“O Brasil perdido, num mundo em transe”

Beuzzo
Fotomontagem CartaMaior

[No jogo econômico e geopolítico global de hoje, as principais cartas estão colocadas por um gigante do Oriente. “A escalada da China não tem como ser contida. A não ser que se tente fazer uma coisa de enorme violência“, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo.

O que a China fez foi se encaixar de maneira adequada na globalização, proposta pela expansão americana financeira e produtiva”, diz. Prova disso é que os chineses estão comprando empresas em todo o mundo. Inclusive no Brasil, nos setores estratégicos de energia e petróleo.

Por outro lado, os Estados Unidos continuam a possuir uma carta fundamental no jogo da economia e finanças globais: o dólar. “É o ativo em que o mercado confia.” O resultado da complexa disputa pelo protagonismo mundial ou por posições estratégicas não está claro, considerando que o mundo passa por uma transição que parece apontar para o fim da hegemonia neoliberal, mas sem horizontes muito claros.

Acho que estamos num momento de passagem, não sabemos bem para onde. Eu diria que o arranjo internacional está moribundo, está sendo fundamentalmente sustentado pela exceção chinesa, que é uma parte do conjunto”, diz Belluzzo. “Acho que esse arranjo proposto lá atrás, nos anos 80, que o pessoal chama de neoliberalismo, está moribundo, mas não morre.

Enquanto isso, o Brasil é hoje apenas formalmente parte integrante do Brics – bloco em que está ao lado de Rússia, Índia, China e África do Sul –, pois na prática perdeu completamente o protagonismo e caminha por uma opção geopolítica equivocada, ao reaproximar-se da esfera norte-americana.

Estamos fazendo uma aproximação geopolítica errada. Os chineses estão entrando aqui e não estamos exigindo ou negociando nada com eles.” E, no Brics, o Brasil de Michel Temer “não faz nada”.

Principalmente porque, segundo Belluzzo, sob o governo de Michel Temer e seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, o país está sem comando. “Eles não têm noção de nada, não têm noção do que estão falando”, diz o economista. “Conheço bem o presidente da República. Ele tem uma inteligência bem restrita”, garante Belluzzo.

Leia a entrevista:

Recentemente o FMI informou que a dívida global chegou a 225% do PIB mundial, com valor de U$ 164 trilhões. Como interpreta esse dado? 

Depois da crise de 2008-2009, os bancos centrais entraram firmemente para impedir que a crise se espalhasse de maneira incontrolável e bloqueasse os mercados interbancários, que ficaram paralisados. Sem a presença dos bancos e dos mercados financeiros numa economia como a de hoje, haveria um colapso de grandes proporções. Vamos olhar as dívidas públicas. A do Japão, por exemplo, é de mais de 200% do PIB, o que já vem dos anos 90 pelas operações que fizeram, para segurar a economia japonesa, depois da crise iniciada em 1989.

Em 2006, antes da crise, a dívida pública dos Estados Unidos estava em torno de 60% do PIB, e hoje está em torno de 110%. Por que subiu a dívida pública? O governo americano gastou mais em infraestrutura, obras públicas? Não. Foi porque o tesouro foi obrigado a socorrer os bancos, com títulos da dívida pública, o título considerado mais seguro, a cúspide do sistema financeiro internacional. É o ativo em que o mercado confia. Quando há insegurança maior, todo mundo corre para o título da dívida pública americana.

Então aumentou a dívida pública americana por causa dessa operação. Em seguida, por causa das taxas de juros muito baixas, os fundos e bancos de investimento começaram a se re-alavancar. Há uma tremenda expansão do crédito intra-financeiro e também para as empresas transnacionais.

O excesso de liquidez – muito dinheiro considerado confiável, o dólar americano – forçou o endividamento das empresas da periferia. No Brasil, por exemplo, as empresas privadas começaram a tomar muita dívida em dólar, sobretudo porque era barato, a taxa de juros baixa. Então há um endividamento elevado das empresas brasileiras em dólar. Isso foi percebido agora, porque o dólar começou a ficar caro e isso afeta o estoque de dívida das empresas.

Isso globalmente…

Globalmente: Turquia, Brasil, Índia, vários países que fizeram endividamentos altos. Quando se desvaloriza o dólar, o Federal Reserve (banco central americano) deu sinal de que poderia começar a diminuir a compra de ativos privados, o seu papel de market maker, como comprador e vendedor nos mercados secundários. Quando ele começou a dar o sinal, correu todo mundo pra sair das posições nos países que estavam com moeda valorizada. Esse é o fenômeno da extrema dependência que os países têm dos movimentos da política monetária americana. Ela dá um soluço lá, isso afeta todo mundo.

Essa discussão não é feita no Brasil, porque os economistas de bancos não querem saber dessa história. Eles querem dizer que o Brasil tem essa vulnerabilidade, a despeito das reservas altas (U$ 380 bilhões), porque a situação fiscal é ruim. A situação fiscal é ruim no mundo inteiro, porque todas as moedas se desvalorizaram em relação ao dólar. Todas. Menos algumas, como o yuan chinês, porque eles têm uma política de controle de câmbio.

Está existindo uma fuga de investidores de países emergentes?

Isso é um pouco mais complicado, porque você opera nos mercados futuros. Você muda a posição de estar vendido em dólar para ficar comprado. É uma mudança de posição dos seus estoques de riqueza. Por exemplo, quando o investidor percebe que vai haver uma desvalorização do real ele deixa de apostar no real e passa a apostar no dólar…

Mas está acontecendo isso?

Claro que está. Mas o Brasil tem uma proteção (as reservas). A questão central é que você não pode ter um preço tão fundamental, como o câmbio, sujeito a essas flutuações, a essas incertezas. Quem fez um projeto de aumento da produção em cima do aumento das importações, quando dá uma paulada dessa no dólar, ele fica a perigo, da mesma maneira que o exportador, quando faz um projeto de exportação com uma taxa de câmbio a R$ 3,70 e ela cai para R$ 3,20, por exemplo, os planos dele ficam ameaçados. Essa volatilidade do câmbio, uma característica da economia atual, sempre nos deu problema, e nos deu mais problemas quando estávamos mais desprotegidos.

Vamos lembrar do Fernando Henrique Cardoso, que ninguém lembra. Ele fez a estabilização com câmbio fixo, destruiu uma parte da indústria brasileira. Lembro do (José) Mindlin me falando que ia vender a Metal Leve, porque não aguentava mais. Hoje ninguém fala nada, eles (os empresários) levam na cabeça e devem achar bom, viraram rentistas também. Mas o Fernando Henrique fez essa aposta, valorizou o câmbio, destruiu uma parte da indústria brasileira importante, sobretudo as cadeias produtivas, danou o setor de bens de capital e carregou isso ao longo dos anos 90, meados de 94 até 98, quando houve uma sucessão de crises cambiais – México em 94, Ásia em 97, depois Rússia, Brasil e Argentina. Mas para os economistas da banca não aconteceu nada, era só para os países que estavam com suas situações domésticas ruins.

Viemos de uma dívida pública, que Collor deixou, de aproximadamente 30%, e chegou a cerca de 70% do PIB. A economia cresceu pouco, taxa média de 2,5%, e só fomos nos recuperar a partir de 2003…

Com Lula…

Com Lula. Na época, houve um choque brutal de commodities e de demanda na economia mundial. Isso beneficiou muito os países que tinham um setor de agronegócio muito forte, como Argentina e Brasil. A Argentina cresceu até mais que o Brasil, 8,5%, 9% nesse período. Lula pegou esse momento e fez as políticas corretas de inclusão, foi muito hábil nisso. Colocou 40 milhões de pessoas para dentro da economia, não é pouca coisa, é um prodígio. Mas isso tem a ver com ciclo de commodities, ainda que ele tenha mantido a tendência de valorização do câmbio. A indústria continuou a perder peso. A indústria brasileira tinha uma participação de 25% do PIB no início dos 80 e passou a ter 12% (dados recentes do IBGE).

Passamos a década de 80 inteira, a “década perdida”, tentando resolver o problema dos efeitos da dívida externa, efeitos fiscais – porque houve estatização de dívida pelo Tesouro –, incapacidade  de pagamento, várias cartas de intenção com o FMI. A economia tinha momentos de crescimento e queda sucessivos. Saímos da crise em 94, com o Plano Real. Por quê? Porque tínhamos 40 bilhões de reserva.  Aí começa o negócio de privatização. A economia mundial já estava se tornando o que ela é hoje, muito inclinada a tirar proveito da propriedade, que é o rentismo, em vez da produção. Vieram para cá e compraram as empresas brasileiras.

Mais ou menos como hoje?

Sem dúvida. Dizem: “vamos melhorar a eficiência das empresas”. Mentira. Pergunta se o setor elétrico melhorou a eficiência ou se aumentou as tarifas brutalmente. Não tem nada a ver com eficiência.

Na verdade, no caso da energia elétrica, é a produção de um insumo universal. Todo mundo usa. Na China e nos países asiáticos, os setores que produzem insumos universais são públicos para ajudar o setor privado, permitir custos baixos. Aqui não se faz a discussão das inter-relações entre privado e público. Isso é que é o capitalismo!

O Brasil ainda está no pré-capitalismo, então?

O Brasil já fez capitalismo em alguns momentos (risos). Tentou fazer com Getúlio, Juscelino, até com os militares, independentemente das tropelias que eles fizeram.

Como a economia de um país grande como o Brasil pode se sustentar com a indústria na situação atual?

Virou uma espécie de consenso entre os economistas do mercado ou próximos a ele que a indústria não é importante. Você pode produzir banana e produzir computadores que é a mesma coisa. Não é só uma regressão na estrutura produtiva, é uma regressão mental, achar que tudo é a mesma coisa.

Os chineses disseram em Davos que “quem acredita que vai fazer dinheiro se houver uma crise na China está equivocado”. Eles estão bastante seguros de sua posição, não?

Eles estão crescendo em torno de 6,5%, 7%. A taxa média de crescimento deles era 10% nos anos 90 e mesmo no começo dos 2000. Mas eles fizeram agora um Congresso do Partido Comunista. São muito prudentes, administram de acordo com as circunstâncias. Estão fazendo uma transição, saindo de uma economia que era muito dependente do saldo da balança de transações correntes. Quando você vende mais do que compra, essa diferença é importante. Quando esse saldo é positivo, você vende mais do que compra, injeta demanda na economia.

O resultado das exportações menos as importações teve um papel muito importante no crescimento deles. Eles tinham uma capacidade de estímulo ao investimento muito grande, com bancos públicos e taxas de juros muito baixas. Tinham taxas de juros muito baixas porque não tinham que prestar contas ao capital de curto prazo que queria especular. É como disse um chinês: “nós abrimos, mas botamos uma tela, para só entrar o que interessa, não entrar mosquito”.

Eles têm projetos importantíssimos tanto na área financeira quanto na produtiva, articulando as duas coisas. As finanças para eles são muito importantes, uma coisa importante do capitalismo, desde que controlada, para financiar o gasto produtivo. É o contrário dos emergentes, onde o sistema financeiro é perverso, só serve pra perturbar.

A chamada nova rota da seda está assustando os Estados Unidos, por exemplo…

Sim. Para ser claro: essa escalada da China não tem como ser contida. A não ser que se tente fazer uma coisa de enorme violência. O capitalismo é um sistema autotransformador. Se você tiver a embocadura certa no momento em que a transformação está ocorrendo, você vai se beneficiar. O que a China fez foi se encaixar de maneira adequada na globalização, proposta pela expansão americana financeira e produtiva. Eles se beneficiaram porque perceberam a articulação necessária.

Agora eles estão na segunda etapa. Na primeira, até meados de 2000, até a crise, eles tinham 4 trilhões de dólares de reservas, que acumularam com as exportações líquidas e com a entrada de capitais produtivos. Hoje eles têm 3 trilhões. Mas eles não jogaram reservas fora. Eles precisam também diminuir a pressão que tinham no seu mercado financeiro da entrada de dinheiro estrangeiro, que não era especulativo, e em segundo lugar estão mudando a composição da riqueza deles, do portfólio. Eles saíram dos títulos e estão comprando empresa em tudo quanto é lugar. Veja quantas empresas de energia eles estão operando hoje no Brasil.

E na área de petróleo…

Sim, mas não é só no Brasil. Compraram empresas na Europa, na África…

No futuro vamos ser todos chineses?

Se deixar, vamos.

E a questão do Brasil nos Brics hoje?

Estamos no Brics, mas o Brasil não faz nada. Conheço bem o presidente da República. Ele é um provinciano, para não dizer outra coisa. O mínimo que ele pode dizer é o seguinte: que nós regredimos 20 anos em dois (risos). Ele tem uma inteligência bem restrita. Frequentava meu grupo político no tempo da faculdade. Não era capaz de dizer uma coisa interessante, e continua do mesmo jeito. Nunca teve protagonismo. Virou presidente da República. São os fenômenos brasileiros.

Temos presença nos Brics, mas não temos projeto, não apresentamos nada. O Banco Central fez o favor de tirar o nosso vice-presidente lá, o Paulo Nogueira Batista, que tem capacidade de entender essas coisas, porque eles acham que têm que fazer uma aproximação com os Estados Unidos, que não é uma economia desprezível nem decadente, mas não promete dinamismo para nós. O Trump nunca se referiu ao Brasil.

Estamos fazendo uma aproximação geopolítica errada. Os chineses estão entrando aqui e não estamos exigindo ou negociando nada com eles.

Como comparar os países ibéricos Espanha e Portugal, que está fazendo políticas mais sociais do que a Espanha e está dando certo?

Portugal fez uma trajetória de um compromisso de centro-direita e centro-esquerda que está levando ao abandono das políticas de austeridade, que melhorou muito a situação nos últimos anos. Já a Espanha sofreu uma crise imobiliária muito grave em 2007 e 2008. Continua com uma taxa de desemprego altíssima. Está mais ou menos estagnada. Portugal é um país peculiar, porque é muito pequeno, tem dez milhões de habitantes. A Espanha tinha um superávit fiscal de 2,5% nominal e uma dívida pública de 25% do PIB. É nada. Em compensação, uma tremenda dívida privada que vinha pelo lado imobiliário.

Quem financiava a Espanha eram os bancos alemães e franceses. Para ver como são essas conexões. Então, a Espanha tinha superávit fiscal, um endividamento privado brutal, maior que o dos EUA, se medir per capita, e um déficit em conta corrente de 8% do PIB. Ou seja, virou uma importadora líquida. Quando deu a crise global, levou uma paulada, o déficit público subiu às alturas, os endividados espanhóis quebraram.

Como vê a situação argentina? O Brasil pode ir pelo mesmo caminho?

O Brasil está mais defendido, com o colchão (das reservas), que não impede que você tenha flutuações indesejáveis no câmbio. A volatilidade do câmbio é tão danosa quanto o câmbio valorizado, que deixamos durante anos, inclusive no período de bonança que tivemos entre 2002 a 2010. O Brasil reagiu muito bem à crise de 2009, conseguiu se colocar numa posição melhor que muitos outros países. Mas a Argentina tem uma recorrência de crises cambiais. Eu citaria várias. A crise da divida externa dos anos 70, por exemplo, quando o país viveu de maneira imprudente porque não sofreu tanto como o Brasil com o choque do petróleo, já que a Argentina era produtora de petróleo. Mas o Martínez de Hoz, um economista bem convencional, resolveu endividar a Argentina.

Tensões geopolíticas, como no Oriente Médio, por exemplo, poderiam desencadear uma crise econômica global grave?

Acho que estamos num momento de passagem, não sabemos bem para onde. Eu diria que o arranjo internacional está moribundo, está sendo fundamentalmente sustentado pela exceção chinesa, que é uma parte do conjunto. Então, acho que esse arranjo proposto lá atrás, nos anos 80, que o pessoal chama de neoliberalismo, está moribundo, mas não morre. Do ponto de vista geopolítico e geoeconômico, que são inseparáveis, as transformações da economia global foram muito importantes e tiveram implicações geopolíticas. E o que aparece agora como geopolítico é o protagonismo da China, mas isso nasce de um arranjo geoeconômico.

Não há como não aparecer essa dimensão política. Não existe a economia tal como os economistas a concebem hoje, como um conjunto de abstrações; a economia está colada ao social e ao político. Essa coisa do Oriente Médio está inscrita dentro disso. Na verdade os Estados Unidos produziram o Estado Islâmico, ao dizimar o Iraque, dizimar a Síria. Isso é uma coisa de hospício, uma coisa absurda, você destruir as estruturas sem saber qual a sua história, sua natureza.

Quando se vê Michel Temer e Meirelles falarem da economia, não dá impressão de que eles estão fora da realidade?

Mas isso é típico do Temer e do Meirelles. Eles não têm noção de nada, não têm noção do que estão falando. Isso acontece na história da humanidade. Você está na mão de dois sujeitos que estão no planeta Netuno, não têm nada a ver com a realidade do seu país.

Mas não existem forças por trás deles?

Claro, é evidente que existem. Falo disso num livro que escrevi com o Gabriel Galípolo, que chama Manda quem Pode, Obedece quem tem Prejuízo. É a estrutura de poder concentrada exatamente nos mercados financeiros. Temer e Meirelles são a expressão física disso, que eles refletem sem saber. Veja o que a imprensa diz o tempo inteiro dos atuais candidatos à presidência. “Fulano de tal será bem recebido pelos mercados?” Onde está o poder real?

As pessoas não percebem, mas são vitimadas por um sistema que concentra o poder e entrega a esses cidadãos que estou mencionando, que são provincianos, têm uma visão tola de como as coisas funcionam. Se tivessem uma visão mais clara, mais profunda, eles não proporiam essas coisas que propõem. Outro dia o Meirelles disse que a economia voltou a se expandir. Em que mundo ele está? Não sei.]

Por Eduardo Maretti, da RBA – Em Outras Mídias

Revelações da CIA não trazem novidades e não devem mexer com a corrida eleitoral

Ernesto
Reprodução

As revelações de documentos da CIA (a agência norte-americana) a respeito da responsabilidade do ditador Ernesto Geisel na eliminação de opositores e adversários da ditadura militar não deveriam surpreender ninguém.

Olhando-se pelo prisma da prática repressiva, a ditadura militar brasileira fez um trabalho “perfeito”, tanto que praticamente aniquilou com facilidade e rapidamente os opositores e as guerrilhas rural e urbana, como ainda teve tempo de exportar mecanismos repressivos para países vizinhos – na Operação Condor.

Seria inimaginável, isso sim, que Geisel ou outros ditadores quaisquer não tivessem conhecimento do que ocorria nos chamados “porões da ditadura” e a eles não dessem aval e ordens.

Nesse sentido, é irrelevante o que publicou a Folha de São Paulo, há alguns anos, denominando a ditadura brasileira de “ditabranda” – um neologismo ridículo e provinciano, usado para fazer comparações impróprias com o que ocorreu no Chile, na Argentina e no Uruguai.

Portanto, não creio que, como muito gente está açodadamente já dizendo e escrevendo, a revelação vá servir para desmoralizar o jornal paulista, que cometeu a temeridade de dizer essa estupidez.

Há também, e isso até mesmo dentro da “grande imprensa”, quem veja no fato um detonador para a campanha de Jair Bolsonaro.

Aqui igualmente trata-se de um açodamento bobo e infantil.

Na prática, porém, o fato não deve mexer com um ponto sequer nas pesquisas de intenção de votos que hoje apontam Bolsonaro como líder – sem o Lula.

Mais provável é que as revelações da CIA venham alavancar a candidatura do parlamentar fluminense ou, na pior das hipóteses, a ele serem indiferentes.

A parcela da sociedade que apoia no parlamentar fluminense almeja isso mesmo: que os “inimigos comunistas” sejam eliminados a qualquer custo.

Se Bolsonaro for “esperto” e ”suficientemente cínico” deverá surfar nessa onda.

As esquerdas, por seu turno, deixaram passar uma oportunidade espetacular no mês de junho de 2013, quando se iniciaram os protestos de rua em São Paulo.

Menosprezaram aquela parcela jovem da sociedade brasileira, estigmatizaram a classe média nacional e o resultado não demorou a aparecer; resultado que deverá ter um desfecho bastante indigesto para as esquerdas nas eleições deste ano, correndo-se, inclusive, o risco de a população nacional eleger exatamente um sujeito como Jair Bolsonaro e um congresso pior do que este que aí está. (MTS)

Um passeio pelo centro de São Paulo é muito ilustrativo e um bocado chocante

Moradores de rua
Foto Obvious (alterada)

Visitar a área central de São Paulo (o centro velho e o centro novo) é uma aventura muito interessante, bastante criativa, um bocado ilustrativa e nada edificante.

Trata-se de uma área muito decadente, apesar dos esforços revitalizadores da antiga prefeita petista Martha Suplicy [1].

Nessas áreas a gente vê incêndios, como o da semana passada, no Paissandu [2], e um número inacreditável de moradores de rua, ou vivendo em situação de rua, como gostam de dizer os puristas do politicamente correto, como se mudanças de denominações fossem alterar alguma coisa, e minimizar o sofrimento dessa gente.

Apenas na capital paulista moram de 20 a 25 mil pessoas (estima-se – são dados do ano passado), mas não se sabe ao certo quantas pessoas estão nessas condições em todo o Estado, a tal da locomotiva que puxa o Brasil (pra onde será?) e o Estado mais rico da federação.

No Brasil todo esse número flagela 101 mil pessoas.

Será que podemos dar um viva ao Capitalismo?

Na minha modestíssima opinião esses números estão todos defasados e são um bocado falsos.

Mas vamos trabalhar com o que temos em nossas mãos.

Estive hoje perambulando pela região do Tietê (pela rodoviária) – que não fica na área central da capital paulista – e pela Luz – área contígua ao centro velho e bastante decadente, talvez a mais decadente de todas as decadências paulistanas.

Não percebi, mas passei, ao lado da estação da Luz, por uma moradora de rua bastante jovem.

Isso é a tal da invisibilidade – passamos por essas pessoas e não as percebemos, ou pior: não queremos vê-las.

Quando voltei, fiquei frente a frente com a jovem que estava sentada no chão e visivelmente drogada. [3]

Ela não me pediu, mas piedosamente dei-lhe um dinheirinho – provavelmente para aplacar a minha vergonha por não tê-la visto.

Foi um tiquinho de nada – um real e pouco – não contei.

Ele me agradeceu educadamente, olhou-me com um sorriso nos lábios e perguntou-me se eu a tinha percebido.

Foi um troço chocante, e sem pieguismo algum deixei escorrer algumas lágrimas.

Mais à frente outra moradora de rua – esta negra.

Ela não me viu, pois estava entretida em tossir.

Não sei distinguir uma tosse da outra (tosse é um sintoma), mas me ocorreu que ela pudesse estar tuberculosa, coisa muito comum no meio dessa gente abandonada e submetida a todo tipo de atrocidades não apenas por parte da população, mas também da polícia que deveria zelar por suas seguranças – vulneráveis que são elas.

Tenho observado um número crescente de moradoras de rua, qual seja, de mulheres, coisa que não se via há algum tempo, ou eu, desavisadamente, não conseguia perceber.

Só nesse trajeto da Luz encontrei, como disse acima, duas; aqui em Cotia já contei algumas e. em Brasília, várias.

Sinceramente já pensei em morar com essa gente, pelo menos por algum tempo.

Nunca fiz isso e provavelmente nunca farei.

Creio que não tenha mais resistência para esse tipo de jornada.

De agora em diante só fico com o meu obsoleto papelzinho de pequeno burguês contrito hipocritamente com a condição a que estão submetidos moradores e moradores de rua de São Paulo, do Brasil e do mundo.

Isso, reconheço, é um troço bastante cômodo – estupidamente cômodo.

Márcio Tadeu dos Santos

Notas

[1] Marta Suplicy foi prefeita de São Paulo de 1º de janeiro de 2001 a 1º de janeiro de 2005;

[2] Desabamento de prédio escancara o apartheid habitacional na cidade mais rica do Brasil – El País

[3] Busquei, por razões obvias, não constranger a jovem, fotografando-a

A demolição da fama que Lula conquistou às duras penas

Cap 01

Estava aguardando minha vez em um caixa de uma loja de conveniência quando a atendente perguntou a um senhor se gostaria de colocar o seu CPF na nota fiscal (a nota fiscal é obrigatória, mas revelar/expor o CPF, não).

O senhor disse que não queria, pois assim evitaria que Lula rastreasse e roubasse seu dinheiro.

A atendente sorriu, benevolente, parecendo concordar com o cliente, mas o lembrou que Lula não é mais o presidente do País e nem o PT, partido de Lula, estava mais no poder.

Nenhum dos dois pareceu ser gente desinformada, nem a atendente, que tinha por volta de 30 anos, nem o senhor, bem apessoado e revelando alguma posse, de cerca de 50.

O cliente ainda disse que não teve oportunidade de “comprar fogos” para festejar a prisão do ex-presidente.

Nada disso, no entanto, me pareceu ódio (de classes) como o Partido dos Trabalhadores está insistindo em massificar.

Pareceu-me, isso sim, que em algum momento essas pessoas se desencantaram com o discurso anticorrupção petista, mas que se mantiveram críticas às práticas políticas em geral e a petista em particular.

Pessoas que usam um artifício que está sendo fatal ao proverbial mal humor esquerdista: a piada, o blague, a ironia e muitas vezes o sarcasmo.

Entre as várias razões que podemos encontrar para explicar o desprestígio do petismo é possível enxergar o humor em sua linha de frente.

Coisa que, aparentemente, a Partido dos Trabalhadores não percebeu ou não teve capacidade para perceber, pelo contrário, preferindo buscar escusas em uma hipotética perseguição ao partido e agora mais concretamente à figura sacrificial do ex-presidente, praticamente guindado ao posto de Deus.

O que, convenhamos, é um bocado ridículo.

“Surpresa: vêm aí os novos economistas rebeldes”

Cepal
Pedro Rossi e Esther Dweck, dois dos “jovens cepalinos” mais destacados (Outras Palavras)

[Em fevereiro de 1948, há pouco mais de setenta anos, a Organização das Nações Unidas adotou uma importante resolução, estabelecendo a criação da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). A conjuntura geopolítica do período posterior á Segunda Guerra Mundial envolvia a adoção de um conjunto de políticas voltadas à reconstrução dos países destruídos pelo conflito bélico, com medidas inspiradas em estratégias que poderiam ser qualificadas genericamente como keynesianas e desenvolvimentistas.

A constituição e o fortalecimento da Cepal ocorrem exatamente nesse movimento que incorporava algumas ideias-força importantes, tais como o planejamento econômico-social, os modelos de desenvolvimento e a afirmação do protagonismo do Estado para promover a redução de desigualdades. As duas primeiras décadas da existência da Comissão combinaram-se ao fortalecimento de teses de industrialização e de superação dos obstáculos estruturais ao desenvolvimento autônomo dos países da região.

Intelectuais de grande destaque e competência, como o brasileiro Celso Furtado e o argentino Raúl Prebisch, tiveram atuação relevante no interior da Cepal e deixaram um grande legado para a própria vida da instituição e para o pensamento crítico nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Iniciando uma trajetória que acabou por ser a marca da própria Comissão, ambos combinaram uma imensa vitalidade de produção acadêmica e uma atuação estratégica em termos de formulação e implementação de políticas públicas em seus respectivos países e no continente de forma geral.

Cepal e o sonho desenvolvimentista.

É importante registrar a impressionante capacidade de resistência da instituição sediada em Santiago do Chile ao longo de todo esse período, desde sua fundação. Apesar dos momentos de ambiente bastante hostil às ideias originais que foram a base de seu surgimento, a Cepal não desistiu de sua missão e nem capitulou às pressões para se adaptar às orientações do centro do poder. Superou a fase das ditaduras militares que foram instaladas em vários de seus países membros ente os anos 1960 e 1980. Sobreviveu ao período de maior força das ideias hegemônicas e esmagadoras do neoliberalismo e do Consenso de Washington. E segue ainda hoje firme na defesa de políticas para superar as desigualdades, o subdesenvolvimento e os entraves estruturais ainda existentes na América Latina e no Caribe.

Os eventos patrocinados pela Comissão e os documentos elaborados e divulgados por seus responsáveis e dirigentes marcaram uma espécie de trilha de insubmissão relativa às recomendações de políticas governamentais orientadas pelo viés da ortodoxia. Nos tempos em que conceitos como “planejamento” e “desenvolvimento” haviam sido substituídos por outros como “mercado” e “Estado mínimo”, a Cepal tornou-se o repositório das esperanças de retomada da agenda presente em seu próprio DNA.

A incapacidade do receituário liberal conservador em dar conta da crise por que passa a região e o Brasil em particular é flagrante. A ruptura da ordem institucional e a trama do golpeachment sobre Dilma Rousseff é uma das faces mais trágicas dessa tentativa desesperada de recuperar o poder político de forma ilegítima e autoritária, com o único intuito de colocar em marcha uma agenda de governo que vinha sendo sistematicamente derrotada nas urnas desde 2002. O fracasso do austericídio só veio confirmar os equívocos de diagnóstico e de proposições do campo liderado pelo financismo.

Nova geração de jovens cepalinos

Mas a sociedade brasileira é impressionante por seus mecanismos internos de geração de energia positiva e transformadora. Assim, ganham espaço no interior das novas gerações de intelectuais e formuladores algumas das sementes que estavam na base do pensamento crítico da Comissão. Refiro-me aqui à recuperação de debates importantes, tais como: i) a desindustrialização de nossa estrutura produtiva; ii) a destruição patrocinada pela dominância financista; iii) os riscos de retorno acentuado ao cenário das desigualdades; iv) o fim das ilusões com a inserção internacional irresponsável, tal como proposta pelo liberalismo; v) preocupação com a heterogeneidade estrutural que ainda marca nossa sociedade e nossa economia; vi) convergência para uma pauta que recupera a necessidade do protagonismo do Estado como indutor de políticas públicas; entre tantos outros assuntos.

O escritório da Cepal em Brasília identificou acertadamente esse movimento de recuperação da análise crítica e decidiu conferir a ele papel de destaque. Afinal, trata-se de uma nova geração de jovens cepalinos, que assumem a missão de dar continuidade aos trabalhos e aos sonhos daqueles que dedicaram suas vidas à redução das desigualdades e à melhoria das condições da vida da população latino-americana. Assim, temas que passaram a ser considerados verdadeiros tabus para a elite – como a chamada relação “centro-periferia”, por exemplo – voltam ao centro da discussão.

O evento “Aportes de uma nova geração para a mudança estrutural com igualdade”, realizado no início de abril, foi um importante marco para a coordenação a discussão ampliada de tais ideais. Além disso, o encontro ofereceu aos participantes a reafirmação de que ainda existe vida inteligente no universo de economistas e demais pensadores críticos nas ciências sociais. Diversos professores e pesquisadores de várias universidades e instituições públicas exibiram toda sua competência no debate e na proposição de aspectos essenciais de um projeto estratégico de país. A abordagem crítica ali presente com certeza encheria de orgulho as principais figuras fundadoras do pensamento estruturalista.

Olhar para o futuro com as ferramentas do desenvolvimentismo.

A intenção primeira do seminário era “reunir jovens professores e pesquisadores que compartilham de diagnósticos minimamente convergentes, nos quais a crise brasileira se explica por razões estruturais, e se enfocará em debater alternativas para o futuro, em que a superação da crise envolva enfrentar problemas de longo prazo, ao mesmo tempo em que contém no centro da agenda a temática do desenvolvimento com igualdade.” Ao final do segundo dia, o clima de balanço entre os participantes era de muita esperança quanto ao cumprimento de tal missão.

A publicação próxima de um livro contendo um conjunto de artigos desses jovens autores servirá como alicerce importante para a estruturação deste pensar crítico renovado de temas como o desenvolvimento e a superação das desigualdades. Trata-se de uma contribuição essencial da nova geração de pensadores brasileiros para consolidar a comemoração merecida e necessária das sete décadas do sonho de Prebisch, Furtado e tantos outros.

Uma verdadeira lufada de oxigênio para renovar e revitalizar o pensamento desenvolvimentista no Brasil e na América Latina. A mudança estrutural de nossas sociedades continua como item prioritário na ordem do dia. A iniciativa da Cepal vem oferecer os instrumentos para compreender e interpretar a realidade que pretendemos transformar.]

Por  Paulo Kliass , para Outras Palavras

“’Céu é o limite’ para Lava Jato após prisão de Lula’, diz cientista político”

coxinha
Reprodução

[Após a ordem de prisão contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a operação Lava Jato passa a ter “o céu como limite” se não sofrer qualquer interrupção, diz o cientista político Marco Aurélio Nogueira.

Em entrevista a BBC Brasil, Nogueira – professor titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – compara a estratégia de investigadores envolvidos na operação à dinâmica do jogo de dominó.

“É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras”, diz Nogueira. “No momento em que se consegue fechar o cerco e levar Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos”.

Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ditadura militar, Nogueira foi detido durante um congresso da sigla e passou duas noites sob a custódia da Polícia Federal, em 1982.

Nos anos seguintes, afastou-se da vida partidária e passou a se definir como um “comunista democrático e sem partido”. Paralelamente, tornou-se um dos maiores especialistas do país na obra do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), considerado uma das maiores influências da esquerda moderna brasileira.

Na entrevista à BBC Brasil, Nogueira diz ainda que o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro (PSL) deverá ser o maior beneficiado pela saída de Lula da eleição presidencial.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil – Qual a relevância histórica da ordem de prisão contra Lula?

Marco Aurélio Nogueira – Do ponto de vista político, ela agrava a condição de Lula se manter como o candidato a presidente nas eleições.

Outro ponto é que, na medida em que uma decisão desse tipo alcança uma figura de porte tão grande, ela acaba por emitir sinais para a sociedade de que a Justiça está sendo organizada para valer. De que não há mais limites para se pegar eventuais corruptores ou corruptos estejam onde eles estiverem, sejam de que classe social ou de partido político eles forem.

BBC Brasil – Muitos argumentam que a Justiça não tem tratado o PSDB com o mesmo rigor com que trata Lula e o PT.

Nogueira – Não há como fazer comparação entre o tamanho do esquema montado no plano federal (durante o governo do PT) e os esquemas que foram montados pelo PSDB em São Paulo e Minas Gerais. O esquema federal era muito forte, havia muito dinheiro envolvido, muitas empresas, muitas ligações internacionais. Ali se tratava de comprar uma briga de cachorro grande.

BBC Brasil – Acredita que a Lava Jato manterá sua vitalidade após a prisão de Lula?

Nogueira – A Lava Jato tem atuado até hoje como se disputasse uma partida de dominó. É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras. Ela usou a estratégia de capturar o principal personagem da vida política brasileira, o Lula.

A partir daí, se a Lava Jato não sofrer uma interrupção, o céu é o limite. No momento em que se consegue fechar o cerco e levar o Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos.

Por isso, quase todos os partidos estão de alguma maneira solidários com o Lula. Pressionaram o STF (Supremo Tribunal Federal) para aliviar a pressão em cima dele antes, o que livraria a cara de um monte de gente.

Hoje (sexta-feira) foi preso o principal operador do PSDB em São Paulo, o (ex-diretor da Dersa) Paulo Preto. Pode ser o início de alguma coisa. A Lava Jato poderá alcançar, via Procuradoria Geral da República, o (presidente) Michel Temer, como a operação Skala deixou claro. Há uma série de coisas que, se acionadas, poderão recompor o modus operandi do sistema político brasileiro.

Não acho que isso vá acontecer a tempo de interferir nas eleições de 2018. É um processo de mais longo prazo, que terá de se estender com todos os obstáculos que surgirem.

BBC Brasil – Qual o significado da prisão para a trajetória de Lula? Ele está morto politicamente?

Nogueira – A rigor, a morte política nem sempre se dá nem mesmo quando o fulano morre. A força política pode subsistir até mesmo a materialidade física de uma pessoa. Basta lembrarmos o tanto que Getúlio Vargas, depois de sua morte em 1954, interferiu na política brasileira.

Preso ou solto, acho que Lula vai continuar muito vivo. Não tem como ele sumariamente ser descartado da política brasileira simplesmente por um ato da Justiça que o enviou à prisão.

Há muitos recursos que podem ser mobilizados em termos simbólicos, ideológicos, organizacionais e partidários para manter vivo esse personagem – seja como fator real de interferência na política, seja como mito, herói ou mártir.

BBC Brasil – Como Lula poderia influenciar na eleição de 2018 se estiver preso?

Nogueira – Vai depender muito de que engrenagens forem montadas entre o Lula prisioneiro e o eleitorado brasileiro. Ele poderá influenciar na escolha de um candidato que vá substituí-lo e encarná-lo no processo eleitoral. Mas isso precisaria passar por uma discussão muito grande, que leve em consideração as dificuldades que o próprio PT sempre teve de substituí-lo como liderança.

Se o Lula na cadeia puder fazer campanha para outro candidato, que outro candidato será esse? O PT se preparou para apresentar uma alternativa? Tem lideranças que possam se colocar numa via de força semelhante ou próxima à do Lula? Não tem. Então isso complica muito as possibilidades de transferência.

Também vai depender muito da capacidade que os partidos pró-Lula tiverem para levar sua mensagem, como ventríloquos do Lula. Os partidos que giram em torno do PT são muito fracos. E o próprio PT está muito desbaratado com os fatos das duas últimas semanas.

BBC Brasil – Qual o potencial de outra candidatura do PT? Quem o senhor acredita ser o nome mais provável a substituir Lula?

Nogueira – Não consigo ver como o PT vai resolver esse problema. Eles já deveriam ter feito isso alguns meses atrás. Agora vai ser muito difícil, porque os políticos que foram aventados, como Fernando Haddad e Jaques Wagner, são políticos muito fracos, que não são digeridos por inteiro até pelo próprio PT. O Haddad sempre foi hostilizado no PT como um petista tucano.

Ficou muito difícil para o PT encontrar uma saída em termos de candidatura que realmente promova um crescimento ou mantenha pelo menos a força eleitoral do partido.

BBC Brasil – O PT sobrevive à prisão do Lula?

Nogueira – Sobrevive. Não sei se com a mesma força de antes, porque o partido sofreu muitas quedas de 2016 para cá, seja em termos políticos, com o impeachment e as derrotas nas eleições municipais, seja do ponto de vista jurídico-político. A combinação desses dois percursos acidentados deverá afetar o partido no que diz respeito à sua imagem.

O PT tenderá a perder uma parte grande da classe média, que era uma parte importante do eleitorado petista, e poderá até mesmo ter sua imagem queimada ou ofuscada entre a população mais pobre, que vai ter de digerir esse processo.

No caso da classe média, o cenário é mais difícil, porque ela é muito mais moralista que as massas populares. A massa popular, os eleitores pobres do Lula, é pragmática.

Eles são lulistas porque têm uma postura de agradecimento com o Lula, e, mesmo que ele seja corrupto, eles perdoam. Estão acostumados com a corrupção, não há um veto moral ao político corrupto no seio da população mais pobre. O que há ali é o reconhecimento do político que prestou algum tipo de benfeitoria social.

BBC Brasil – Quais os impactos da prisão de Lula para outros partidos de esquerda não tão alinhados ao PT e que lançaram candidatos à Presidência, como o PDT, de Ciro Gomes e o PSOL, de Guilherme Boulos?

Nogueira – Talvez isso se aplique ao Ciro Gomes, mas não ao PSOL. O Boulos está no palanque da resistência no Sindicato dos Metalúrgicos. Ele sempre foi uma liderança sintonizada com o lulismo. Boulos faz certo tipo de crítica, mas é muito mais próximo do Lula do que qualquer outra figura do PSOL.

No caso do Ciro Gomes, ele tem uma trajetória política que só com muito esforço pode ser aproximada da esquerda. Ele não tem um partido propriamente de esquerda e já passou por tantos partidos que é difícil entendê-lo simplesmente como uma figura de esquerda. Pode-se dizer que é um progressista com uma carreira própria.

Ele terá de pensar como se aproveitar desse afastamento do Lula. Acho que Ciro agirá muito mais em função da oportunidade eleitoral do que de solidariedade a Lula. Ciro imagina ter chance eleitoral e, dentre os candidatos do progressismo, ele e a Marina Silva são os que de fato têm mais fôlego.

BBC Brasil – Ciro e Marina são os principais beneficiários da saída de Lula da disputa?

Nogueira – Não acho. Uma parte grande do voto do Lula vai para o Bolsonaro, porque ele está fazendo uma campanha que de alguma maneira copia certas práticas e procedimentos que foram típicos do Lula. Só que Bolsonaro faz isso com o sinal invertido. O Lula era bonzinho, o Bolsonaro é mauzinho.

Eles estão tentando construir por vias antagônicas uma narrativa de trajetória que se aproxima muito da ideia do salvador da pátria, daquele sujeito que assumirá o poder presidencial para varrer tudo o que há de errado no Brasil.

Se o Bolsonaro de fato ganhar, a gente sabe que não será bem assim. Tanto que o Lula de 2002 emergiu com um discurso desse tipo e foi se acomodando ao jogo político, fazendo alianças espúrias e deixando de fazer o que seu discurso de campanha anunciava, que era uma reforma social profunda no país.

O Bolsonaro que rosna para todos os lados e faz um discurso agressivo contra a esquerda, contra a proteção social, em favor de armas, se eventualmente ganhar a eleição, vai também ter de dimensionar esse discurso e negociar com as forças políticas que estão ali. Nessa operação, ele poderá ser completamente descaracterizado como um mauzinho.

BBC Brasil – Nos últimos dias nota-se um acirramento das tensões entre as instituições, como por exemplo no julgamento do habeas corpus de Lula no STF e nas declarações do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, interpretadas por muitos como uma pressão sobre o Judiciário. Como a prisão de Lula afeta o equilíbrio entre as instituições?

Nogueira – Isso vai depender muito de qual será a reação do PT, dos movimentos sociais e dos outros partidos. Se apostarem numa linha de resistência e combate, de enfrentamento, inclusive desafiando a Justiça, a gente estará num caminho de risco, no qual poderemos assistir uma maior corrosão do equilíbrio institucional do país e até mesmo uma espécie de revival da intervenção militar, que é uma coisa que funciona no Brasil como uma espécie de sombra da política.

Os militares estão sempre aí e sempre poderão ser estimulados e impulsionados a se intrometer na política.

Do ponto de vista do sistema como um todo, o grande problema hoje no país é como o sistema judiciário vai se recompor. Hoje, dentre todos os sistemas, até mesmo o sistema político, ele é o que conhece uma crise mais profunda e está todo dividido.

Não tem mais um centro de coordenação que faça valer a hierarquia do sistema. O próprio STF, que deveria o guardião desse sistema, está todo atrapalhado, porque parece estar enciumado com o protagonismo de uma corte de primeira instância, do juiz Sérgio Moro, e o sucesso que ele está tendo na relação com a sociedade.

Isso pode ser um fator de complicação, porque o sistema judiciário dividido acaba por comprometer seu serviço no que diz respeito às garantias, à liberdade etc.

BBC Brasil – Lula tem comparado o cerco judicial que enfrenta à perseguição sofrida por Getúlio Vargas. Os dois processos se equivalem? Há outros episódios na história do Brasil comparáveis ao cenário vivido por Lula hoje?

Nogueira – Já tivemos presidentes da República que foram presos ou exilados. Na Primeira República, Washington Luís foi mandado para fora do país após a Revolução de 1930. Mas o mundo era muito diferente, é difícil fazer uma comparação.

O Lula é muito diferente de todos que vieram antes dele. O que poderia ser mais próximo é o Getúlio. Mas Getúlio é um personagem do Brasil tradicional, que já desapareceu.

O curioso é que Lula se compare com Getúlio depois de fazer em sua carreira como sindicalista uma trajetória contrária ao getulismo. O sindicalismo do Lula era anti-getulista de maneira radical. Era um sindicalismo totalmente hostil ao trabalhismo getulista, tanto que comprou briga com os grandes sindicatos e parte dos partidos trabalhistas, como o PTB, o PDT e o Partido Comunista, que eram seguidores da estrutura sindical dos anos 30.

Outra diferença é que Getúlio se matou. Lula não dá nenhuma mostra de que fará isso.]

 João Fellet – @joaofelletDa BBC Brasil em Brasília – BBC Brasil

Outras leituras

Nota pública da CPT: o avanço da criminalização não vai parar nossa missão! – Pastoral Carcerária

O general falastrão e a esquerda imóvelOutras Palavras

Por uma esquerda que supere o mito do trabalhoOutras Palavras

O descaminho das humanidades – Carta Capital

Proseguir la inclusión social – Consciência Net

Sem emenda – A liberdade é melhor do que a censura – Sorumbático

O que pode acontecer com Lula por ele não ter se entregado à PF no prazo estipulado por Moro?

‘Brasil precisa do mesmo entusiasmo anti-Lula para fazer faxina em todo o sistema político’, diz biógrafo britânico

Parece que todos estão com muito medo em meio ao caos

Mecanismo
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O PT e seus seguidores estão com medo não apenas do TRF4, de Porto Alegre, como também o STF, em Brasília, e, por consequência, temem que Lula vá preso no dia 5 abril, ou já no dia 4 mesmo.

Os adversários e odiadores do PT e de Lula temem que o TRF4 refaça aquele caminho condenatório que lhes parece correto e irremovível e acate os embargos lulistas; e temem, até mesmo, que o STF anule o que decidiu anteriormente, ou seja, que decida pela condenação ou não do réu (no caso, o Lula) apenas depois de esgotados todos os recursos no próprio STF (qual seja, na terceira instância).

Para conturbar ainda mais a situação, a Netflix lançou na semana que se findou a série “O mecanismo” que está irritando enormemente os petistas e seus apoiadores, que até se propõe a boicotá-la, até mesmo quem não tem sequer uma assinatura do “canal”.

Adversários do lulismo marcam para o dia 3 do mês entrante uma vigília para pressionar o SFT no sentido de não conceder o HC para Lula.

O clima também esteve bastante pesado a partir dos Estados sulistas, tudo por conta da Caravana do Lula, marcado por agressões, desvios de rota, cordões de isolamento e cancelamentos.

Trata-se de um momento bastante delicado da vida nacional, de resultados imprevisíveis.

Exposição no Arquivo Público de SP mostrará usos históricos do Rio Tietê

Tiete
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[O Arquivo Público de São Paulo (Apesp) abre na quarta-feira (14) exposição que discute usos históricos do Rio Tietê. A mostra “Expedição Tietê: registros de usos, ocupação e recuperação” será gratuita e aberta às 9 horas com seminário que discutirá a gestão das águas no estado. A atividade é uma parceria com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e a Fundação Energia e Saneamento.

Marca constante na paisagem paulistana, o Rio Tietê margeia umas principais vias da capital paulista, a Marginal Tietê. Embora seja mais conhecido por sua versão maltratada pela poluição que atravessa a cidade, ele nasce a uma altitude de 1.030 metros da Serra do Mar, em Salesópolis, a 96 quilômetros (km) de São Paulo e a 22 km do Oceano Atlântico. As informações são do Departamento de Água e Energia Elétrica (Daee). Em vez de correr para o mar como a maioria dos rios, o Tietê segue para o interior do estado e deságua no Rio Paraná depois de percorrer quase 1.100 km.

É a trajetória desse rio ao longo da história que será contada na exposição. Abastecimento de água, geração de energia por barragens, mudanças no leito do rio para permitir ocupação e navegação, além de mineração, lazer e esporte são algumas das múltiplas formas que a sociedade utilizou e ainda utiliza os recursos naturais do Tietê. De acordo com o Daae, ele é o rio mais extenso que corta o estado e tem importância histórica e econômica desde o período das expedições Bandeirantes.

O curador da exposição, Flávio Ricci, que é diretor do Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa do Apesp, destaca o uso para esporte e lazer como um dos mais saudosos entre os paulistanos. “Competições de remo e natação aconteciam no rio até 1950. Isso era comum, tanto que tem um grande número de clubes famosos em São Paulo que se instalaram em torno do Tietê”, apontou. Ele lembrou que era comum também a retirada de areia das margens do rio para a construção de prédio no centro da capital. “O [edifício] Martinelli é um que foi feito a partir de areia captada do Tietê”.

Ricci explicou que a preocupação com a preservação e recuperação é mais recente e se tornou mais forte a partir das décadas de 1980 e 1990. “[No início do século 20,] as retificações e canalizações que transformam o curso natural, o qual é formado por pedras e vegetação aquática, acabou sendo acimentado. Assim você regula a quantidade de vida no rio. Na época não havia essa preocupação. A sociedade entendia como necessário e o governo foi lá e fez”, relatou.

Fotos, documentos, mapas e livros estão entre os itens que serão exibidos na mostra por meio de painéis verticais, vitrines e TVs. Há documentação que data de 1893. Registros de instituições privadas de interesse público também compõem o acervo do Arquivo Público.

Fórum Mundial da Água

De acordo com Ricci, este tema foi escolhido em consonância com os debates do 8º Fórum Mundial da Água, que ocorre em Brasília, de 18 a 24 de março. “Na semana anterior ao fórum, a ideia é fazer um aquecimento com discussão sobre a questão dos rios e a gestão das águas especificamente aqui em São Paulo”, apontou.

A metodologia em formato de expedição, proposta pela curadoria, é inspirada na proposta da Comissão Geográfica e Geológica (CGG), órgão ligado à Secretaria de Agricultura. No começo do século 20, equipe multidisciplinar, formada por engenheiros, geógrafos, biólogos, geólogos, entre outros profissionais, mapearam os recursos disponíveis ao longo dos principais rios que cortam o estado.

Seminário

O seminário de abertura da mostra, no dia 14 às 9h, terá a participação do presidente do conselho da Fundação Energia, Sergio Augusto de Arruda Camargo; do professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador Janes Jorge; do biólogo e ambientalista Cesar Pegoraro, consultor da Fundação SOS Mata Atlântica; e será mediada por Rose Marie Inojosa, do Arquivo Público do Estado.

A exposição fica em cartaz no saguão de entrada do Arquivo Público de São Paulo até o dia 23 de março das 9 às 17 horas. O endereço é Rua Voluntários da Pátria, 596, ao lado da estação de metrô Portuguesa-Tietê.]

Edição: Maria Claudia, da Agência Brasil.

Intervenções não andam resolvendo a vida do brasileiro ameaçado pelo tráfico e pela violência

Intervem
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A intervenção militar no Rio de Janeiro não foi aquilo que podemos dizer de “uma boa idéia”.

No razoavelmente recente e no mesmo Rio de Janeiro as UPPs – que eram também ações de força, mas não necessariamente militar – também não funcionaram.

Muita gente festejou a “chegada” das UPPs nos morros cariocas, muita dessa gente que hoje se põem contra a militarização dos morros do Rio, militarização essa por razões bastante parecidas.

Portanto, a rigor não há diferença entre as duas ações.

Ambos são ações de força e emergenciais, embora difiram na forma (ação policial X ação de forças armada).

Mas quase certamente, assim como ocorreu com as UPPs, a militar também não deva ter resultados práticos.

Há quem reclame, indevidamente, que as forças armadas “estão em lugar errado”, invadindo favelas, enquanto a principal problema estaria na recepção da droga, qual seja, segundo esse tipo de argumento, no asfalto, entendendo-se esse “asfalto” pelos bairros de classe média e da elite.

Não é exatamente bem isso, como sempre se viu.

A rigor o tráfico está realmente enquistado nas favelas e nas periferias, e por um motivo bastante simples: são esses locais mais seguro para os traficantes.

Não se pode, no entanto, contra argumentar contra a ação militar (que por si só já é ruim e ineficaz) com o falacioso argumento de que as classes médias e a elite são os principais usuários de droga e incentivadores, portanto, do tráfico.

Neste particular, também, o discurso (politizado) é falacioso, pois há sim uma massa enorme de pobres e gente de classe média baixa consumidora de drogas.

A questão, no entanto é que continuamos sem uma solução prática e objetiva para o combate aos traficantes, e o que assistimos atualmente, e longe o Rio de Janeiro e até mesmo de outros grandes centros consumidores de droga, por exemplo, São Paulo e Belo Horizonte, é uma guerra entre as várias facções, que, não por acaso, são formadas maciçamente por traficantes de drogas, e que aparente, não ter mais fim.

A esse propósito, pode ser perguntar, como se pergunta no texto Por que programas federais de segurança não funcionaram até hoje no Brasil? (http://www.ihu.unisinos.br/576482-por-que-programas-federais-de-seguranca-nao-funcionaram-ate-hoje-no-brasil) – IHU Unisinos.

Se não vejamos o que diz o texto:

intervenção no Rio de Janeiro é inédita. Nunca antes um governador perdeu as rédeas do comando da segurança do seu Estado para o governo federal. Por outro lado, essa é a sétima tentativa de um presidente da República de conter a violência no país desde 2000. Na média, houve um novo anúncio federal a cada três anos.

A reportagem é de Amanda Rossi e Leandro Machado, publicada por BBC Brasil, 28-02-2018.

Em 2000, Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Nacional de Segurança Pública, que vigorou por apenas dois anos. Já Luiz Inácio Lula da Silva lançou, em 2007, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Além disso, tentou criar o Sistema Único da Segurança Pública – uma espécie de SUSpara a área da segurança. Encaminhado para o Congresso Nacional em 2007, está em tramitação até hoje.

Dilma Rousseff não deu continuidade aos planos do seu padrinho político. Em 2012, criou o Programa Brasil Mais Seguro, e, em 2015, o Programa Nacional de Redução de Homicídios. Já Michel Temer deu início ao Plano Nacional de Segurança em 2017. E, agora, a intervenção no Rio.

O levantamento dos diferentes planos federais foi feito pelos especialistas em segurança pública Isabel FigueiredoRenato Sérgio de Lima e Sérgio Adorno. Em comum, nenhum deles foi capaz de conter o avanço da violência no Brasil.

Um dos sinais do acirramento da crise de segurança é a guerra entre facções criminosas. Antes concentradas no Sudeste – o PCC, principalmente em São Paulo, e o Comando Vermelho, no Rio – essas organizações criminosas se multiplicaram pelo país. Em 2006, no Amazonas, foi criada a Família do Norte; em 2012, o Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte; em 2013, no Acre, o Bonde dos 13; por volta de 2015, no Ceará, os Guardiões do Estado – entre vários outros.

Além disso, regiões antes pacatas entraram no foco da violência. Entre 2000 e 2016, enquanto a taxa de homicídio do Sudeste caiu pela metade, a do Norte e Nordeste dobrou. Nas cidades menores, a quantidade de mortes violentas cresceu mais do que nas metrópoles. Na soma do país, o número de assassinatos passou de 47,9 mil para 61 mil por ano.

Mas por que os sucessivos planos federais não foram tiveram sucesso? Especialistas ouvidos pela BBC Brasil apontam algumas razões.

Brasil nunca teve uma política de Estado para a segurança

“A principal razão para os programas não serem efetivos é que falta um desenho claro de uma política de segurança no Brasil“, afirma Isabel Figueiredo, especialista em direito constitucional e segurança, membro do Fórum de Segurança Pública.

“Veja o caso da saúde. O grosso do SUS não muda com o governo A ou governo B. Já a segurança está ao sabor da política. A consequência são as interrupções dos programas”, compara.

Alberto Kopptike, que atuou na área de segurança pública durante parte dos governos Lula e Dilma, também usa o SUS como exemplo. Para criar o sistema de saúde, primeiro foi elaborado seu conceito e, depois, montada uma estrutura nacional para implementá-lo, como Ministério da Saúde, Datasus, Fundo Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Para Kopptike, esse mesmo processo precisaria ocorrer com a segurança pública.

“O SUS não é um programa, é a política nacional de saúde do Brasil. Já na segurança pública, foram criados apenas programas”, completa Kopptike.

Segundo Figueiredo, o problema vem desde a Constituição de 1988, “que é detalhada nas áreas de saúde e educação, mas pífia com relação à segurança pública”.

O trecho constitucional que trata da área apenas lista quais são as forças de segurança, estabelece qual é a função de cada uma e a quem respondem: as Polícias Militar e Civil ficam sob comando dos Estados e as Polícias Federal e Rodoviária Federal estão sob responsabilidade da União. As Forças Armadas não são um braço da segurança pública.

O Susp (Sistema Único da Segurança Pública), idealizado no governo Lula, foi uma tentativa de suprir essa lacuna, mas não avançou. Agora, o Ministério da Justiça diz que vai publicar uma política nacional – embora não dê datas. “Ela reunirá, pela primeira vez, um conjunto de princípios, diretrizes e objetivos de segurança pública a serem implementados pelos três níveis de governo de forma integrada e coordenada”, disse a pasta, por nota.

Projetos para segurança são reações a episódios de crise

Na falta de uma política de Estado para a segurança pública, os planos para a área costumam ser lançados em resposta a crises, dizem especialistas.

Foi o caso do primeiro plano de segurança, no governo FHC. Em junho de 2000, um ônibus foi sequestrado no Rio de Janeiro e uma mulher grávida foi feita refém. O resultado foi trágico: a vítima foi morta pela polícia dentro do ônibus; o sequestrador, dentro do camburão. O caso, conhecido como “ônibus 174“, chocou o país. O plano federal foi lançado em seguida.

Dezoito anos depois, a intervenção federal no Rio também foi decretada na sequência de cenas de violência durante o Carnaval. No início de 2017, o governo Temer divulgou seu plano de segurança após massacres em presídios do Amazonas e Roraima, que evidenciaram a extensão da disputa das facções no país. Além disso, acredita-se que o Pronasci, de Lula, teve a influência dos ataques do PCC em São Paulo, em maio de 2006.

“Uma política de segurança pública eficiente não é um milagre. Não dá resultado imediato, mas no médio e longo prazo. Não é diferente da educação. O problema é que a crise na segurança normalmente mobiliza de tal forma a opinião pública que muitos governantes acabam indo para uma lógica de curto prazo, paliativa, midiática. Mas o importante é pensar na causa do problema, em algo sustentável”, afirma Figueiredo.

“A gente precisa deixar de ser reativo, só atuando em crises, e começar a criar estrutura para mudar a forma como a gente faz segurança pública. Aí, o governo federal tem que entrar com recursos”, diz Kopptike.

Não há financiamento garantido

A maior parte dos gastos da segurança pública fica nas mãos dos Estados, que custeiam as Polícias Militar e Civil. Segundo o Anuário de Segurança Pública, o Brasil gastou R$ 81 bilhões com o setor em 2016, sendo que mais de 80% do valor veio dos cofres estaduais. Já o governo federal arcou com cerca de 10% dos gastos.

Segundo especialistas, seria preciso aprimorar o financiamento federal da segurança pública. Em primeiro lugar, a área não conta com garantia de recursos, ao contrário da saúde e da educação, por exemplo, que obtêm uma fatia determinada das receitas do país. Também difere da área penitenciária, que fica com um percentual da arrecadação das loterias.

“Não é razoável que todo o ano seja necessário brigar pelo orçamento da segurança pública. Se não há garantia orçamentária, como fazer ações que dependem de recursos no ano que vem? É muito difícil para a continuidade”, diz Figueiredo.

Em tese, desde o plano de segurança pública de FHC, em 2000, o Brasil conta com um fundo específico para financiar o setor na esfera federal. É o Fundo Nacional de Segurança Pública. Porém, ele está longe de dar conta da demanda de financiamento. Em 2016, recebeu apenas R$ 313 milhões – equivalente a 0,4% dos custos totais da segurança pública brasileira ou a 5% dos custos da Polícia Federal.

“É preciso criar um pacto federativo na área de segurança pública, que defina responsabilidades e atribuições do nível federal, do nível estadual e do nível municipal, e também estabeleça padrões e formas de financiamento do setor, de forma consistente e permanente”, afirma José Luiz Ratton, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que atuou em um programa de combate à violência no Estado.

“Já existe acúmulo técnico para que isso seja feito, mas sucessivas administrações do governo federal foram incapazes de construir uma agenda política de reformas nesta área, com receio de responsabilização por um tema tão sensível”, conclui.

Falta articular a inteligência das diferentes forças de segurança

“O Brasil não tem uma coordenação de inteligência. É um quebra-cabeça de informações. Cada (órgão de segurança) tem um pedacinho para encaixar. O problema é que cada um usa a informação que tem para se valorizar”, afirma José Vicente da Silva, coronel reformado da PM, que atuou no programa de segurança de FHC.

Ele dá como exemplo o Rio de Janeiro: “Como enfraquecer as facções criminosas no Rio de Janeiro? É preciso sufocar a logística de acesso a drogas, munição e arma. Para isso é preciso inteligência. Se tem articulação do governo federal com os Estados fica mais fácil identificar o fluxo que alimenta a economia do crime”.

Alberto Kopptike concorda. “O PCC, por exemplo, é uma facção nacional. Está em metade dos Estados brasileiros, em outros países da América Latina. (Para enfrentá-lo), é preciso articular a inteligência da segurança pública no Brasil, (juntando informação) das forças federais e estaduais.”

PF deveria atuar mais no combate ao tráfico

Três especialistas ouvidos pela BBC Brasil, de diferentes linhas políticas, disseram que a Polícia Federal precisa atuar mais no combate ao tráfico de drogas e armas. Essa é, inclusive, uma das funções da PF previstas pela Constituição.

“A gente precisa de uma Lava Jato das armas, uma Lava Jato das drogas. É legal que a PF esteja combatendo a corrupção – e tem que continuar. Mas é importante que também entre na segurança pública”, afirma Kopptike.

“A cobrança por ações da PF para combater a criminalidade violenta tinha que ser mais dura. A Lava Jato é importante. Mas fora isso é preciso priorizar a criminalidade violenta“, opina da Silva.

“Nos últimos anos, para bem ou para o mal, a PF fez a escolha do negócio dela: corrupção. De fato, nunca antes nesse país, a PF esteve tão focada no combate à corrupção. Por outro lado, não vemos esse mesmo esforço da força no combate à criminalidade violenta, que é atribuição dela e acaba atingindo população”, diz Figueiredo.

Cerca de um quinto das operações da Polícia Federal em 2016 foram relacionadas ao tráfico de drogas – 121 de um total de 550.

Corrupção policial nos Estados

Outro ponto apontado pelos especialistas é a dificuldade de combater a corrupção policial nos Estados, área que deveria contar com a intervenção federal.

“Nenhuma polícia pode ser eficiente se for corrupta. O governo federal poderia tornar o combate à corrupção policial uma prioridade. Inclusive, enviar a PF para investigar a relação das polícias com o crime organizado”, opina o coronel reformado José Vicente da Silva.

Alberto Kopptike ressalta a importância da União no combate à corrupção policial citando o exemplo da Inglaterra, que faz uma avaliação técnica das polícias. Isso poderia ser feito no Brasil, segundo ele. “Precisamos de uma espécie de Lei de Responsabilidade Fiscal, mas de gestão das polícias.”

Em 2017, por exemplo, um policial civil do departamento de narcóticos de São Paulo, o Denarc, foi acusado de roubar e vender drogas no centro da capital paulista, além de avisar traficantes da Cracolândia sobre operações que iriam acontecer na área. Ele foi pego em uma escuta telefônica conversando com um homem apontado como revendedor de drogas na região.

As polícias já têm órgãos de controle e investigação de seus quadros, como as corregedorias. Porém, críticos costumam dizer que, pela proximidade com as corporações, sua atuação não é forte o suficiente. Outro serviço de controle social são as ouvidorias – em São Paulo, por exemplo, o ouvidor é escolhido pelo governador do Estado a partir de uma lista tríplice de candidatos votados por grupos de defesa dos direitos humanos.

Prisões lotadas favorecem expansão de facções

O sistema prisional superlotado é um caldo propício para o surgimento e crescimento das facções. Algumas delas, como o PCC, surgiram nos presídios, reivindicando melhorias das condições internas. Alianças, cisões e ordens de crimes costumam ocorrer dentro das unidades prisionais. Novos membros, inclusive, costumam ser “batizados” atrás das grades.

Os planos de segurança federais não conseguiram reverter esse problema. Pelo contrário, o número de presos no país não para de aumentar: passou de 232 mil pessoas, em 2000, para 727 mil, em 2016. Já o número de vagas é cerca de metade do total de detentos.

“A estrutura prisional superlotada acaba fomentando a abertura de franquias de facções de mais nome. É como uma cooperativa de crime e proteção”, afirma José Vicente da Silva.

Um dos fatores ligados ao alto encarceramento é a política de drogas brasileira. Cerca de um terço dos presos são acusados de tráfico. A minoria, apenas 1 de cada 10 pessoas encarceradas, responde por homicídio.

“Só aumentar a quantidade de presos não adianta, estamos alimentando as facções. Com essa visão, você não apaga os incêndios, mas coloca gasolina. É preciso ver a qualidade de quem está sendo preso – traficantes de armas, homicidas”, completa Kopptike.

A maior parte do sistema prisional é gerido pelos Estados. No governo Lula, foram criados os presídios federais, menos lotados e com melhores condições de segurança. No entanto, são apenas quatro, e abrigam uma ínfima parte dos presos – menos de 500.