repente, um dos discípulos saca da espada, olha para o mestre, dirige-se para o centro da sala e… Zazzz! Com um só golpe destruiu tudo.

– Você é o novo guardião. Não importa que o problema seja algo lindíssimo. Se for um problema, precisa ser eliminado.]

Conto japonês de autor desconhecido

Teoria da Conspiração (via Magia Oriental),

“As novas (velhas) faces do conservadorismo católico”

Capanha da Frazternidade
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[“O fundamentalismo católico ganha espaço, ou ao menos anda fazendo muito barulho pela internet. Longe de ser um bloco homogêneo, o que temos são variados grupos que hoje estão irmanados por percepções da realidade muito próximas, o que nos permitiria classificá-los todos com uma expressão carregada de picardia: Catolibãs. Ou seja, católicos que agem com elevado grau de intolerância e agressividade a ponto de os tornarem comparáveis aos talibãs afegãos”, escreve Jorge Alexandre Alves, sociólogo, professor do IFRJ, participante do Movimento Fé e Política e colaborador voluntário do ISER-Assessoria.

Eis o artigo.

Três recentes episódios públicos chamaram a atenção para um tipo de catolicismo que durante muito tempo parecia estar restrito a poucos espaços e sem muito alcance social. O primeiro foi a tentativa de execrar publicamente um frade franciscano por ter celebrado uma missa em memória de Dona Marisa Letícia da Silva. O segundo episódio foi a cruzada difamatória contra a CNBB e a Campanha da Fraternidade, por meio da qual se acusa o centro de poder da Igreja do Brasil de apoiar entidades comunistas. E mais recentemente, a repercussão envolvendo o trágico assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.

Quem pensa tratar-se de episódios isolados estão enganados. Poderíamos mencionar ao menos outros cinco casos em que reações muito parecidas ocorreram, de 2016 para cá. Ao que parece, os segmentos mais conservadores do catolicismo tomaram a iniciativa e “saíram do armário”.

Em todos esses casos podemos constatar alguns elementos em comum: a presença de grupos e lideranças católicas distorcendo os fatos. Por isso, atacaram agressivamente pelas redes sociais os envolvidos nestes eventos, sejam eles pessoas vivas, organismos oficiais da Igreja ou mesmo uma pessoa executada. Reproduzem as chamadas “fake news” sem checar suas fontes e sem respeitar os princípios mais básicos da piedade cristã, propagando ódio, calúnias e inverdades. Nestes fatos, a arquidiocese do Rio de Janeiro aparece seja como local efetivo (o território da arquidiocese equivale a área do município do Rio de Janeiro) dos eventos ou como lugar das manifestações contrárias mais ácidas. Se tomarmos o caso de Marielle como exemplo, nem ao menos se respeitou a dor e o luto de familiares e amigos. Um padre carioca chegou inclusive a insinuar que o Papa não havia telefonado aos parentes da vereadora.

Outro aspecto marcante envolvendo esses episódios é a postura do clero, sobretudo de quem é investido de alguma autoridade eclesiástica. Aqui temos um problema muito sério: o silêncio condescendente, omisso ou o apoio aberto de membros da hierarquia aos extremistas confere certa legitimidade a esses grupos. Aos olhos do “católico médio” – aquele que vai à missa, segue as mídias católicas e frequenta procissões ou outras devoções – os “haters católicos” parecem contar com respaldo oficial. Isso permite que tais mensagens de ódio e intolerância desses grupos se convertam em instrumentos de cooptação de agentes de pastorais (como catequistas, músicos e membros da pastoral familiar) e leigos em funções de coordenação em nível local e diocesano. Provavelmente é o que já vem ocorrendo em muitas dioceses ou espaços eclesiais de perfil mais conservador, como na cidade do Rio de Janeiro.

Mas o que significa esse fenômeno? Quem compõe essa onda conservadora? De uma forma mais ampla parece que o fundamentalismo católico ganha espaço, ou ao menos anda fazendo muito barulho pela internet. Longe de ser um bloco homogêneo, o que temos são variados grupos que hoje estão irmanados por percepções da realidade muito próximas, o que nos permitiria classificá-los todos com uma expressão carregada de picardia: Catolibãs. Ou seja, católicos que agem com elevado grau de intolerância e agressividade a ponto de os tornarem comparáveis aos talibãs afegãos.

Em comum, além da postura agressiva manifestada através das redes sociais, reside neles uma visão de que a esquerda brasileira atual é constituída em sua totalidade por comunistas – como se isso fosse algo pejorativo… É uma compreensão tosca e anacrônica de nossa conjuntura política, porque fica parecendo que voltamos à década de 50 do século passado, no auge da Guerra Fria. E que ser “de esquerda” é necessariamente ser anticatólico. Também pensam semelhante quanto às temáticas da moral cristã. Negam-se a discutir a descriminalização do aborto, o acesso à Comunhão para casais em segunda união e propagam uma excrescência conceitual chamada de “Ideologia de Gênero”. Trata-se de expressão carente de qualquer fundamentação teórica academicamente relevante e que apenas alimenta distorções quanto às discussões de gênero nos espaços eclesiais.

Outro elemento em comum reside no ódio à Teologia da Libertação, grupos, pastorais e movimentos que se aproximam dessa perspectiva pastoral são perseguidos e difamados pelas mídias sociais, e tratados como hereges, como células comunistas dentro da Igreja. Colabora muito na disseminação deste tipo de mensagem a formação teológica do clero nos seminários diocesanos. Ela alimenta preconceitos e reforça uma certa “catequese” pela qual se transmite para os fiéis uma visão enviesada a respeito desta perspectiva teológico-pastoral.

Uma parte de bloco se constitui naquilo que se pode chamar de neointegrismo católico. É constituído por grupos e indivíduos que, a despeito dos ensinamentos e posturas do Papa Francisco, assumem posições político-religiosas que remontam a tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, quando Pio XII ainda era Papa. Não são numerosos, mas fazem bastante barulho pelas redes sociais e parecem ter cada vez mais seguidores. Alguns desses grupos contam com o apoio de autoridades eclesiásticas, como acontece na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Lá, o silêncio do arcebispo sobre os últimos eventos trágicos na cidade, a postura de membros proeminentes do clero ou com funções importantes na estrutura diocesana, e o apoio de um bispo-auxiliar a um dos mais extremistas destes grupos, ratifica essa observação.

No mesmo campo estão setores radicalizados do pentecostalismo católico, residentes principalmente em algumas das ditas comunidades de vida e aliança. A uma delas praticamente foi entregue a coordenação e a organização da Jornada Mundial da Juventude, em 2013, alijando do processo a Pastoral da Juventude, por exemplo. A outra se constituiu em um grande império midiático e centro de disseminação de sua vertente católica, localizado no interior de São Paulo. Recebem peregrinos e visitantes de todo o Brasil semanalmente. Em muitos aspectos se parecem com as igrejas evangélicas pentecostais, promovendo um cristianismo de perfil intimista, que insiste no caráter mágico do sagrado. Defendem uma espiritualidade centralizada no louvor desconectado da realidade, no êxtase religioso e na cura divina. Sua marca católica está no resgate das práticas medievais de piedade popular – como a reza do terço e a adoração ao Santíssimo, na devoção mariana e a aparente obediência ao Papa.

Por outro lado, as mídias católicas que estes segmentos gerenciam vêm promovendo figuras que estão na contramão dos ensinamentos de Francisco. Destacam-se um dito professor leigo e um padre cuja indumentária lembra os tempos Pré-Conciliares. Este clérigo mantém um canal no YouTube, mas é sabido que foi afastado de suas funções de professor no seminário de sua diocese, e que houve um manifesto contrário à sua pregação assinado por 40 sacerdotes em sua cidade. Recentemente sua visita ao seminário diocesano do Rio de Janeiro causou espanto a segmentos progressistas da Igreja, que ignoravam que o padre em questão fazia palestras todos os anos aos seminaristas deste local.

Completam esse bloco grupos tradicionalistas já conhecidos, como a Opus Dei. Dentre todos talvez seja o de maior poder financeiro e influência política. Têm ligações com governantes, juristas, além de espaço garantido na grande imprensa. Outros como Arautos do Evangelho e Legionários de Cristo, ambos sob investigação do Vaticano, também fazem parte de campo ultraconservador. Caracterizam-se mais pelo elitismo de suas ações e pelo formalismo de suas regras, vestes e falas. Ainda que não o façam de forma pública, é sabido que se opõem aos ensinamentos do Papa Francisco.

Este campo, longe de representar a maioria dos católicos no Brasil, começa a se posicionar publicamente de forma mais aguerrida, sem que a CNBB ou um dos cardeais brasileiros na ativa se manifeste em relação a eles. Ao contrário, o que parece é que estes grupos conseguiram, ainda que preliminarmente, emparedar o episcopado brasileiro. Ou será que contam com o apoio tácito de parcela representativa dos bispos?

Cabe ainda, para concluir, uma outra reflexão. A arquidiocese do Rio de Janeiro sempre foi um bastião do conservadorismo católico, no qual grupos ultraconservadores sempre tiveram livre trânsito e um protagonismo que não se via em outras dioceses brasileiras, salvo em poucos lugares até 25 anos atrás. Esse caldo de cultura religiosa acabou por formar uma geração inteira de leigos dentro uma visão estreita da fé cristã e do seguimento de Jesus. Além disso, tais grupos controlam a formação oferecida no Seminário São José, a ponto dos seus estudantes – oriundos de muitas dioceses brasileiras – não fazerem seus estudos teológicos na PUC-RJ. Por sinal, o seu curso de Teologia, que já foi dos mais prestigiosos do Brasil, hoje sobrevive a duras penas, dada a pressão conservadora sobre os padres jesuítas que administram a universidade.

Assim, podemos desconfiar se a conjuntura eclesial carioca não começa a se reproduzir em todo o país. Se isso for confirmado, entender quem são os protagonistas no contexto diocesano do Rio de Janeiro nos ajudaria a compreender melhor os meandros do conservadorismo católico brasileiro. Uma vez que ele, ao que parece, está “saindo do armário”, não seria a estrutura eclesiástica da arquidiocese do Rio de Janeiro e seu modus operandi um modelo que começa a ser imitado em escala nacional? Fenômeno que merece ser observado atentamente.]

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Kafka

Kafka
Reprodução

[Estou lendo os 3 volumes da biografia do Kafka nas últimas semanas, surpreso comigo mesmo por conseguir progredir em um bom ritmo na leitura. Ele teve uma vida sem eventos significativos que orbitou em torno de algumas obsessões compulsivas incluindo sua necessidade incontrolável de escrever e seu ouvido perfeito para a literatura. Foi a compulsão por escrever que fez deste advogado de seguros que não podia se comprometer com o amor ou escapar dos seus pais um dos profetas da era moderna. Sua percepção sobre o efeito desumano da burocracia e o senso de opressão pessoal e alienação causado pela vida contemporânea ainda carregam significado para nós com uma intensidade comovente.

No livro O Processo ele descreve a influência doentia de estruturas injustas de poder que esmagam os inocentes. A narrativa da Paixão do julgamento show no qual Jesus é condenado à morte evoca o mesmo cenário de pesadelo quando a paranoia é exposta como não imaginária e nós vemos que somos de fato o alvo inocente de inimigos maldosos.

Mas com Jesus este pesadelo de perseguições, apesar de tão reais quanto um expurgo Stalinista, não o sobrepujam como a vítima inocente. Isso ocorre simplesmente porque ele não se permite ser identificado como uma vítima. Ele é um sacrifício. Então há um resultado bem diferente.

Para uma pessoa religiosa – de qualquer fé – a cumplicidade das autoridades religiosas na injustiça cometida contra Jesus é profundamente perturbadora. Então, para o pastor Luterano e teólogo Dietrich Bonhoeffer, foi a pessoal responsável por conformidade das igrejas Cristãs junto aos Nazistas. Nestes casos nós vemos — assim como hoje com a aliança da Igreja Russa com o seu regime político — como poder, falsa prudência e privilégios corrompem a fé.

O poder é um fluxo de energia. Se, originado de qualquer fonte, carregar o vírus da corrupção então carregará este vírus para todas as partes do sistema. Conforme a monstruosa corrupção do poder se vira pessoalmente contra ele, Jesus a confronta com racionalidade (“Se o que eu disse está certo, por que você me bate?”), calma e silêncio. O seu próprio poder, fluindo diretamente da sua fonte de ser, confronta e engaja com o poder sistemicamente corrupto detido por aqueles que o declararam como o inimigo.

Quando o poder é corrompido, as sombras mais escuras da natureza humana aparecem, do topo à base da hierarquia. O sadismo dos campos de morte, ou o genocídio de Srebrenica, ou o tratamento desumano em Guantánamo autorizado por políticos civilizados em Capitol Hill (Washington) são refletidos na tortura e crueldade descritos na narrativa da Paixão.

Pilatos, o político de supremo sucesso, é a divisória deste confronto entre o poder puro e corrupto. Sua pergunta perturbadora “o que é a verdade?” responde a si mesma quando ele lava as suas mãos da injustiça que ele permitiu. Todo sistema de poder a partir daí enxergará — e para sempre será afetado — ao enxergar a vítima inocente como a única personagem a sair deste drama de corrupção com integridade.]

Texto original em inglês

[I have been reading the three-volume biography of Kafka for some weeks, surprised at myself for plodding through it. He had an uneventful life revolving around a few compulsive obsessions including his irrepressible need to write and his perfect ear for literature. It was the compulsion to write that made this insurance lawyer who could not commit to love or escape from his parents one of the prophets of the modern era. His insight into the dehumanizing effect of bureaucracy and the sense of personal oppression and alienation caused by contemporary life speaks to us still with moving intensity.

In The Trial he describes the sickening influence of unjust power structures crushing down against the innocent. The Passion narrative of the show trial at which Jesus was condemned to death evokes the same nightmare scenario when paranoia is exposed as not imaginary and we see that we are indeed the innocent target of malevolent enemies.

But with Jesus this nightmare of persecution, though as real as a Stalinist purge, does not overwhelm him as the innocent victim. This is because he simply does not allow himself to identify himself as a victim. He is a sacrifice. And so there is a quite different outcome.

For a religious person – of any faith – the complicity of religious authorities in the injustice committed against Jesus is deeply disturbing. So, to the Lutheran pastor and theologian Dietrich Bonhoeffer, was the compliance of the Christian churches with the Nazis. In these cases we see – as today with the alliance of the Russian Church with its political regime – how power, false prudence and privilege corrupt faith.

Power is a flow of energy. If, from whatever source, it bears the virus of corruption it carries it to every part of the system. As the monstrous corruption of power turns personally against him, Jesus confronts it with rationality (‘if I have said nothing wrong why do you strike me?’), equanimity and silence. His own power, flowing directly from his source of being, confronts and engages with the systemic corrupt power held by those who have declared him to be the enemy.

When power is corrupted, the darkest shadows in human nature surface, from top to bottom of the hierarchy. The sadism of the death camps, or Srebrenika, or the inhumanity at Guantanemo authorized by civilized politicians on Capitol Hill are reflected in the torture and cruelty described in the Passion narrative.

Pilate, the consummate successful politician, is the foil of this confrontation between pure and corrupt power. His creepy question ‘what is truth?’ answers itself as he washes his hands of the injustice he has permitted. Every power system thereafter will see – and be forever disturbed – by seeing the innocent victim as the only character to walk away from this drama of corruption with integrity.]

  1. Laurence Freeman, in Comunidade Mundial para a Meditação Cristã. Quarta-feira da Semana Santa. Leitura de Quarta, 28 Março 2018.

O conhecimento está dentro de nós

Tao
Reprodução: Science and Nonduality (Tao-Te-Ching-1ª)

[De acordo com o Tao-Te-Ching, antigo texto da sabedoria chinesa, o modo de vida correto depende da sabedoria; e a sabedoria consiste de um paradoxo tão radical quanto o que encontramos nas bem-aventuranças e no significado da história de vida e morte de Jesus. O Tao-Te-Ching, assim como Jesus, se utiliza de linguajar popular, e não de um tom pretensiosamente intelectual.

Trinta raios unem-se em um cubo

É precisamente onde nada há que encontramos a utilidade da roda…

Talhamos portas e janelas

É precisamente nesses espaços vazios que encontramos a utilidade do aposento.

Nesta tradução o termo “precisamente” chama a nossa atenção. Respeitamos e exigimos precisão, o termo correto, o relatório financeiro acurado, a abordagem correta a uma situação. Empresas e governos gastam fortunas procurando atingir uma aparente precisão. Trata-se do novo “virtuoso” e um valor universal em uma era onde todas as coisas devem ser provavelmente úteis.

No entanto, utilizada nesse contexto de sabedoria, numa metáfora poderosa, mas mundana, a precisão não é o mesmo que prova científica. E, porque o método científico é o nosso mais elevado valor, é fácil menosprezar termos como esses acima citados como sendo mera sabedoria popular. Podemos ler isso no trem para o trabalho, ou na cama antes de dormir, mas não nos sentimos desafiados a aplicar isso na verdadeira maneira como vivemos ou como operamos nossas instituições.

Nosso sistema materialista de valores gira em torno de utilidade verificável. Qual a razão de ser de algo que não produza benefícios óbvios? Naturalmente, a sabedoria trata de tornar a vida melhor, ainda que não necessariamente óbvia. Lao Tse, e a história do Evangelho na qual seremos mergulhados na próxima semana, provam uma tese muito perturbadora. O mais útil pode ser o menos óbvio.

A meditação é uma via de sabedoria. Trata-se de uma via estreita, na maneira que Jesus quis dizer quando afirmou que o caminho para a vida é estreito. Porém, essa qualidade de estreitamento produz imensa expansão, do mesmo modo que duas linhas convergentes que se encontram em um ponto ricocheteiam afastando-se numa trajetória de infinita expansão. Um ponto é infinitamente pequeno; ele tem posição, mas não tem magnitude.

Compara-se à vacuidade de uma janela, ou ao cubo de uma roda, assim como a própria morte.

Temos uma dívida incomensurável com aqueles que transmitiram sabedoria em todos os campos que ilustram isso de maneira que possamos entender, ainda que por fugaz momento antes que novamente o esqueçamos. Esses mestres de sabedoria não são como os loquazes consultores que são remunerados por palavra ou pela extensão de um relatório. Eles dizem tudo em quase nada.

Esse é o ponto de minha fracassada tentativa de minimalismo quaresmal em que eu deveria parar.]

Texto original em inglês

[According to the Te-Tao Ching, an ancient Chinese wisdom text, right living depends on wisdom; and wisdom consists in a paradox as radical as that we find in the Beatitudes and the meaning of the story of the life and death of Jesus.

The Te Tao Ching, like Jesus, uses homely language not a hifalutin intellectual tone.

Thirty spokes unite in one hub
It is precisely where there is nothing that we find the usefulness of the wheel …

We chisel out doors and windows

It is precisely in these empty spaces that we find the usefulness of the room

The word ‘precisely’ in this translation engages our attention. We respect and demand precision, the right word, the accurate financial report, the correct assessment of a situation. Businesses and governments spend fortunes trying to achieve the appearance of precision. It is the new ‘virtuous’ and a universal value in an age where everything must be probably useful.

Used in this wisdom context, in a powerful but mundane metaphor, however, precision is not the same as scientific proof. Because the scientific method is our very highest value, it is easy to dismiss words like those above as mere folk-wisdom. We may read it on the train to work or in bed at night but we don’t feel challenged to apply it to the actual ways we live or run our institutions.

Our materialist value-system revolves around verifiable usefulness. What’s the point if something doesn’t produce obvious benefits? Naturally, wisdom is about making life better but not necessarily obvious. Lao Tzu – and the gospel story we will be plunged into next week – make a very disruptive point. The most useful may be the least obvious.

Meditation is a wisdom path. It is a narrow one – in the way Jesus meant when he said that the way to life is narrow. But its narrowness produces immense expansion in the way that two converging lines, meeting in a single point, ricochet outwards into an infinitely expanding trajectory. A point is infinitely small; it has a position but no magnitude.

It is like the emptiness of a window or the hub of a wheel, like death itself.

We owe an immeasurable debt to the transmitters of wisdom in every field who illustrate this in ways we can understand, even for a fleeting moment before we forget again. Such teachers of wisdom are not like loquacious consultants paid by the word or the length of a report. They say everything in almost nothing.

At which point in my failed attempt at Lenten minimalism I should stop.]

  1. Laurence Freeman, in Comunidade Mundial para a Meditação Cristã. Segunda-feira da Quinta Semana da Quaresma. Leitura de Segunda, 19 Março 2018.