[Na entrevista a seguir, Marcolino Jeremias, guarujaense de 40 anos e membro do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (Nelca), que mantém uma biblioteca anarquista no município de Guarujá, litoral paulista, fala um pouco sobre o anarquismo histórico na cidade de Santos.
Agência de Notícias Anarquistas – Para começar, relate brevemente como você chegou ao anarquismo, como se tornou um historiador autodidata…
Marcolino Jeremias – No começo dos anos 90, eu estava completamente envolvido na cena underground, especialmente na cena do metal extremo e do grindcore, fazendo zines e participando de bandas. Foi um pulo para ter contato com os coletivos anarco-punks e, depois, com os coletivos especificamente anarquistas. Em 1994, eu participei de um coletivo no Guarujá que teve vida curta: o Coletivo Libertariedade e Gaia. Em seguida fui convidado a participar da União Libertária da Baixada Santista (ULBS), um grupo punk/anarquista, que organizou várias atividades no período em que existiu (1991 – 2002), foi nessa época que tive os primeiros contatos com os velhinhos do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS), o Antonio Martinez e, com um pouco mais de frequência, o Jaime Cubero.
Lembro que numa palestra o Jaime Cubero disse: “o militante anarquista se doa para a causa que defende“. Isso realmente me fez refletir como eu, pessoalmente, poderia me dedicar mais para o anarquismo. Eu estava enfrentando um período em que não encontrava trabalho, mal conseguia juntar uns trocados para contribuir financeiramente com o coletivo que participava. Percebi que uma coisa que eu poderia fazer (já que tinha bastante tempo livre e nenhum dinheiro) era frequentar arquivos públicos (gratuitos) para buscar maiores informações e subsídios históricos que pudessem sanar algumas dúvidas que eu tinha sobre o anarquismo e, num segundo momento, socializar essas informações para difundir o anarquismo e, quiçá, ajudar outras pessoas a também sanarem as suas próprias dúvidas. Foi a maneira que eu encontrei, no dizer de Jaime Cubero, de ‘me doar ao anarquismo’.
Mas não faço questão nenhuma do rótulo de historiador. Não tenho nenhuma pretensão acadêmica no que eu faço. Não tenho nenhum currículo lattes para ser abarrotado com trabalhos acadêmicos (muitas vezes inúteis)… Sou apenas um pesquisador instintivo e intrometido. Minha profissão é recepcionista.
ANA – Por que a cidade de Santos era chamada “a Barcelona Brasileira”? (risos)
Marcolino – Os anarquistas tiveram uma atuação muito forte na cidade de Santos, especialmente, nas duas primeiras décadas do século 20. Segundo o jornal oficial carioca ‘A Noite’, de 19 de novembro de 1912, a Confederação Operária Brasileira (COB) possuía cerca de 60 mil trabalhadores filiados no país inteiro. Ainda segundo esse jornal, A Federação Operária do Rio de Janeiro possuía cinco mil filiados, a Federação Operária de São Paulo 10 mil filiados e a Federação Operária Local de Santos 22. 500 trabalhadores filiados. É um número realmente extraordinário, é mais de 35% de todos trabalhadores filiados na Confederação Operária Brasileira, segundo os dados fornecidos por esse jornal.
Em junho de 1905 (antes mesmo da conhecida greve geral de 1917), os estivadores de Santos iniciaram uma greve no Porto de Santos, que se tornou uma greve geral em que, pela primeira vez na história do sindicalismo brasileiro, transpôs as fronteiras locais e chegou a atingir algumas categorias de trabalhadores em São Paulo e no Rio de Janeiro. Isso é pouco conhecido. Muitas pessoas até hoje afirmam que a greve de 1917 foi a primeira greve geral do Brasil.
A Federação Operária Local de Santos também foi a primeira e única entidade operária no Brasil, a adotar publicamente em seus estatutos uma orientação explicitamente anarquista. A defesa dessa linha de estratégia sindical conflitante com a orientação da neutralidade política defendida pela Confederação Operária Brasileira, da qual a Fols fazia parte, causou bastante polêmica na época. Para quem tiver interesse em se aprofundar nesse assunto, basta ler o livro “Anarquistas No Sindicato – Um Debate Entre Neno Vasco e João Chrispim” que o Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (Nelca) lançou em conjunto com a Biblioteca Terra Livre, em 2013.
Esses exemplos históricos demonstram a força que o anarquismo teve nas primeiras décadas do século passado em Santos. Foi essa força dos militantes anarquistas e sindicalistas revolucionários que fez com que Santos fosse conhecida como ‘A Barcelona Brasileira’. O que eu achei mais curioso foi que eu pensava que esse rótulo havia sido colocado depois, como uma forma de homenagem a posteriori, mas não, existem documentos de 1913 que já se referem à Santos dessa forma.
ANA – Avenidas, ruas, prédios antigos, monumentos, estátuas e bustos espalhados pela cidade (região) guardam lembranças e informações históricas do anarquismo?
Marcolino – Pela força que o anarquismo tinha em Santos, podemos concluir que sobraram poucas referências. Tem o conhecido busto do Martins Fontes na praia do José Menino (em frente ao número 70 da Avenida Presidente Wilson). Não podemos considerar o Martins Fontes um militante anarquista. Porém, ele se reivindicou várias vezes enquanto anarquista na década de 20 e 30, num período em que os anarquistas em Santos eram brutalmente perseguidos na cidade. Martins Fontes foi filho do socialista Silvério Fontes e, apesar disso, adotou o anarquismo. Participou da iniciativa libertária da Universidade Popular de Ensino Livre do Rio de Janeiro, teve amizade com José Oiticica e fez algumas poesias falando sobre anarquismo, inclusive, homenagens ao Bakunin, Louise Michel, José Oiticica e Kropotkin. Obviamente, o busto não foi feito pela prefeitura por causa do envolvimento do Martins Fontes com o anarquismo, e sim pelo seu relevante trabalho enquanto médico e poeta.
Outra situação parecida é o busto do Luis La Scala, que fizeram em dezembro de 2006. Localiza-se na Avenida Samuel Augusto Leão de Moura, próximo do número 3080, no bairro da Aparecida, numa praça que também deram o nome de Luis La Scala. Ele foi um dos precursores do anarquismo na cidade, fundou a Sociedade Primeiro de Maio em 1904, a primeira organização de Santos a propagar o sindicalismo revolucionário, organizou greves, inúmeras campanhas operárias (inclusive a favor do Francisco Ferrer, da Idalina, da revolução mexicana etc.), participou da Liga Antimilitarista, da Escola Moderna de Santos, dos jornais libertários ‘Aurora Social’, ‘O Proletário’ etc. Depois mudou de rumo. Tornou-se vereador em Santos, foi filiado ao Partido Republicano (PR) e ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e também foi provedor da Santa Casa de Santos. Foi por isso que ele foi homenageado, e não por sua ligação com o anarquismo ou com o sindicalismo revolucionário.
Na rua João Caetano, número 169, no Marapé, temos ainda hoje a sede do Libertário Futebol Clube, que foi um time de futebol de várzea fundado em 1º de Janeiro de 1916. Considerado o “Vovô Varzeano” de Santos, pelo que eu pude apurar não teve nenhum militante anarquista de destaque em sua equipe ou diretoria, nem ligação direta com o anarquismo organizado. Mas, considero, que pelo nome, algum nível de influência deve ter tido.
Além disso, eu procurei alguns endereços de antigas sedes operárias, e encontrei algumas, porém, sem nenhuma referência na fachada ou algo assim. Santos sofreu um grande apagamento da sua história anarquista e sindicalista revolucionária.
Cientes dessa situação, em agosto de 2016, militantes anarquistas do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri, com a intenção de resgatar uma pequena parte dessa história, colocamos uma placa no túmulo do Eladio Cezar Antunha (1889 – 1920), que se encontra no cemitério do Saboó. Eladio fez parte da primeira geração de anarquistas de Santos e foi um dos precursores do sindicalismo revolucionário na Baixada Santista.
O periódico anarquista “A Plebe”, de 8 de maio de 1920, assim registrava o seu falecimento: “Eladio durante muitos anos militou no meio operário da vizinha cidade marítima. Inteligente, ativo, falando com bastante desembaraço, escrevendo com acerto, o bom Eladio contribuiu valiosamente para o desenvolvimento associativo da cidade de Braz Cubas, onde esteve à frente de jornais operários“.
Já na “A Plebe” de 18 de agosto de 1923, encontramos esse texto escrito por companheiros anarquistas da cidade de Santos: “Em caminho para o cemitério do Saboó (…) foram pronunciados alguns discursos, lembrando o camarada Eladio Cezar Antunha, a quem se iria homenagear pelos esforços que o mesmo despendeu em prol da emancipação do proletariado santista e em defesa do ideal libertário, que por muito tempo defendeu e propagou.
No cemitério falaram novamente vários oradores lembrando uns a altivez e persistência com que o camarada Eladio se manteve durante mais de um decênio, sempre na vanguarda, sempre entusiasta e cheio de fé ardente no ideal que havia abraçado – A anarquia!”.
O militante anarquista santista Manoel Perdigão Saavedra, em seu livro “Ao Fragor Das Derrocadas” de 1924, assim se referia à ele: “Eladio Cezar Antunha foi o vibrante tribuno das nossas jornadas gloriosas. Fundador da organização operária em Santos. Desfraldou a bandeira do sindicalismo revolucionário, batendo-se com denodo contra os sofistas e combatendo sem tréguas, nem esmorecimentos os aventureiros e arrivistas. A ele deve-se a implantação da jornada de oito horas nesta localidade. Era um devotado e ardente defensor do ensino racionalista; continuar, aqui, a obra iniciada por Ferrer, constituía o seu sonho dourado.
Morreu em plena juventude, sem abandonar a sua bandeira de combate, rijo em seu posto num momento em que vários de seus camaradas de outrora transigiam ao impulso da pança. Deixou publicada uma resenha histórica do movimento operário em Santos, desde o seu estado embrionário”.
Já o anarquista João Perdigão Gutierrez, que também militou em Santos escreveu o seguinte: “Eladio foi um ídolo dos trabalhadores, pela extraordinária atividade e grande número de prisões que sofreu. O lugar onde está sepultado, no cemitério do Saboó, é visitado pelos trabalhadores, todos os dias 2 de Novembro”.
A frase que colocamos na placa (“Viver sem liberdade, é vegetar morto. O escravo, o servo, o operário que luta pela emancipação, é o morto que se levanta para conquistar a vida! Lutar é viver!!!“), foi escrita pelo próprio Eladio Cezar Antunha no periódico anarquista ‘A Terra Livre’ em 1907.
A título de curiosidade, um parente do Eladio Cezar Antunha participa do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri e participou conosco dessa homenagem ao companheiro.
ANA – Apagamento mesmo nas universidades, nos cursos de história da região?
Marcolino – Sim, com certeza. Não só não falam da rica história do anarquismo e do sindicalismo revolucionário da Baixada Santista nas universidades locais, como também não falam da história do socialismo em geral aqui da região que foi muito forte em vários períodos.
Você pega um cara como Affonso Schmidt, renomado romancista, poeta e jornalista, nascido em Cubatão [cidade vizinha a Santos], que também teve uma passagem relevante no anarquismo. Ele fez parte da redação do jornal ‘A Plebe’. Em 1919, quando a polícia empastelou a sede do histórico periódico anarquista, encontrou lá Edgard Leuenroth e Affonso Schmidt. Ele também participou da redação de outros periódicos importantes como ‘Voz do Povo’, ‘A Lanterna’ e ‘A Vanguarda’. Eu consegui comprar num sebo um livro da Maria Lacerda de Moura de 1924, onde ela fez uma dedicatória para ele (em 1942, com o afastamento dele dos meios libertários, ela mesma chegou a declarar: “Gosto do Schmidt e muito, mas gostaria mais dele se fosse mais sincero com sua própria consciência e ficasse só no artista e… Olhe lá…”). Então, concluímos que ele teve uma participação relevante na história do anarquismo brasileiro, porém, quando ele é lembrado, sempre omitem sua passagem pelos meios libertários. Aliás, muitas pessoas não sabem nem que Affonso Schmidt nasceu em Cubatão.
ANA – Há algum livro que trate especificamente dessa pujança que o anarquismo teve na região, em Santos, ou as informações estão difusas e dispersas em livros, teses… Aliás, você pretende condensar em um livro suas pesquisas?
Marcolino – Tem o “Ventos do Mar – Trabalhadores do Porto, Movimento Operário e Cultura Urbana em Santos, 1889 – 1914“, da Maria Lucia Caira Gitahy, Editora Unesp, 1992, que é um excelente livro, porém, no que diz respeito ao anarquismo em Santos tem muito ainda para ser aprofundado. E tem também o “Operários Sem Patrões: Os Trabalhadores da Cidade de Santos no Entreguerras“, de Fernando Teixeira da Silva, Editora Unicamp, 2003, uma pesquisa interessante, porém, da qual discordo em alguns pontos.
Tem também a pesquisa do Edgar Rodrigues, que em vários de seus livros trata do anarquismo em Santos, com base em importantes documentos históricos, porém de forma fragmentada. Para quem se interessa pelo tema, eu indico a leitura de todas essas obras.
Já faz um tempo que eu encerrei minha pesquisa sobre Santos, pois eu já pesquisei todos os documentos que eu tinha vontade. Lógico que sempre acaba aparecendo “novos documentos velhos”, especialmente, com muitos arquivos digitalizando e disponibilizando boa parte de seus acervos. Mas essa parte da pesquisa em si, eu já considero finalizada para mim. As obrigações do cotidiano e minhas responsabilidades com a Biblioteca Carlo Aldegheri (desde 2012) tomam a maior parte do meu tempo livre, por isso ainda não tive tempo para publicar um livro especifico sobre o anarquismo em Santos, com todos os documentos que consegui encontrar. Mas pretendo fazer isso nos próximos anos, justamente para resgatar essa história e socializar publicamente esses documentos.
Recentemente, à convite da Biblioteca Terra Livre, eu escrevi um texto sobre o centenário da greve de 1917 em Santos, no livro “A Greve Geral de 1917: Perspectivas Anarquistas“. É uma excelente obra, especialmente, pela contribuição dos outros autores que abordam questões como o método de organização da greve geral conduzida pelos sindicalistas revolucionários; a forte influência, inspiração e protagonismo anarquista no movimento; a essencial participação feminina na greve geral de 1917 – que aliás foi o estopim da greve; a solidariedade operária; os saques e a expropriação; o alastramento da greve geral para outras localidades (além de Santos – Rio de Janeiro, Sorocaba e Rio Grande do Sul); a greve de 1917 sob o ponto de vista educacional e da geografia social; a brutal repressão policial e um verdadeiro morticínio de trabalhadores (enterrados clandestinamente) e, por fim, os desdobramentos e as conclusões da greve geral de 1917.
ANA – Em suas pesquisas, encontrou algum fato curioso envolvendo os anarquistas? Algo que chamou a sua atenção?
Marcolino – Os anarquistas por todo o seu idealismo inabalável, pelo seu radicalismo, pela sua obstinação, mesmo diante das piores realidades possíveis sempre deixaram marcas impressionantes e indeléveis na história internacional, que demonstram toda dedicação e combatividade pela causa que defendem. Em Santos não foi diferente e temos inúmeras passagens interessantes que reforçam essa tradição, sempre nos remetendo aos valores da ética, da solidariedade, da determinação que nos chamam bastante a atenção.
Vou citar esse episódio, ainda inédito, das memórias do já citado Luis La Scala: “Em 1911, quando da grande greve geral, como secretário geral do comitê, dirigia o movimento através de um volante diário, com a ajuda de uma tecelã disfarçada em doméstica e que levava os originais para serem impressos numa tipografia da Praça Mauá. A perseguição era grande aos membros do comitê, estando alguns foragidos e outros presos. A greve prolongava-se e o governo do estado impacientado, mandou para Santos o dr. Washington Luís que era o secretário da segurança. A policia redobrou a violência. Revidou-se com um boletim. O tipógrafo ao receber o original recusou a impressão. Avisado pela tecelã, La Scala arriscando sua liberdade, entrou pelos fundos da tipografia e com a ajuda do companheiro Juvencio Dias e de revolver em punho, obrigaram o Sampaio, cidadão português e sua esposa a comporem o manifesto a todo vapor. A circulação do mesmo provocou violenta reação“.
Eu gosto dessa citação, pois ela nos permite ter uma ideia de como a questão social nesse período era rude e de como ela era confrontada pela classe oprimida com igual intensidade. A nossa realidade atual ainda é bastante violenta (embora com outras características), porém, a resposta das classes oprimidas ainda têm que se intensificar mais para conseguir fazer frente às injustiças sociais. A história de luta do anarquismo, não deve nos fazer olhar apenas para o passado, mas sim para o presente e para o futuro.
ANA – Deixe uma mensagem para os leitores e leitoras da ANA. Valeu!
Marcolino – Eu gostaria de agradecer a você Moésio e a Agência de Notícias Anarquistas (ANA) pela entrevista, pelo apoio em todos esses anos e pelo excelente trabalho de divulgação do anarquismo que vocês estão desenvolvendo já faz décadas. Para as pessoas que estão lendo, gostaria de salientar que nesses tempos conservadores que estamos vivendo, mais do que nunca, precisamos fortalecer a nossa luta, através da solidariedade, da cooperação, do respeito ético as diferentes formas de atuação e que as atitudes que tomarmos agora no presente serão os principais pilares para uma futura transformação social. Qualquer pessoa que queira obter maiores informações sobre qualquer assunto abordado nessa entrevista ou sobre o trabalho da Biblioteca Carlo Aldegheri no Guarujá, basta mandar uma mensagem para oplibertario@yahoo.com.br. Muito obrigado!]
Biblioteca Carlo Aldegheri
Rua Luiz Laurindo Santana, Número 40, 1º Andar, Sala 1, Bairro Ferry Boat, Guarujá (SP)
Estava eu ontem em uma cerimonia religiosa (católica) e foi sintomático ver que a maioria das pessoas (maioria mesmo) presentes, durante o ofertório, lembrava que vários de seus “entes queridos” – principalmente filhos e filhas – estavam desempregados – apenas uma delas lembrou-se de agradecer “a Deus”, pois recentemente um filho conseguiu, finalmente, voltar a empregar-se, após alguns anos.
Foi interessante também notar que a maioria absoluta dessa gente é o que a esquerda (aqui no Brasil) chama normalmente de “coxinha”, qual seja, conservadora e de direita.
Também se destaca por aqui que quem oficiava a cerimônia (um padre) sempre esteve mais ligado à Teologia da Libertação (dita de esquerda) e ao Concilio Vaticano Segundo, mas (o padre) buscou ser discreto, pois sempre foi amigo da maioria dos presentes.
O que não é necessariamente uma contradição – como algumas pessoas hão de pensar – posto que, como sacerdote, não lhe cabe fazer distinções, até porque a ação primária do catolicismo é a (indistinta) evangelização, mesmo no caso da Teologia da Libertação.
Não se pode dizer que aquelas pessoas passassem por “dificuldades financeiras”, muito pelo contrário, mas estavam e estão, sim, sentindo o baque de uma crise que se alonga por vários anos – problema que não apenas assola o país, mas todo restante do planeta.
E os reclamantes não estão sozinhos, ao contrário: o país fechou 20.832 vagas de trabalho formal em 2017, como aponta o Caged do Ministério do Trabalho.
Neste ponto chegamos a um consenso: a crise não é (apenas) brasileira, mas mundial; e ela não se iniciou no atual governo, mas sim durante os mandatos petistas – de Lula e de Dilma, que parecem (isso é uma ironia) ter se esquecido de que não se gasta mais do que se ganha.
Mas é certo, também e no entanto, dizer que o atual mandatário Temer (que, aliás, manda pouco) não está conseguindo debelar a crise herdada (por surrupio), até porque, como já se disse acima, trata-se de uma crise mundial. Mas muito pelo contrário: Temer e sua equipe a está agudizando (isso ele consegue fazer com desenvoltura) e criando pânico entre a população por conta da supressão dos direitos trabalhistas e da seguridade pública.
Apesar disso, Temer está buscando vender, em Davos, na Suíça, um espécie de encantamento de serpente (como está tentando fazer o mesmo o atual presidente dos Estados Unidos), com a história da reforma da Previdência Social, o que é claramente um engodo.
O presidente norte-americano Trump fala de uma retomada da união e da importância da América Latina, no cenário internacional e principalmente americano, o que, obviamente, é outra balela imensa e absoluta.
Balela (e esta criminosa) é a própria reunião de Davos, que prega uma intensificação e um aprofundamento do neoliberalismo e ainda uma expansão da internacionalização da economia, o que é um troço obviamente estúpido e abjeto, pois o que isso quer dizer, na prática, é uma agudização da exploração maciça de pessoas e do meio ambiente.
Resta saber o que devem fazer as pessoas, o povo, a população, tanto aqui, como lá fora.
Pelo menos por enquanto, aparentemente, nada, pois estamos vivendo um momento de perplexidade e de medos.
Até quando isso vai durar não se sabe, mas desconfia-se que por algumas décadas.
Como acréscimo, diga-se que as pessoas (a maioria delas e principalmente a totalidade dos presentes na cerimônia religiosa) parecem não ter a mínima capacidade para fazer a conexão entre a enorme crise mundial (a que rapta os empregos dos ”entes queridos”) com aquilo que corre no Brasil neste momento.
Ou quem sabe não queiram fazer essa conexão, o que acaba resultando exatamente na mesma coisa.
Leia também
A ética de Arnaut e o espírito do capitalismo – Esquerda net
Obituário de Úrsula K. Le Guin, la creadora de Anarres, el planeta anarquista – Periódico Libertário
Relatório internacional mostra que 75% dos artigos em periódicos nacionais estão disponíveis gratuitamente, em grande parte graças ao programa SciELO
[Em 13º lugar entre os países que mais produzem artigos científicos no mundo, o Brasil tem a maior porcentagem disponível gratuitamente e sem entraves via internet – o chamado acesso aberto.
Os dados estão em relatório publicado pela Science-Metrix, empresa norte-americana dedicada a avaliar atividades ligadas a ciência e tecnologia.
Dos artigos publicados em periódicos brasileiros, 74% têm acesso aberto. O fenômeno se deve em grande parte ao SciELO(Scientific Electronic Library Online), que reúne 283 periódicos brasileiros e por volta de mil de outros países. O SciELO é um programa financiado pela Fapesp.
O acesso aberto parece ser uma estratégia relevante para difusão da ciência produzida em cada país, dado que artigos facilmente disponíveis têm mostrado um índice de citação maior. O engajamento brasileiro nessa tendência foi detalhado na edição de setembro de 2017 de Pesquisa Fapesp.
Nos Estados Unidos, o país com maior produção científica no mundo, dois terços dos artigos publicados têm acesso aberto gratuito. Esse tipo de publicação não é homogêneo em todas as áreas do conhecimento, tendo preponderância em ciências da saúde e ciências naturais, mas traz benefícios em todas as áreas.
Um achado curioso é que a chamada via verde de acesso aberto, em que os artigos são postos à disposição pelos próprios autores, rende mais citações do que a via dourada, em que a ação é do periódico. Entender essas tendências requer estudo de longo prazo, já que são necessários alguns anos para se avaliar o quanto um artigo é citado.
Em política (partidária) vale tudo. Vale tudo desde que sejam golpes baixos, desleais e traiçoeiros.
Nascido na ilegitimidade (é golpe?) o governo Temer é alvo da ira das esquerdas e de liberais mais esclarecidos, embora não votantes no petismo.
Por duas vezes (embora isso tenha ficado ligeiramente submerso, quando não, restrito aos muros do Palácio do Planalto – que, diga-se, não tem muros) Temer pensou e foi pressionado a renunciar ao cargo temporão que ocupava e que ainda ocupa.
Temer também se viu enrolado nas reformas trabalhista (que já aconteceu, mas que pode ser, a qualquer momento, derrubada) e da previdência (que não aconteceu ainda e dificilmente irá acontecer neste ano entrante, muito por conta das eleições presidenciais e estaduais. Quem irá se atrever da votar pela reforma e enfrentar a ira silenciosa das urnas?).
Como era aguardado, o Partido dos Trabalhadores e seus agregados menores pegaram pesado como Temer (até Dilma Rousseff, chegada a uma discrição, partiu para a guerra aberta e declarada); pegaram tão pesado que até a esposa do presidente, a Marcela Temer, se viu constrangida a recolher-se ao papel de esposa do presidente – e a apenas isso.
Nada, óbvio, diferente do que os opositores de então fizeram com Dilma Rousseff e com Lula da Silva.
O jogo é bruto e pesado, e como se dizia na várzea, antigamente, só vale bater da medalhinha para cima.
As críticas ao governo temerista seguem duas lógicas:
– a supressão dos direitos trabalhistas;
– a venda do patrimônio público a governos e a empresas estrangeiras.
Há ainda uma terceira questão (que na verdade deveria ser a primeira ou, a rigor, deveria ser a única) que é a estagnação econômica, com a falta de investimentos, o minguado mercado de trabalhado e o crescimento do PIB bastante discreto, para não dizer pífio.
Na linha de frente, como não poderia deixar de ser, das denúncias relativas aos direitos trabalhistas, está principalmente a Central Única dos Trabalhadores (CUT), ligada ao PT.
Sem se importar em atinar que o mercado de trabalho sofreu mudanças consideráveis nos últimos anos, onde não cabe mais o discurso arcaico e anacrônico trabalhista, ou seja, pequeno burguês, a CUT cada vez menos representa a vontade dos trabalhadores atuais e hoje apenas serve de braço (desarmado do petismo).
A venda do patrimônio nacional a governos e a empresas estrangeira igualmente deveria ser objeto de melhor análise pelos anti-temerista, já que o próprio PT estava tratando de se livrar (especialmente na era Dilma Rousseff) dos óbices que o estatismo sempre comporta.
De mais, há de se notar (já disse isso em algum lugar por aqui) que a China, tida como comunista ainda pelos supostos esquerdistas, é apoiada (já era assim no tempo de Lula e de Dilma) em sua incursão pelo território nacional para a compra de milhões de hectares pelo Brasil.
E quem não se lembra dos festejos (dos esquerdistas) por conta daquela história dos investimentos chineses, no governo de Dilma Rousseff, para ligar o litoral do Rio de Janeiro, via estrada de ferro, com o Pacifico?
O perigo para esta gente, portanto, não está em vender ou deixar de vender empresas e o patrimônio nacional, mas sim para quem vender.
E isso vale para os dois espectros da política nacional, com sinal, obviamente, invertido.
A questão, no entanto, é saber se o legado de Temer será tão ruim para o Brasil ou não?
Não parece que seja tão catastrófico assim como alguns querem demonstrar.
Estamos num país especializado em crises – tanto as econômicas, quanto as políticas – que sempre soube seguir em frente, sem maiores traumas, inclusive enfrentando uma feroz, absurda e longa ditadura militar que durou infindáveis 21 anos.
Lembremos, inclusive (só para ficarmos nos exemplo do pós-guerra), que tivemos, por exemplo, a crise do café, no inicio dos anos 50; as instabilidades provocadas pelo treloucamento de Jânio Quadro, que depois se repetiu com Fernando Collor de Melo; o golpe militar contra o governo trabalhista de João Goulart; o melancólico e catastrófico fim da ditadura militares e a conturbadíssima era José Sarney e sua inflação superior a 80% ao mês.
O Brasil segue um rumo lento (sempre lento!), mas seguro; o país não tem, obviamente, uma economia espetacular, mas também não será nada que nos levará a morrermos todos de fome daqui a dois dias.
Recessão, desemprego, privatizações e desequilíbrio fiscal. Livro disseca a verdadeira consequência dos planos liberais em tempos de crise
[John Locke foi um dos mais famosos filósofos de Inglaterra. Escrevendo no rescaldo das guerras civis inglesas do século XVII, preocupou-se com a fundamentação apropriada do governo civil. Em vez de exercícios de cátedra, os escritos de Locke eram uma propaganda essencial das classes mercantis emergentes que pouco a pouco estavam tomando o poder das elites aristocráticas britânicas. Fez parte de um movimento que culminou na Revolução Gloriosa de 1688, que retirou o poder do rei e o deu — e muito bem — a pessoas como Locke.
Além de filosofar sobre os direitos dos cidadãos em uma comunidade e sobre os limites do poder dos reis que procuram governá-los, Locke foi um revolucionário econômico. Baseou a sua noção do que constitui um governo legítimo em direitos individuais de propriedade, sem os quais não pode haver liberalismo econômico, separação
entre Estado e mercado, ou capitalismo tal como o conhecemos hoje. A visão de Locke é delineada em seu Segundo Tratado do Governo (1690). Para criar a separação entre Estado e mercado, Locke teve de fazer várias coisas: explicar naturalmente a desigualdade do rendimento e da riqueza, legitimar a propriedade privada da terra, explicar a emergência dos mercados de trabalho e despolitizar a invenção do recurso chamado “dinheiro” que tornava todas essas coisas possíveis. Na base, o liberalismo de Locke é um liberalismo econômico que coloca o indivíduo contra o Estado. A história intelectual da austeridade começa aqui.
John Locke Imagina o Mercado
Locke começa por se interrogar sobre como é possível “Deus, que deu o mundo aos homens por igual”, permitir a acumulação desigual, ou até ilimitada, da riqueza. A resposta está na concepção de propriedade de Locke. Para Locke, a propriedade reside em todos nós, em nossas pessoas, mas só é importante porque é alienável com o nosso trabalho. Isto é, quando trabalhamos em qualquer coisa, como a terra, o nosso trabalho torna-a nossa. Como Locke defendia,
“então, seja o que for que ele retire do estado natural [e] misture com o seu trabalho, [ele] torna-o, assim, sua propriedade”. Ora, talvez você pense que outras pessoas à época objetariam que alguém tomasse posse da terra comum desta maneira. Mas Locke insiste em que “a tomada desta ou daquela parte [da terra] não depende do consentimento
expresso de todo o povo” porque “ainda ficava bastante e igualmente boa [para todos]”.
Despachado o problema da distribuição presumindo a abundância infinita, Locke mantém que o único argumento verdadeiro contra a propriedade privada é a questão do desperdício, de que se tome mais do que o que pode ser usado, coisa que Deus não gostaria. Felizmente, o tempo e os hábitos deram-nos um recurso chamado “dinheiro” que nos permite ultrapassar o problema do desperdício, porque podemos guarda-lo e trocá-lo por produtos a qualquer momento. Isto também tem o cômodo efeito colateral de criar um mercado de trabalho, uma vez que se pode colocar as pessoas a trabalhar para nós em nossa propriedade e depois, através do recurso dinheiro, levá-las a alienar (dar) os frutos do seu trabalho em nosso favor como uma troca livre. Isto permite a Locke concluir que “os homens concordaram com uma posse desproporcionada e desigual da terra (…) por consentimento voluntário descobriram um modo de o homem possuir justamente mais terra do que o respectivo produto que consegue usar, recebendo (…) o excedente em ouro e prata, que se podem entesourar sem prejuízo para ninguém”.
No contexto de um país assolado pela guerra, pelo regicídio e pela rebelião, este ponto de vista pode parecer algo sanguinário: desigualdade ilimitada da propriedade explicada naturalmente pela falta de visão de Deus na questão do desperdício. Mas permite que Locke explique como inevitável, e por isso boa, a criação de mercados na terra, no trabalho e no capital, que era exatamente o projeto político em que as pessoas da sua classe estavam empenhadas naquele momento. O seu passo seguinte foi proteger essas novas instituições do mercado de sua nêmeses emergente do capitalismo: o Estado.
John Locke Imagina o Estado
O famoso direito de rebelião de Locke, bem como sua profunda suspeita contra o governo apenas faz sentido se relacionado com a violação dos direitos de propriedade privada que acabara de atribuir a si próprio. No mundo de Locke, o poder da legislatura é “limitado ao bem público da sociedade” que se define como estar livre da intervenção do governo nos assuntos privados, especialmente no que diz respeito à propriedade, a menos que os cidadãos concordem. Como diz Locke em relação aos impostos, “lançar e criar impostos (…) sem [o] consentimento do povo (…) invade a lei fundamental da propriedade”. Tendo feito isso, os legisladores “põem-se num estado de guerra com o povo” de tal modo que é o governo, e não o povo ,o “culpado de rebelião”, perdendo o direito de governar.
Lembre-se que estes argumentos estão sendo desenvolvidos na Inglaterra do século XVII, onde a dívida pública é a dívida dos reis, que invocam os direitos dados por Deus para se apropriarem compulsivamente da propriedade dos outros. O fato de Locke empregar igualmente raciocínios especiosos para explicar a razão pela qual ele e os seus confrades da comunidade haviam de ter a parte do mundo que queriam é irrelevante. O que ele pretende é defender do Estado, a todo o custo, esses ganhos e minimizar a capacidade do Estado de extrair mais recursos. É nesta fundamentação minimalista de que o Estado pode e deve fazer, deixada em testamento por Locke, que os liberais posteriores se baseiam. Essa fundamentação tem dificuldades, devido à sua arquitetura, em apoiar qualquer visão do Estado que se estenda para além da proteção da propriedade. Mas até essa estreita atividade custa dinheiro, e isso exige que o Estado o arranje. Assim, nasceu o dilema liberal que gera a austeridade. O Estado: não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, não se quer pagar por ele.
David Hume: “O Crédito Público Destruirá a Nação”
Assentando os seus tijolos intelectuais nas estreitas fundações de Locke estão os dois gigantes gêmeos do Iluminismo escocês: Adam Smith e David Hume. Voltando-nos primeiro para Hume, as suas contribuições para a economia política são numerosas. A ideia de que um incentivo monetário pode, em curto prazo, estimular a atividade econômica, mas, em longo prazo, ou tem de aparecer como inflação ou se dissipar sem afetar verdadeiras variáveis, é o aspecto principal do seu ensaio On Money. Esta é a linha padrão da teoria macroeconômica contemporânea, em que é conhecida como “tese da neutralidade monetária de longo prazo”. Também lhe devem os pormenores das ideias sobre balança comercial de Richard Cantillon através do seu mecanismo de “fluxo de preço-espécie”, o mecanismo subjacente ao padrão-ouro do século XIX. Nós, porém, estamos interessados em Hume por conta de seus textos sobre “crédito público” — aquilo a que chamamos “dívida governamental”.
Hume, tal como Locke, vê o dinheiro como um instrumento, como “apenas a representação de mão de obra e mercadorias (…) um método de as classificar ou calcular”. Na versão de Hume dos acontecimentos, porém, o dinheiro não existe para ultrapassar o problema do desperdício ou os problemas contabilísticos de Deus. Antes, o dinheiro segue o comércio, que coloca as classes mercantis de Locke, e não o Estado, no centro de tudo. Para Hume, os comerciantes são o catalisador do comércio e os criadores de riqueza. São, segundo Hume, “uma das raças humanas mais úteis, que serve de agente entre (…) partes do Estado”. Como consequência, “é necessário, e razoável, que uma parte considerável das mercadorias e do trabalho [produzido] pertença ao comerciante, para com quem, em grande medida, estão em dívida”. Enquanto “advogados e médicos não geram indústria”, só os comerciantes podem “aumentar a indústria e, também aumentando a frugalidade, dar um grande controle dessa indústria a membros particulares da sociedade”. Esses “membros particulares da sociedade” seriam, claro, Hume e outros como ele: as classes mercantis.
O que poderia ameaçar uma situação tão feliz em que o crescimento natural do comércio é ao mesmo tempo causado e catalisado pelas classes mercantis? Seriam, com certeza, as exigências de receita do Estado, especialmente na forma de dívida. Hume não põe panos quentes na questão da dívida governamental. É uma coisa má. Se a razão que aponta parece hoje familiar é porque, como Hirschman nos avisou, os mesmos argumentos andaram no ar nos últimos séculos, com poucas modificações.
David Hume se Desespera com a Dívida
O problema básico de Hume com a dívida pública é sua falta de limite, pelo menos até as taxas de juros da dívida se tornarem esmagadoras. Além disso, a dívida é fácil de cobrar uma vez que os custos são ocultos e intergeracionais, o que faz com que os Estados adorem a dívida. Como diz Hume, “é muito tentador para um ministro empregar esse expediente, na medida em que lhe permite fazer uma grande figura durante a sua administração, sem sobrecarregar o povo com impostos (…) Abusar-se-á, por isso (…) quase inevitavelmente dessa prática, em todos os governos”. Nessa medida, o governo emitirá a dívida a uma taxa que excede a taxa de juros que poderia obter em qualquer outro lugar, encontrando assim compradores disponíveis à custa de desviar fundos da indústria. Como consequência, o capital ficará concentrado em títulos de dívida que “banem ouro e prata do comércio do Estado (…) e por esse meio tornam todos os fornecimentos e a mão de obra mais caros do que seriam de outro modo”.
Quando essa emissão de dívida acabar atingindo um teto, os governos precisarão vender mais dívida aos estrangeiros, e isso resultará em estrangeiros possuindo “uma grande quota dos nossos fundos nacionais [o que] tornará o público (…) tributário deles”. E se tudo isto acabar por se passar, como inevitavelmente tem de acontecer, segundo Hume, desfaz-se a liberdade. Com os impostos nos seus limites a pagarem juros sobre a dívida, não há espaço para absorver qualquer espécie de choque financeiro. Consequentemente, será emitida ainda mais dívida, “uma tributação contínua dos que recebem anuidades”, o que resulta em um governo que “hipotecou todas as suas receitas [e que] se afundará em um estado de languidez, inatividade e impotência”.
Se tudo isso parece familiar é porque é familiar. As afirmações de Hume não são um eco das de hoje — as afirmações de hoje são réplicas diretas das de Hume. Quanto à dívida ser politicamente mais fácil do que impostos, basta ver as críticas da Europa do Norte às políticas orçamentárias da Grécia e da Itália. Quanto à dívida governamental tirar o lugar de outros investimentos, ver o tsunami de críticas aos incentivos de Obama. Quanto à dívida subir os preços e comprometer a capacidade do Estado de amortecer outros choques, ver as volumosas críticas à flexibilização quantitativa e os receios de que um pico das taxas de juros dos EUA provoque exatamente isso. Quanto ao medo de que os estrangeiros se tornem donos dos Estados Unidos, basta pesquisar no Google “China owns USA”. A pesquisa dá 25 milhões de resultados ainda que a afirmação pura e simplesmente não seja verdadeira — os estrangeiros detêm menos de um terço da dívida extraordinária dos EUA.
A despeito deste ataque violento de críticas familiares, devemos recordar que Hume previu o fim da Grã-Bretanha devido à emissão excessiva de dívida no momento em que o país estava para dominar o mundo durante um século. É difícil estar mais errado; mesmo assim, os argumentos contra a dívida, essencialmente na mesma forma, continuam a ser usados hoje, três séculos depois. Ao que parece, os fatos raramente triunfam sobre uma boa ideologia liberal e, quando se trata de uma boa ideologia liberal, não se pode bater Adam Smith.
Adam Smith: A Prática de Financiamento [Dívida] Debilitou Gradualmente Todos os Estados que a Adotaram
Contemporâneo de Hume, o ainda mais famoso Adam Smith também foi perturbado pelo problema da dívida pública. A diferença entre Hume e Smith é que, apesar de identificar o problema, Hume não apresenta solução, considerando inevitável a escorregadela para a insolvência e o enfraquecimento. Smith vai um passo mais longe: identifica tanto o problema como a solução. Para resolver o problema da dívida, devíamos adotar o princípio da austeridade — também conhecido como a avareza dos escoceses.
A economia de Smith é um pouco como Shakespeare — muitas vezes citada, raramente lida. Das suas notas acerca da divisão do trabalho na afamada fábrica de alfinetes até à “mão invisível” que guia ações egoístas para fins comuns, são bem conhecidos as citações de Smith. Os pormenores do que Smith disse sobre a economia são de longe menos conhecidos e muito surpreendentes. Smith reuniu grande parte da obra dispersa de economistas sobre a natureza do dinheiro, do crescimento econômico, do papel do capital e do trabalho, e de uma quantidade de outros assuntos, e depois teve o bom senso de pôr tudo num local acessível: A Riqueza das Nações. Como observou Albert Hirschman, este livro não era um projeto acadêmico; era uma defesa do capitalismo antes do seu triunfo, e também uma defesa muito bem-sucedida.
Para o que aqui nos interessa, encontramos em Smith uma sensibilidade particular ao Estado e à sua dívida que nos aproxima da ideia moderna de austeridade, mas de um ângulo surpreendente: a importância do hábito e da parcimônia pessoal como motor do crescimento capitalista. Mine-se essa sensibilidade e é o próprio capitalismo que treme. Para compreender totalmente o que Smith tinha a dizer acerca de dívida e parcimônia, precisamos começar pelo que ele disse acerca da atividade bancária, e daí passar às poupanças, ao investimento, ao crescimento e, o que talvez seja mais surpreendente, à necessidade do Estado engendrada pelos problemas da desigualdade e da política de classes, e ao problema do modo de como pagar.
A Parcimônia Produtiva de Adam Smith
Para Smith, a atividade bancária tem tudo a ver com a confiança no banqueiro. Se os clientes tiverem confiança nas promissórias de um banqueiro (o seu papel-moeda), este conseguirá emprestar mais em papel do que o que guarda em reservas de ouro para cobrir os seus depósitos. Hoje, isso é chamado de “sistema bancário de reservas fracionárias”. Todavia, Smith, tal como Hume, considera o dinheiro incapaz de afetar variáveis reais em longo prazo, porque adicionar papel-moeda à economia não levará ao crescimento. Porém, se muitos banqueiros de confiança produzirem mais papel-moeda do que a economia consegue absorver e, o que é crucial, se esse papel-moeda for considerado “tão bom como ouro” — para usar a expressão no seu contexto apropriado —, o ouro que está apoiando esse papel- -moeda no cofre do banco será desprovido de função internamente. Felizmente, pode ser mandado para o estrangeiro, permitindo assim que o país de origem importe mais.
Smith sustenta que as importações podem ser de dois tipos: “bens (…) provavelmente para serem consumidos por pessoas ociosas que não produzem nada” ou bens que “podem comprar uma quantidade adicional de materiais (…) e empregar (…) pessoas das indústrias”. “Na medida em que for empregue da primeira maneira, promove a prosperidade (…) Na medida em que for empregue da segunda maneira, promove a indústria”. É, então, a frugalidade inerente aos Escoceses — a sua avareza — que parece ser a chave do crescimento (indústria). Por que ser parcimonioso e comprar bens de investimento em vez de vinhos estrangeiros? Fazemo-lo, segundo Smith, por causa de um sentimento que vem “conosco do útero e nunca nos deixa até irmos para a sepultura” — um sentimento que leva ao crescimento econômico.
Para Smith, o ato de poupar promove investimento, e não consumo. Por quê? Porque a riqueza da nação é o seu rendimento total. Retire-se desse rendimento o que é utilizado para a reprodução do trabalho (salários) e o que fica é lucro. Os lucros são então reinvestidos na economia através das poupanças dos comerciantes, que são emprestadas aos membros produtivos da sociedade (outros comerciantes) para investir. Hoje isto é chamado de “economia do lado da oferta”. O investimento promove o consumo e torna-o possível — e não o contrário. Por causa disso, “a maior parte [do investimento] destinar-se-á naturalmente ao emprego da indústria”. Subjacente a esta visão global está uma psicologia particularmente escocesa que vale a pena desembrulhar porque sugere a razão pela qual a ideia de austeridade tem tal força moral, ainda hoje.
Para Smith, porque a poupança leva ao investimento, não há defasagens nem perdas de rendimento; nem é possível a acumulação ou a incerteza. Consequentemente, a dívida não tem papel no seu sistema enquanto a poupança é ao mesmo tempo boa e natural para nós. Como diz Smith: “A parcimônia, e não a indústria, é a causa imediata do aumento do capital (…) seja o que for que a indústria compre, se a parcimônia não poupasse e guardasse, o capital nunca seria maior”. A frugalidade torna-se assim uma virtude, enquanto a prodigalidade se torna um vício tal que, “se a prodigalidade de uns não fosse compensada pela frugalidade de outros, a conduta de todos os pródigos, ao alimentar os ociosos com o pão dos industriosos… empobreceria todo o país”.
O que nos salva da pobreza e do enfraquecimento do Estado é, então, este sentimento: de que as pessoas são por natureza poupadoras parcimoniosas estruturadas para investir. O capitalismo de Smith está assentado em uma predisposição psicológica para poupar em vez de gastar. Como Smith diz de algo esperançoso, embora “alguns homens aumentem muito consideravelmente a sua despesa conquanto a sua receita não aumente, podemos estar certos de que nenhuma classe ou ordem de homens alguma vez o faz (…) porque os princípios da prudência comum (…) influenciam sempre (…) a maioria de cada classe”. Claramente, Smith não imaginava o devedor hipotecário norte-americano do século XXI nem o Banco Central Europeu. Mas o que ele viu, e receou, foi algo que transtornaria esse desejo natural de poupar e investir: dinheiro fácil, que é o que os mercados de crédito (dívida) oferecem. Em suma, desvirtuando a sensibilidade de poupar através dos empréstimos ao governo, “grandes nações são (…) empobrecidas pela (…) prodigalidade e má conduta pública”. Mais uma vez, o mercado não pode errar, então a culpa tem de ficar com o Estado.
Smith (Relutantemente) Traz o Estado de Volta…
Smith reconhece inteiramente que o mercado não pode existir sem o Estado. Na verdade, o livro A Riqueza das Nações detalha a necessidade do Estado fornecer defesa externa, justiça interna, e até o treino e formação de trabalhadores. O mais interessante é que é irresistivelmente honesto em relação aos efeitos políticos do capitalismo, assinalando que “onde houver propriedade há grande desigualdade”, de tal modo que “a aquisição de propriedade valiosa e extensa (…) exige necessariamente o estabelecimento de um governo civil”. Um governo civil que, “se é instituído para segurança da propriedade, é na realidade instituído para defesa dos ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não têm nada”. Esta aceitação coloca Smith a uma grande distância do contrato voluntário de Locke entre homens e de novo perto do dilema liberal sobre o Estado: não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, mas o pior é que não se quer pagá-lo, e é isso que mina o próprio capitalismo.
Tendo admitido que precise do Estado, Smith tem de encontrar agora uma maneira de paga-lo, o que necessita impostos. O primeiro princípio da tributação de Smith é a progressividade. Isto é, “os súditos de todos os Estados deveriam contribuir (…) em proporção para a receita de que gozam respectivamente sob a proteção do governo”. Isso parece implicar que os ricos deveriam suportar uma parte maior do fardo fiscal, uma vez que gozam de mais receitas protegidas pelo Estado. Porém, o exame feito por Smith de diferentes formas de tributação leva-o a minimizar a importância da progressividade, recomendando impostos sobre consumos de luxos — tudo o que vá além do meramente essencial — como a melhor maneira de financiar o Estado. Todavia, os impostos sobre o consumo talvez sejam a forma mais regressiva de imposto. Portanto, como é que isso convive com a sua ideia de proporcionalidade?
Convive bem se começarmos pela observação de que “a totalidade do consumo das classes inferiores da população… é em todos os países muito maior… do que o da classe média… e superior”. Por isso, tributar qualquer coisa exceto artigos luxuosos “recairia totalmente sobre as classes superiores da população”, o que diminuiria a sua parcimônia e, assim, baixaria o crescimento. Mas não há maneira de um imposto sobre consumo não essencial bastar para financiar um Estado do tamanho imaginado por Smith. Então, como é que se pode financiar o governo? A resposta é dívida governamental, e Smith não gosta dessa resposta.
O problema de Smith com a dívida é que os Estados, ao contrário dos comerciantes, não são poupadores por natureza. Na verdade, para seu desgosto, “a parcimônia que leva à acumulação tornou-se quase tão rara nos governos republicanos (dirigidos por comerciantes) como nos monárquicos”. Como consequência, os comerciantes são indiretamente sobrecarregados com “enormes dívidas que presentemente oprimem e provavelmente arruinarão em longo prazo todos os grandes Estados da Europa”. De modo semelhante ao que afirma Hume, essa ruína ocorrerá porque os “grandes Estados” estão cheios de comerciantes com muito dinheiro que podem emprestar ao governo; e emprestarão dadas as boas condições que recebem. Este dinheiro fácil abala o incentivo para poupar tanto na classe mercantil como no Estado, e enfraquece o incentivo do Estado para tributar, tal como Hume sugeriu.
Como resultado, emite-se mais dívida. Finalmente, esta estratégia atinge um teto, e “os impostos [são] então lançados com o único objetivo de pagar o juro do dinheiro que se pediu emprestado com base neles”. Quando isto se passa, toda a classe mercantil deve vender e sair do país, deixando-o na bancarrota, uma vez que a única opção possível que o governo tem é dar um calote na dívida que contraiu.
O que torna a dívida governamental insuportável para Smith não é só o calote a que leva inevitavelmente: ele receia ainda mais as consequências distributivas dessa inadimplência. Para protelar o calote inevitável do fundo soberano, os credores serão pagos com moeda desvalorizada. Esses credores são, claro, “pessoas ricas, mais em posição de credoras do que de devedoras” e, como consequência desse financiamento inflacionário, as suas fortunas, e daí a sua capacidade de investir através da poupança, serão destruídas. Como resultado, “os devedores ociosos e esbanjadores [ganharão] à custa do credor frugal (…) transportando capital (…) para aqueles que têm probabilidades de (…) destrui-lo”. Em suma, o dinheiro fácil oferecido por meio da compra de dívida governamental subverte a poupança, a máquina de crescimento e o progresso. É por isso que se deve resistir à dívida governamental e se deve abraçar a austeridade, para poupar.
Locke, Hume e Smith: Produzindo a Austeridade por Padrão
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Perceba que nenhum destes teóricos faz uma defesa direta da austeridade, daí o nosso foco na ausência de um projeto austeridade. Locke, Hume e Smith estão muito ocupados com a construção e a contenção dos Estados, Estados que ainda não estão gastando o suficiente para garantirem uma política de cortes na despesa, mas cujas dívidas são, ainda assim, profundamente perturbadoras. Encontramos a gênese da austeridade aqui no receio patológico da dívida governamental que está no cerne do liberalismo econômico. A dívida governamental perverte os poupadores, distrai os comerciantes e arruína a riqueza acumulada.
Locke põe o liberalismo a limitar todos os custos do Estado. Hume não vê uma verdadeira necessidade do Estado uma vez que os comerciantes são a classe produtiva para quem o dinheiro deveria fluir. Smith considera que o Estado tem um papel, mas depois sente grande dificuldade em financiá-lo. Quer pagar o mínimo possível de impostos possível, mas reconhece que sem esse apoio o capitalismo que defende não pode ser politicamente sustentado. A parcimônia (poupança) de Smith e não a prodigalidade (consumo) comanda tudo, e ainda assim a dívida governamental, uma dívida que será emitida, sendo os impostos insuficientes e os Estados pródigos, abala a nossa propensão natural para poupar, ameaçando assim todo o esquema de Smith, tão familiar que o vemos repetido sem modificações hoje em dia. Mas é Smith quem transforma a dívida em uma moralidade. Nos dá os argumentos morais contra a dívida que ainda hoje ressoam.
Hoje ressoam. Para ser justo, não é que Smith e Hume faziam isso tudo apenas pela vontade de se esquivarem dos impostos. Muito antes do tempo de Locke, os Estados acumulavam dívida e faliam com uma regularidade monótona, empobrecendo, no caminho, quem lhes emprestava. Em sua própria vida, tanto Hume como Smith viram exemplos de financiamento da dívida que correram mal. No entanto, Smith viveu o trauma do colapso do Ayr Bank, um banco escocês financiado por dívida que ameaçou a solvência do principal benfeitor de Smith, o duque de Buccleuch. Nos seus escritos, Hume refletiu sobre a tentativa anterior de John Law, outro escocês, de pagar a dívida nacional da França, emitindo ações em uma companhia gigantesca de trading que usava o Banco de França como seu agente fiscal. Em 1721, quando a bolha daí resultante estourou, a França foi à bancarrota — outra vez.
Contudo, em termos do modo como vemos hoje a austeridade, a crítica moral que Smith faz da dívida parece tão familiar quanto a crítica econômica de Hume. Poupar é uma virtude, gastar é um vício. Os países que poupam devem estar fazendo o que é correto, enquanto os gastadores devem estar arranjando problemas. Na crise do euro, vemos países poupadores do norte da Europa lado a lado com libertinos do sul da Europa, apesar do fato de ser manifestadamente impossível obter demasiado dinheiro emprestado sem haver muitos empréstimos. Note-se, de igual modo, que as afirmações dos países ocidentais de que os seus problemas de dívida estão nos países asiáticos merecem pouca simpatia. A moralidade não está do lado dos pródigos. Dentro da zona do euro, os países com excedentes não têm problemas em manter um excedente comercial permanente, mas criticam os outros por terem déficits, como se pudesse existir um sem o outro.
Finalmente, as preocupações de Smith acerca da poupança contra a dívida e da parcimônia contra o consumo encontram eco imediato na invocação pela chanceler Merkel dos valores de uma dona de casa da Suábia como cura para os problemas da zona do euro, sendo poupar, ser parcimonioso e evitar dívidas a chave do êxito. Trezentos anos mais tarde, o mantra continua a ser a mesma. A austeridade tal como a conhecemos hoje, enquanto política ativa de cortes orçamentários e de deflação, pode não ser imediatamente evidente na história do início do pensamento econômico. Mas as condições de seu aparecimento — parcimônia, frugalidade, moralidade e um medo patológico das consequências da dívida governamental — estão bem enraizadas no registo fóssil do liberalismo econômico desde o início.
Sofrimento crescente: a austeridade se encontra com o Estado moderno
Os economistas liberais do século XIX trabalharam sobre as bases lançadas por Locke, Hume e Smith, e, ao fazê-lo, replicaram e ampliaram o problema do Estado do “não se pode viver com ele, não se pode viver sem ele, não se quer pagar por ele” que assombra o liberalismo econômico. Liberais posteriores, como David Ricardo, colocaram-se firmemente ao lado do “não se pode viver com ele” da barreira quando tratou do Estado. Ricardo foi precursor do estudo dos agregados (terra, trabalho e capital) como atores coletivos cujos interesses eram de soma zero uns em relação aos outros. Ricardo imaginou uma economia altamente competitiva de pequenas empresas em que os lucros inicialmente elevados dos primeiros a entrar num mercado convergiam para uma taxa média de lucro muito baixa quando mais pessoas entravam e a tecnologia se difundia pelo setor. Nesse ponto baixo, o capital e o trabalho sairiam do mercado, procurando novas áreas de lucro, iniciando assim outra vez o ciclo de investimento.
Não havia papel positivo para o Estado na visão de Ricardo. Na verdade, a única coisa que tinha de ser evitada era qualquer tentativa do Estado em amortecer ajustamentos do mercado, por mais construtivos que esses ajustamentos pudessem ser. Segundo a opinião de Ricardo, mesmo que “as condições dos trabalhadores sejam muito miseráveis”, o governo não deve tentar compensar a sua sorte. Tentativas de “corrigir a situação dos pobres (…) em vez de tornar os pobres ricos (…) tornam o rico pobre”. Como tal, o papel adequado do Estado é ensinar aos pobres o “valor da independência” em vez de alterar a distribuição do mercado. O Estado deve policiar as fronteiras da propriedade, mas não deve alterar a distribuição dessa propriedade. O sotaque lockiano de Ricardo continua a ser pronunciado.
Todavia, o Estado alterou o seu papel ao longo do século XIX, apesar das advertências de Ricardo. As próprias atividades do nacionalismo e construção do Estado no século XIX exigiam um Estado de longe mais intervencionista até do que Smith imaginara. Além disso, o próprio êxito do capitalismo trouxe uma variedade de movimentos sociais que exigia representação política, compensação econômica e proteção social, coisas que custavam dinheiro e ameaçavam a propriedade privada. Economistas como John Stuart Mill, que estavam do lado oposto da barreira, o do “não se pode viver sem ele”, esforçavam-se para lidar com este novo mundo à medida que o século XIX avançava.
O mais famoso tratado filosófico de Mill, Sobre a Liberdade, tentou encontrar um caminho entre as reivindicações abusivas das massas e a proteção dos direitos individuais liberais, enquanto os seus Princípios de Economia Política demarcavam de forma cada vez mais precisa as áreas de legítima ação do Estado, mesmo na área da dívida governamental. Isto é, em vez de repetir a tese do “inevitável enfraquecimento do Estado através da dívida” de Hume e de Smith, Mill defendia que desde que os pedidos de empréstimo do governo não concorressem por capital, fazendo assim subir as taxas de juros, a emissão de dívida era aceitável, ainda que os impostos fossem preferíveis. Mais uma vez, tal como Hume e Smith, vemos que um lado do liberalismo rejeita o Estado enquanto o outro aceita que ele tenha um papel limitado.
Um lado do liberalismo, como vimos com Locke e Hume, nega um papel ao Estado e depois, em Smith, reconhece a sua existência. Ricardo exemplificou esta tradição em que o mercado é colocado como o oposto do Estado. Os escritos de Mill mostram-nos outro lado do liberalismo do século XIX que se adapta ao crescimento do Estado e à sua exigência de receitas. A tensão entre Ricardo e Mill relativamente ao papel do Estado não era única. Antes, era e continua a ser endêmica no liberalismo econômico. O resultado foi fazer o pensamento liberal seguir dois caminhos muito diferentes durante o fim do século XIX e o início do século XX. Um caminho levou ao novo liberalismo, movimento inicialmente britânico que conduziu o liberalismo para além de Ricardo e de Mill, em uma direção mais intervencionista. O outro caminho levou à Áustria, onde o liberalismo fez uma virada mais fundamentalista.
Novo Liberalismo e Neoliberalismos
O novo liberalismo da Grã-Bretanha nasceu quando as elites do Partido Liberal britânico se puseram essencialmente ao lado de Mill em relação a Ricardo. Assim procuraram desenvolver o papel do Estado como defensor do capitalismo e como instrumento de reforma social em um tempo de conflito de classes e de democracia de massas incipiente. Em suma, para manter o primado da iniciativa privada e das instituições liberais de mercado, a pobreza e a desigualdade que Ricardo encarava como naturais e inevitáveis não podiam continuar a ser toleradas. Além disso, os novos liberais britânicos não viam necessariamente este abraço ao Estado como um mal, como uma maquiagem para evitar a revolução. Pelo contrário, o novo liberalismo reconhecia a responsabilidade do Estado na gestão corrente e na reforma das instituições capitalistas.
As consequências em longo prazo desta transformação do liberalismo britânico foram dramáticas. Pensões universais, seguro desemprego e a intensificação da regulação industrial, tudo se seguiu no século XX. Vinte anos mais tarde, os herdeiros deste movimento foram os grandes reformadores sociais e econômicos das décadas de 1930 e 1940, como T. H. Marshall, John Meynard Keynes e William Beveridge. Eles, por sua vez, levaram o novo liberalismo ainda mais longe, lançando as fundações de um Estado de Bem-Estar social abrangente.
Se o novo liberalismo foi aquilo a que podíamos chamar “a modificação de Mill” — uma adaptação pragmática às complexidades da economia moderna —, a economia austríaca foi a “rejeição de Ricardo” — uma reação fundamentalista contra a economia moderna. Os economistas austríacos acreditavam que o liberalismo se defendia melhor não através de mais redistribuição e gestão estatal, mas através da completa retirada do Estado de seu papel na economia. Recorrendo a um termo que hoje é um lugar-comum, os economistas austríacos foram os neoliberais originais. Discuto mais profundamente as ideias austríacas no capítulo 5. Em suma, os economistas austríacos atacaram as novas ideias intervencionistas em duas frentes.
Primeiro, puseram em questão a afirmação dos novos liberais de que as operações do mercado livre não adulterado punham em perigo o capitalismo, usando o contra-argumento de que o mercado tinha uma estrutura evolutiva em longo prazo que a intervenção governamental não podia alterar nem prever. Como tal, a intervenção é sempre prejudicial, seja onde for. Além disso, por produzirem distorções de mercado e maus investimentos, as intervenções governamentais eram a fonte das explosões de crédito e falências.
Os mercados eram estáveis a menos que sofressem interferências. O capitalismo não era inerentemente instável: o governo é que o fazia assim. Segundo, os economistas austríacos nunca perderam o medo do Estado Leviatã, que continuavam a considerar o inimigo supremo dos valores liberais. Especificamente, faziam a acusação de que, uma vez que fossem autorizados a intervir, os governos usariam sempre as impressoras para financiar as suas atividades. Onde os novos liberais britânicos começaram a ver que as recessões eram passíveis de melhora através de mais despesa, os economistas austríacos viam nas recessões a dor necessária da austeridade após a “festa” intervencionista. Em suma, enquanto os novos liberais e os seus herdeiros de meados do século XX abraçavam o Estado e a intervenção, os economistas austríacos, em particular Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Joseph Schumpeter, rejeitavam inteiramente essas noções.
John Maynard Keynes assinalou uma vez que:
as ideias de economistas e de filósofos políticos, tanto quando têm razão como quando não a têm, são mais poderosas do que normalmente se pensa. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais: homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, são normalmente escravos de algum economista defunto.
As ideias de hoje acerca da austeridade não são exceção a esta regra. Os herdeiros de meados do século do novo liberalismo e da Escola Austríaca ainda definem as condições básicas do debate da austeridade oitenta anos depois. Agora, seguimos essas ideias através da Grande Depressão e do período entre guerras, usando as obras de Keynes e de Schumpeter como nossos modelos.]
Mark Blyth – Professor de política internacional na Brown University. Doutorou-se em ciência política na Columbia University. É autor de “Great Transformations: Economic Ideas and Institutional Change in the Twentieth Century”.
Um Nobel de Economia explica: imposto a pretexto de estimular a ciência, sistema de propriedade intelectual (PI) favoreceu apenas as grandes corporações. Em favor da pesquisa, há alternativas
Ao longo das últimas duas décadas, houve uma grave reação do mundo em desenvolvimento contra o atual regime de PI. Em grande medida, isso se deve a que os países ricos quiseram impor um modelo único para todos os países no mundo, influenciando o processo de definição de regras na Organização Mundial do Comércio (OMC) e forçando sua vontade por meio de acordos de comércio.
Os padrões de PI defendidos pelos países desenvolvidos são tipicamente projetados não para maximizar a inovação e o progresso científico, mas para maximizar os lucros de grandes empresas farmacêuticas e outros atores capazes de influenciar negociações comerciais. Não surpreende, portanto, que grandes países em desenvolvimento, com bases industriais substanciais – como África do Sul, Índia e Brasil – estejam liderando o contra-ataque.
Esses países colocaram na mira principalmente a manifestação mais visível da injustiça da PI: a acessibilidade a medicamentos essenciais.
Por Joseph Stiglitz, Dean Baker e Arjun Jayadev, em Project Syndicate – tradução: Maurício Ayer.
Nosso país está sendo retalhado, cortado, estripado para que alguém possa vendê-lo, aos pedacinhos, aos vândalos capitalistas que estão de olho neste butim monumental.
É interessante como as pessoas acreditam que o país é vulnerável mas ainda assim o país do futuro, onde ouros estarão à for da terra, as nossas mulheres serão eternamente ingênuas e cândidas e por onde correrá rios de mel e dos céus cairão toneladas de manás.
Acabamos de assistir a mais uma jornada (meio longa) de exaltação das nossas virtudes futurísticas e físicas, o que foi, como de resto, seguidas de um desalento tão descomunal, tão enorme em magnitude quanto a nossa euforia passageira.
Mas será para tanto?
Será que o país, após deslanchar num deslanchar quase sem freios, agora parou e não só parou, como ainda engatou uma marcha ré?
Ou será mesmo que somos um povo que ama o passado (Belchior) e não percebemos, não queremos perceber que o novo sempre vem?
Para não dizer que não falei de flores, mas apenas de seriedades, cito um professor sério, Luiz Werneck Vianna, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) para quem
“O Brasil não vai acabar. O Brasil é um projeto feito ao longo de décadas, gerações. O Brasil continua sendo um extraordinário lugar para se viver, especialmente se olharmos em volta e vermos como temos sido capazes de viver no meio dessa amargura, desses ódios desencontrados da cena política, com uma sociedade que se mantém firme nas suas posições, que trabalha e que procura atingir seus objetivos. O Brasil não regride; o Brasil segue em frente.”
[Indígenas Warao que estão em Manaus da Venezuela serão levados para um alojamento no bairro Coroado, na zona leste da cidade, até o final desta semana. A informação é do Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM), confirmada pela Secretaria Estadual de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc).
O local, que terá capacidade para 300 pessoas, está passando por obras e receberá mobília e eletrodomésticos. O abrigo é uma das recomendações feitas pelo MPF a diversos órgãos públicos para garantir o atendimento humanitário aos imigrantes. O órgão divulgou na segunda-feira (29) um balanço do cumprimento desses pedidos.
“Em relação ao abrigo a gente verifica que tem sido dado um encaminhamento, ainda não com a velocidade que a gente gostaria, mas tem sido encaminhado. Contudo o que a gente verifica é uma atuação do estado e do município. Da União ainda não recebemos uma resposta oficial. A gente aguarda essa resposta sobre o repasse de recursos e as pendências quanto ao reconhecimento da emergência no município pela União sob pena de a gente não ter outra saída a não ser efetivamente judicializar a questão”, disse o procurador da República Fernando Merloto.
O procurador destacou ações que já foram implementadas, como uma oficina de aproximação com os indígenas para ouvir as necessidades deles e entender um pouco da cultura desses povos, além de ações integradas de saúde. A rede municipal de saúde de Manaus terá por exemplo, o apoio de lideranças indígenas e xamãs para facilitar a comunicação com os Warao e enfatizar a importância do tratamento hospitalar em casos de doenças graves como a pneumonia. Também será realizado no próximo mês um seminário para discutir uma política de migração indígena, o que ainda é um desafio, na opinião da chefe da Defensoria Pública da União no estado, Lígia Prado da Rocha.
“A política migratória para os Warao ainda tem que ser pensada de maneira a ser realizada de forma mais adequada. As nossas respostas de políticas migratórias para as populações que não são indígenas são mais adequadas, mas não se aplicam necessariamente aos Warao, principalmente pela tendência deles de deslocamento pendular, ou seja, eles querem entrar no Brasil, mas querem ter a possibilidade de voltar para a Venezuela. A gente tem que pensar numa atuação para eles mais voltada para a resolução dessa questão de entrada e saída constante, o que nem sempre se aplica ao pedido de refúgio”, explicou a defensora.
A assessoria da Casa Civil da Presidência da República informou que representantes da pasta e dos ministérios da Justiça, da Saúde, e do Desenvolvimento Social e Agrário viajaram na noite desta segunda-feira para a capital amazonense com a missão de viabilizar o local que vai servir de alojamento para os venezuelanos. Além disso, segundo a Casa Civil, o governo federal estuda a possibilidade de instalar um centro provisório de acolhimento para dar assistência aos imigrantes venezuelanos e não há a intenção de construir uma barreira na fronteira.
Atualmente, mais de 500 indígenas Warao estão em Manaus. A maioria deles está acampada em condições precárias na rodoviária da cidade e embaixo de um viaduto. Durante o dia, mulheres e crianças, principalmente, vão para os semáforos e para o centro pedir esmolas.
O MPF no Amazonas também apresentou hoje um parecer técnico elaborado pelo antropólogo do órgão, Pedro Moutinho, sobre o processo migratório dos indígenas venezuelanos ao Brasil. O documento traz as principais características culturais dos Warao e a contextualização da crise enfrentada no país vizinho.
“Desde a década de 20 do século passado empreendimentos governamentais feitos no território tradicional de ocupação no Delta do Orinoco foram provocando os deslocamentos das comunidades para as cidades, onde há um movimento de busca pela sobrevivência, de uma estratégia adaptativa que se dá tanto pela inserção dos indígenas no mercado informal de baixa qualificação quanto pela prática de pedir de dinheiro, que está baseada em uma adaptação de modos tradicionais de subsistência”, explicou o antropólogo.
O parecer técnico também apresenta sugestões para garantir o respeito aos direitos do povo indígena na cidade de Manaus, entre elas, “que os Warao sejam ouvidos de forma livre e informada sobre todas as decisões e políticas que os afetem, em todas as áreas: moradia, saúde, educação, trabalho, assistência social, mobilidade, etc.; que haja um esforço interinstitucional de regularização da situação dos indígenas Warao no Brasil e que esta dispense a cobrança de taxas ou de documentos dos quais eles não dispõem, no sentido de desburocratizar o seu acolhimento”.
As recomendações também incluem “a construção de uma política migratória em Manaus que leve em consideração as especificidades socioculturais do povo Warao, em particular a sua dinâmica própria de mobilidade, marcada pelo trânsito constante entre o Brasil e a Venezuela, garantindo o seu direito de ir e vir”.]
“Crise na Venezuela: índios Warao fogem para o Brasil, mas são deportados pela PF”
[Os índios Warao, um dos povos mais antigos do Delta do Orinoco, no nordeste da Venezuela, estão fugindo da crise política e econômica do país presidido por Nicolás Maduro para buscar refúgio em cidades de Roraima, na fronteira do extremo norte do Brasil. Eles chegam com fome, sede e necessitados de atendimento médico.
Diferente dos imigrantes venezuelanos não indígenas e de outras nacionalidades, como os haitianos e sírios, que conseguem refúgio no Brasil, os índios Warao estão sendo deportados pela Polícia Federal. De 2014 a 2016 foram 223 indígenas obrigados a voltar para Venezuela.
As deportações se intensificaram nas cidades de Boa Vista e Pacaraima entre os meses de dezembro do ano passado a abril deste ano, quando 166 índios foram retirados das ruas ou de casas abandonadas, onde estavam abrigados, sem demonstrar resistência à força policial.
Na deportação, os índios Warao são transportados em ônibus durante uma viagem de 215 quilômetros até Santa Elena do Uairén, capital de Gran Sabana, no estado Bolívar. Lá são entregues às autoridades migratórias venezuelanas.
Esse mesmo percurso foi realizado duas vezes em 2016: em 29 de janeiro com 33 indígenas deportados e, em 12 de abril com 65.
A justificativa para as deportações da PF é a mesma para todos os casos: “Os estrangeiros estão sem documentos regular de entrada ou vencido exercendo atividade artística remunerada, inclusive, pedindo esmolas ou vendendo artesanatos nas ruas e semáforos, o que é incompatível com a condição de turista”, diz.
A Prefeitura de Boa Vista, administrada por Teresa Jucá, ex-mulher do senador Romero Jucá, ambos do PMDB, colocou a Guarda Civil Municipal a serviço do apoio das deportações dos índios Warao sob o argumento de que “a retirada dos indígenas faz parte do atendimento da demanda da população de Boa Vista que vem sendo abordada por pedintes, indígenas estrangeiros e outras pessoas oriundas de países de fronteira que não apresentam documentação legal para permanência em solo brasileiro”. (Leia mais aqui).
A reportagem da Amazônia Real encontrou nas ruas de Roraima famílias de índios Warao entre os dias 16 a 19 de maio, depois das deportações da PF. Elas dizem que partem das aldeias do Delta do Orinoco, no estado Delta Amacuro, e viajam de canoa, ônibus, pegando carona ou pagando táxi para fazer um percurso de 925 quilômetros até chegar à capital roraimense.
Juan Perez, 73 anos, é da aldeia de Mariusa, em Tucupita, e chegou a Boa Vista há duas semanas para vender redes e conseguir dinheiro para levar comida para seus familiares. “Eu e minha esposa já conseguimos vender dez redes. Também pedimos dinheiro aos motoristas quando param nos sinais de trânsito. A situação dos povos indígenas de Mariusa é muito difícil. Falta água e comida. Esse dinheiro ajuda muito, não temos a quem recorrer”, disse.
Por causa da crise econômica, que elevou a inflação acima de 600%, a população venezuelana sofre com a falta de produtos básicos de subsistência, como farinha, arroz, açúcar e de higiene pessoal, leite, medicamentos, além de desabastecimento de energia elétrica.
A ONG internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW) classificou a situação na Venezuela de Nicolás Maduro como “muito grave”, e indicou a necessidade do Brasil se posicionar em relação à crise política e econômica, atuando para evitar que a situação se transforme em violência e em abusos ainda maiores do que os já sofridos pela grande maioria dos cidadãos do país.
Perguntado pela reportagem se a polícia poderia evitar as deportações de índios Warao – concedendo-os a solicitação de refugiados -, o superintendente em exercício da PF em Roraima, delegado Alan Robson Alexandrino Ramos, afirmou que eles não se enquadram em nenhuma das classificações de pedido de refúgio no Brasil.
“Existem leis de enquadramento humanitário. A Presidência da República fez uma norma referente aos haitianos. O haitiano que chega ao Brasil é albergado por um decreto presidencial. Não enxergo o indígena nessas condições humanitárias. Entendo, como cidadão, que há um problema social, mas como aplicador da lei, não podemos fugir dela. Perante o ordenamento jurídico brasileiro eles não são vistos como indígenas e, sim, como estrangeiros, e devem ser tratados como tais, pois um turista não pode trabalhar, ministrar palestra, mendigar, pois são atividades incompatíveis com as de turista”, explicou o delegado.
Alan Robson Ramos explicou que as deportações de indígenas Warao acontecem porque eles estão sem documento ou com vistos temporários (ou de turismo) vencido.
“Alguns estão com passaporte carimbado como turistas, porém poucos têm passaporte, a maioria entrou sem nenhum registro. Eles têm que fazer esse procedimento na Polícia Federal, que é o registro no passaporte e no nosso sistema, porém não o fazem e circulam sem documentos pela cidade de Boa Vista”, disse o delegado.
O prazo máximo de permanência de um estrangeiro no Brasil, em viagem de turismo (Visto de Turismo – VITUR), é de 90 dias concedidos na entrada, com a possibilidade de uma prorrogação de (até) outros 90 dias, totalizando o máximo de 180 dias por ano. Depois de esgotado o período legal de estada do turista, é aplicada uma multa que pode chegar a R$ 827,75.
Alta imigração confirma flagelo de refugiados
A Polícia Federal fez a primeira deportação dos índios Warao em 10 de julho de 2014, quando foram retirados de Boa Vista 28 pessoas. Isto é uma constatação de que a situação de imigração dos indígenas da Venezuela para o Brasil já existia bem antes do agravamento da crise no país vizinho.
A fuga dos índios Warao para Roraima se intensificou no segundo semestre de 2015. Como a Polícia Federal discrimina apenas a nacionalidade do estrangeiro na entrada no país, não é possível saber quantos índios Warao ingressaram na fronteira com a documentação regular.
Conforme o Sistema Nacional de Cadastro e Registros de Estrangeiros (Sincre) da PF, 1.278 venezuelanos receberam o Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) entre 2015 e maio de 2016. Esses registros são classificados como vistos temporários (ou de turismo), permanente, fronteiriço, trabalho e provisório. No ano passado a polícia fez oito registros de solicitação de refúgio.
Já o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça, recebeu no período de 2015 e maio de 2016, 1.240 solicitações de refúgio de venezuelanos. De 2015 (868) em relação a 2014 (160) houve um aumento de 442% nos pedidos, o que reflete a alta na imigração no Brasil.
Reconhecido como um país acolhedor, o Brasil foi o primeiro país do Cone Sul a ratificar a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951. Em 1997 o governo brasileiro criou o Conare, responsável por reconhecer a condição de refugiado, conforme a Lei 9.47 no ano de 1960.4/97.
Entre as condições para o refúgio estão a perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e grave e generalizada violação de direitos humanos.
Procurado pela reportagem da Amazônia Real para falar sobre a situação dos índios Warao em Roraima, o Conare disse que devido ao princípio da confidencialidade da legislação, não pode informar se entre os pedidos de refúgio de venezuelanos houve alguma solicitação da etnia indígena.
Questionado sobre as deportações de índios Warao pela Polícia Federal, o Conare disse que não pode se posicionar sobre diligências alheias ao procedimento de refúgio. “Cabe acrescentar que o Departamento de Polícia Federal tem assento no Plenário do Conare. Uma vez protocolada a solicitação de refúgio, o solicitante não poderá ser expulso ou deportado ao país de origem até que seu pedido seja julgado pelo Conare”.
O Conare disse ainda que, caso alguma solicitação de refúgio de venezuelano da etnia Warao chegue ao Comitê, o processo será instruído com base na análise das condições objetivas do país de origem e nas alegações feitas no solicitante durante sua entrevista individualizada. “Por meio da entrevista, é facultado ao solicitante a possibilidade de expor as condições objetivas e subjetivas que motivaram sua vinda ao Brasil e sua solicitação de proteção internacional. Com base nessas informações, o plenário do Conare poderá tomar uma decisão sobre o reconhecimento ou não da condição de refugiado do solicitante”.
Quem são os Warao?
A maioria dos índios Warao encontrados pela agência Amazônia Real em Roraima é de aldeias de Mariusa, onde vivem mais de 500 pessoas. Na região de áreas alagadas e casas de palafitas (construção de estacas) está localizado o Parque Nacional Mariusa, no Delta do rio Orinoco, que se encontra com o Oceano Atlântico.
Também conhecidos como ‘pessoas da canoa’, os Warao são exímios pescadores e artesãos. A presença deles nesta região é datada de oito mil a nove mil anos, segundo as autoridades venezuelanas. O Censo Nacional da Venezuela diz que eles somavam 36 mil pessoas, em 2001.
Eles formam a segunda maior população indígena da Venezuela, atrás da etnia Wayúu. Os Warao sofrem de constante penúria, com dificuldade de acesso às políticas básicas de saúde e educação, com escassez de medicamentos. (Leia mais aqui).
Roraima não tem abrigos
Nas cidades de Boa Vista e Pacaraima – esta última na fronteira com Santa Helena do Uairén (estado de San) – não existem abrigos para acolher os imigrantes venezuelanos. Os índios Warao, que não têm dinheiro nem para comprar comida, dormem em praças, calçadas ou em casas abandonadas.
Sentada na calçada do centro comercial em Boa Vista, Ylmele González, 27 anos, estava com o filho de três anos no colo, pedindo esmolas a quem passava pelo local. Falando ora a língua materna (Warao), ora o espanhol, ela disse que veio para o Brasil com um visto de turista para 30 dias. Sua família sobrevive da pesca em Mariusa, na Venezuela. Com a crise econômica, porém, ela não tem para quem vender o peixe.
“A situação na minha comunidade é difícil, faltam comida e até água potável. A água é salgada e tudo que se planta não nasce, pois vivemos em uma área alagadiça, moramos em palafitas. A comida que é vendida lá é muito cara. Um quilo de farinha, por exemplo, custa dois mil bolívares, o que equivale na moeda brasileira a sete reais”, disse Ylmele. “Conseguimos água com navios petroleiros. Trocamos peixe por água; é assim que fazemos para não passar sede”, contou.
Segundo Ylmele, os indígenas Warao passam duas semanas em Boa Vista pedindo dinheiro e vendendo artesanatos para ter uma vida melhor em sua terra de origem. Quando voltam para o Delta do Amacuro, são revistados pela polícia venezuelana. “Muitas vezes, eles [os policiais] ficam com tudo que conseguimos em Boa Vista. Às vezes temos sorte, pois eles deixam passar, mas outros tomam nossas coisas, como farinha, açúcar, arroz e também o dinheiro que conseguimos. Isso é muito triste”, lamentou.
Em Roraima, as organizações religiosas ligadas ao apoio humanitário, como a Pastoral do Migrante ou mesmo a Fundação Nacional do Índio (Funai), estão à margem do problema da imigração venezuelana. Os índios Warao, por exemplo, não têm um local seguro para dormir, estão e situação de vulnerabilidade social. “Dormimos por aí, onde dá. Queria muito ter um lugar para ficar aqui, pois já estamos velhos para dormir na rua”, disse Juan Perez.
Ele relatou que no Delta Amacuro o pescado é a principal fonte de renda e subsistência das populações indígenas. Mas, com a economia em colapso na Venezuela, as vendas estão fracas. “Não estamos conseguindo vender como antes, a situação econômica afeta todos que vivem na Venezuela. Os povos indígenas estão esquecidos e passando fome”, diz Perez.
Em Pacaraima, a 15 quilômetros de Santa Elena do Uairén, o medo da deportação faz com que a indígena Warao Maria não se identifique para a reportagem da Amazônia Real. Sentada com o filho de quatro anos ao lado de uma lixeira, ela pedia esmolas a quem passava por ali. Disse que buscou refúgio no Brasil para ter alimento e água. “Não recebemos nenhum tipo de ajuda do governo venezuelano. Por isso precisamos pedir esmolas para poder comer”, afirmou.
Sobre a imigração para o Brasil sem documento regular, Maria disse que tenta evitar a deportação passando as manhãs em Pacaraima, e à noite cruza a fronteira e volta para Santa Elena, na Venezuela. “Nesse caso, não é irregular, pois passo algumas horas na cidade brasileira. Dormimos em qualquer lugar onde possamos atar uma rede em Santa Elena”, disse.
Em Santa do Uairén, a reportagem entrevistou o Coordenador Territorial do Ministério para os Povos Indígenas da Venezuela, Marcelo Rodriguez, que é índio da etnia Pemón. Ele não vê em curto prazo uma solução para a fuga dos índios Warao para o Brasil. “Mesmo o Brasil deportando e o governo deslocando os índios para o estado Delta Amacuro, os Warao voltam a imigrar. A principal causa da imigração que os próprios indígenas alegam é que não conseguem alimentos na Venezuela, e pela falta de atenção do governo nacional e regional”, declarou.
O que diz o Consulado da Venezuela?
O cônsul-adjunto da Venezuela em Roraima, José Martí Uriana Morán, disse à reportagem da Amazônia Real que a maioria do povo Warao não vai para Boa Vista mendigar ou vender produtos. “É só um grupo pequeno que migra para Boa Vista, sempre os mesmos indígenas que vêm e vão. Já aprenderam o valor da moeda brasileira”, afirmou.
Segundo Morán, o consulado, quando os encontra, alerta para não permanecerem nessas condições em Boa Vista. “Nós aconselhamos, pois, mesmo sendo indígenas, têm que ter visto de turista, não podem vender, nem mendigar, pois estão praticando ilegalidade no Brasil. Falamos com suas autoridades originárias e também com o Ministério dos Povos Indígenas na Venezuela, e explicamos a situação de alguns que vêm para cá. A maioria é reincidente”, disse.
Funai nem sempre é notificada
Conforme Riley Barbosa Mendes, coordenador regional da Funai em Roraima, nem sempre a fundação é notificada para acompanhar o processo antes da deportação dos índios Warao.
“A Funai tem que ser notificada da presença desses índios na cidade. Então identificamos qual o grupo indígena, etnia, de onde vem e por que estão em Boa Vista. Passamos todos os dados à Polícia Federal, consulado, município e estado. Mesmo sendo indígenas de outro país, como são índios a Funai deve acompanhar”.
Segundo ele, “a situação é séria, pois se trata de uma questão social que é recorrente e deve ser acompanhada de perto pelo poder público”.
Direitos Humanos em Roraima condena ação
Entrevistada pela Amazônia Real, a coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos (CMDH) em Roraima, Telma Lage, vê com preocupação a situação dos indígenas venezuelanos da etnia Warao que estão se refugiando nas ruas de Boa Vista.
“Sabemos da crise que o país vizinho enfrenta e as consequências para os mais pobres. Também nos preocupa a falta de estrutura e apoio para acolher esses pequenos irmãos. Por estarmos em uma região de tríplice fronteira, o estado deveria estar equipado e preparado para acompanhar e auxiliar os imigrantes que chegam”, disse.
Telma Lage destacou que os indígenas venezuelanos estão visíveis porque vivem nas ruas e incomodam a população. “Ninguém consegue vê-los”.
Segundo a coordenadora do CMDH, deportação “é uma política equivocada, ineficiente”. “Seria necessário que os órgãos responsáveis pela assistência social formassem uma rede, tornando-se capazes de buscar alternativas de inclusão e assegurando a garantia dos direitos fundamentais destes grupos”, afirmou Telma Lage.]
“Pueblos indígenas advierten contra espíritu autoritario tras la propuesta de Constituyente”
[Representantes de los pueblos indígenas de la etnia wayúu, en el estado Zulia, manifestaron su rechazo a la Asamblea Nacional Constituyente impulsada por el presidente Nicolás Maduro, basándose en la premisa de continuismo que representa una nueva Carta Magna que permita perpetuar las políticas establecidas por el gobierno.
Edwin Pérez Palmar, del clan Pushaina de Maracaibo y profesor de la Facultad de Ciencias Forestales y Ambientales de la Universidad de los Andes en Mérida, aseguró que los indígenas no pueden estar de acuerdo con la escasez de alimentos y medicinas y la exclusión y expulsión de los indígenas de sus propias tierras, así como de las decisiones políticas y sociales que se toman a nivel nacional.
“El hecho de impulsar una Constituyente sin previa consulta, sin participación democrática, sin ninguna participación de las etnias, es una muestra propia de los espíritus autoritarios. ¿Cuál es el temor de que se someta a referéndum consultivo?”, cuestionó Pérez, en defensa del derecho al voto universal, secreto y directo.
La marginación que sufre la población indígena de Venezuela fue el argumento central del vocero, resaltando casos como el Arco Minero del Orinoco y la condición nómada de las comunidades Yukpa por la falta de acceso a alimentos, fue el punto central para alegar que la Constituyente no proveerá beneficio alguno a las etnias.
“Hay una parte de la Constitución dedicada a los indígenas pero lo cierto es que la práctica nunca existió (…) ¿Si hoy teniendo tanta letra en la Constitución que habla de nuestros pueblos y no se cumple nada, qué puede mejorar si cambiamos la letra?”.
La respuesta de los indígenas hacia los atropellos del gobierno ha sido contundente. El gobernador del estado Amazonas, Liborio Guarulla, lanzó la maldición del dabucurí a los representantes del oficialismo luego de ser inhabilitado políticamente durante 15 años. El dacuburí es un rito chamánico y ancestral que celebra la abundancia. Sin embargo, al ser invocado como maldición, revierte el efecto hacia quienes sea dirigido.
Pérez hizo un llamado a la ministra para los Pueblos Indígenas, Aloha Núñez, a responder ante las necesidades de estos, quienes se han visto forzados a la indigencia y al éxodo a países fronterizos por la situación precaria de vida que enfrentan en sus tierras, a pesar de las supuestas leyes que los protegen como patrimonio nacional.
[Nos últimos três anos, caiu o número de pesquisadores brasileiros participando das pesquisas junto ao Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), um dos principais institutos científicos do mundo. Até 2014, antes da crise política e econômica do país, 10 cientistas (físicos, engenheiros e especialistas em computação) participavam do projeto em Genebra, na Suíça. Atualmente, apenas um integra o grupo do Cern.
O professor José Manoel Seixas, um dos coordenadores da equipe brasileira disse que, no total, o Brasil terá cinco pesquisadores na Suíça em 2017, vindos de universidades de Minas Gerais (Juiz de Fora e São João del Rei), São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro.
“Essa participação só está ocorrendo com ajuda do Cern que desenvolve com a Coppe projetos desde 1988. Sem esse apoio, não seria possível estar lá”, disse.
O Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) é o maior laboratório de Física de partículas do mundo. Com 60 anos de história, o Cern ficou em evidência nos últimos anos depois da confirmação da existência do Bóson de Higgs, ou “partícula de Deus”, ocorrida em julho de 2012.
A descoberta, considerada a peça que faltava na atual teoria da física de partículas, foi feita no maior experimento do laboratório, o acelerador de partículas LHC (Grande Colisor de Hádrons, na sigla em inglês).
Mesmo diante de um cenário pouco favorável, a Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – o maior centro de ensino e pesquisa em engenharia da América Latina, está desenvolvendo um projeto que incentiva estudantes de ensino médio a fazer visitas virtuais ao Atlas, experimento instalado no Cern.
Na Coppe, na Cidade Universitária, alunos com idades entre 16 e 17 anos, conheceram a exposição “Exploradores do Conhecimento” que tem como tema “A recriação do começo dos tempos”. A mostra é realizada no Espaço Coppe Miguel de Simoni.
O professor José Seixas recebe os estudantes e explica sobre a física de partículas, o papel dos Atlas, os objetivos do Cern e a contribuição dos pesquisadores brasileiros no laboratório.
Os alunos também participam de uma “viagem” virtual ao Cern, em tempo real, com participação de Denis Damásio, um ex-aluno da Coppe, que trabalha no centro de pesquisas desde 2005.
“A gente quer trazer os alunos para um física que ainda não chegou aos cadernos deles e instigar os jovens. A ideia é coloca-los em contato com pesquisadores brasileiros que estão lá para que eles pensem que se aquela cara já foi aluno do ensino médio, se já estudou aqui porque não é possível para mim? “, explica o professor.
Para Seixas, o projeto também tem o objetivo de provocar a “autoestima nos alunos”.]