“Só a humanidade pode libertar-se a si própria”

Berardi
Foto: Filosomídia – “Franco Berardi, mais conhecido por Bifo (Bolonha/Itália, 1949) é um filósofo e agitador cultural italiano”

[Abaixo, extractos de uma entrevista recente ao filósofo italiano Franco Berardi, realizada por Ana Pina e publicada num jornal de economia online (aqui). Tomámos a liberdade de mudar o título [“O pensamento crítico morreu”], usando na mesma palavras do entrevistado.

O acrónimo inglês TINA – There Is No Alternative [não há alternativa] – é usado recorrentemente para justificar a necessidade de trabalhar mais e de aumentar a produtividade. Na sua opinião, não há mesmo alternativa?  

Esse tem sido o discurso dos líderes políticos nos últimos 40 anos, desde que Margaret Thatcher declarou que “a sociedade não existe”. Existem apenas indivíduos, empresas e países competindo e lutando pelo lucro. É este o objetivo do capitalismo financeiro. E com esta declaração foi proclamado o fim da sociedade e o início de uma guerra infinita: a competição é a dimensão económica da guerra. Quando a competição é a única relação que existe entre as pessoas, a guerra passa a ser o ‘ponto de chegada’, o culminar do processo. Penso que, em breve, acabaremos por assistir a algo que está para além da nossa imaginação…

O que pode pôr em causa o capitalismo financeiro? Enfrenta alguma ameaça?  

A solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro. Mas atenção, não acredito numa vontade maléfica. O que me parece é que os processos tecnológico e económico geraram, simultaneamente, o capitalismo financeiro e a aniquilação tecnológica digital da presença do outro. Nós desaparecemos do campo da comunicação porque quanto mais comunicamos menos presentes estamos – física, erótica e socialmente falando – na esfera da comunicação. No fundo, o capitalismo financeiro assenta no fim da amizade. Ora, a tecnologia digital é o substituto da amizade física, erótica e social através do Facebook, que representa a permanente virtualização da amizade. Agora diz-se que é preciso “consertar o Facebook”. O problema não está em “consertar” o Facebook, mas sim em ‘consertarmo-nos’ a nós. Precisamos de regressar a algo que o Facebook apagou.

O pensamento crítico pode ajudar a “consertarmo-nos”?

Não há pensamento crítico sem amizade. O pensamento crítico só é possível através de uma relação lenta com a ciência e com as palavras. O antropólogo britânico Jack Goody explica na sua obra “Domesticação do Pensamento Selvagem” que o pensamento crítico só é possível quando conseguimos ler um texto duas vezes e repensar o que lemos para podermos distinguir entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Quando o processo de comunicação se torna vertiginoso, assente em multicamadas e extremamente agressivo, deixamos de ter tempo material para pensarmos de uma forma emocional e racional. Ou seja, o pensamento crítico morreu! É algo que não existe nos dias de hoje, salvo em algumas áreas minoritárias, onde as pessoas podem dar-se ao luxo de ter tempo e de pensar.

No seu livro “Futurability – The Age of Impotence and the Horizon of Possibility” (2017) escreve que o paradoxo da automação sob o capitalismo reside no facto de “chantagear os trabalhadores a trabalharem mais e mais depressa em troca de cada vez menos dinheiro, numa luta impossível contra os robôs”.  

Há pelo menos 20 anos que isso acontece um pouco por todo o lado, Europa incluída. Importa dizer que a União Europeia (UE) não existe ao nível político, apenas ao nível financeiro. Aliás, a função da UE tem sido, e continua a ser, a de obrigar as pessoas a trabalhar mais em troca de salários cada vez mais baixos. Estamos a falar num empobrecimento sistemático. Mas o desenvolvimento tecnológico, em si mesmo, não é uma coisa má, pelo contrário. O problema está na forma como o capitalismo organiza as possibilidades tecnológicas de maneira a cairmos numa armadilha. O que quero eu dizer com isto? Que somos levados a pensar que a liberdade advém do trabalho e do salário. Que somos obrigados a pensar que a tecnologia é uma ferramenta para a acumulação, o lucro. Ora, é difícil sair de ‘armadilhas mentais’ como esta.

(…)

Como vê o papel dos media e das redes sociais nos tempos que correm? 

Devo dizer que, nos dias de hoje, a expressão “media” não é muito óbvia. Remete para quê exatamente? Remete para o The New York Times (NYT) ou para o Facebook? Digamos que, neste último ano, houve uma disputa cerrada entre o NYT e o Facebook e foi este que acabou por vencer, porque o pensamento crítico morreu. E o pensamento imersivo está fora do alcance da crítica. A imersividade é, pois, a única possibilidade. Esta é outra questão relevante. Acredita que o Facebook pode ser ‘consertado’? Pessoalmente não acredito. Em tempos, eu e muitas outras pessoas acreditávamos que a Internet ia libertar a humanidade. Errado. As ferramentas tecnológicas não vão libertar-nos. Só a humanidade pode libertar-se a si própria. Voltando ao Facebook, como podemos defini-lo? O Facebook é uma máquina de aceleração infinita. E esta aceleração, intensificação, obriga a distrair-nos daquilo que é a genuína amizade.

Considera que as redes sociais padronizam formas de estar?  

Sem dúvida. A nossa energia emocional foi absorvida pelo mundo digital, por isso as pessoas esperam que os outros “gostem” do que dizemos [nas redes sociais] e muita gente sente-se infeliz quando os seus posts não produzem esse efeito. Uma das consequências desse investimento emocional é o chamado ‘efeito da câmara de eco’, ou seja, tendemos a comunicar, a trocar informações e opiniões com pessoas que pensam como nós, ou que reforçam as nossas expetativas, e reagimos mal à diferença. Podemos chamar-lhe psicopatologia da comunicação. O futuro só é imaginável quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na amizade, na solidariedade e, claro, no amor. Mas se não formos capazes de sentir empatia, o futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos conferem humanidade.

Um estudo da OMS refere o suicídio como a segunda causa de morte entre crianças e jovens com idades entre 10 e 24 anos; e estima que, em 2020, a depressão será a segunda forma de incapacidade mais recorrente em todo o mundo. Que leitura faz deste retrato alarmante? 

Entre finais da década de 1970 e 2013, a taxa de suicídio aumentou 60% em todo o mundo, segundo dados da OMS. Como podemos explicar este aumento brutal?! O que aconteceu há 40 anos atrás? Como referi antes, Margaret Thatcher declarou que a sociedade não existe; paralelamente, o neoliberalismo eliminou a empatia da esfera social. Depois, a tecnologia digital começou a destruir a possibilidade do real, da relação física entre humanos; a emergência de Tony Blair é a prova de que a Esquerda morreu – refiro Blair por ser mais fácil de identificar, mas juntamente com ele estão muitos outros líderes. A Esquerda (…) embarcou no discurso neoliberal: pleno emprego, oito horas por dia, cinco dias por semana durante uma vida inteira. Isto é cada vez menos viável. O pleno emprego é algo impossível, o que temos é mais precariedade para todos, cortes nos salários para todos, mais trabalho para todos, em suma, uma nova escravatura. A isto somam-se dois aspetos importantes. Primeiro, a obrigação passou a ser parte integrante da nossa formação psicológica e a competição tornou-se no princípio moral universal. Segundo, passámos a julgar-nos em função do critério da produtividade. Existe apenas um modelo, um padrão, que é o da competição e sentimo-nos culpados de todos os nossos “fracassos”, seja ele o desemprego ou a pobreza. Há quem lhe chame auto exploração.

Refere num artigo que o ser humano tem de abandonar o desejo de controlar… 

Hoje em dia, o grau de imprevisibilidade aumentou de tal forma que pôs fim à potência masculina. O ponto de vista feminino, por seu turno, representa a complexidade, a imprevisibilidade da infinita riqueza da natureza e da tecnologia – não no sentido de algo oposto à natureza, mas como uma forma de evolução natural. Atualmente, só o ponto de vista feminino é que pode salvar a raça humana. O ponto de vista masculino já não é capaz de fazer o tipo de ‘trabalho’ de que fala Maquiavel: dominar a natureza. Isso já não é possível, por isso temos de libertar a produtividade da natureza e da mente humana, isto é, o conhecimento. Hoje em dia, o problema não está no excesso de tecnologia, mas sim na nossa incapacidade de lidar com a tecnologia sem ficarmos reféns do preconceito do poder, do controlo, da dominação. Temos de abandonar essa pretensão: a de controlar.

(…)

Como vê a Europa de hoje? 

De momento, exceto Portugal e Espanha, o racismo é o único ponto de entendimento entre os europeus. Nem mais nem menos: racismo. E não tem a ver com o medo do outro, da diferença. Tem a ver com a incapacidade de lidar com o passado colonial. A ideia que prevalece na Europa é que se ganha quando se é mais racista do que o outro. A Europa está fraturada e o discurso mantém-se: o Norte contra o Sul, [o grupo de] Visegrado contra Paris e Berlim… Enfim, apenas confluem num aspeto: rejeitar a imigração. Mesmo que isso signifique a morte de milhares de pessoas e o encarceramento de milhões de pessoas na Líbia, no Níger, nos Camarões, na Nigéria e por aí diante (…). ]

Maria Helena Damião e Isaltina Martinsm in O Jornal Económico publicado também em  De Rerum Natura 

“A sociedade dos empregos de merda”

Trabalho
Reprodução

[Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.

Mas enquanto muitos de nós julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro, “Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre outras obras, Dívida: Os Primeiros 5000 anos e The Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).

A “Vice” encontrou-se há pouco com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.

Em primeiro lugar, o que são empregos de merda e por que existem?

David Graeber: Basicamente, um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda. Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só que não.

Uma série de fatores contribuiu para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons” trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?

Até mesmo os empregos de merda garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas, por que isso é ruim?

Mas a questão é: se a sociedade tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos? Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.

Em termos individuais, isso pode ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo? Mas não são.

As pessoas contratadas para tais trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um trabalho de verdade.

Segundo seu livro, a sociedade pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham

É interessante. Chamo de trabalho real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante, trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências, faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a eles.

Porém, os empregos oferecidos aos estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas, essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.

E os empregos tecnológicos ou na mídia. Seriam, também, de merda?

Certamente. Por meio do Twitter, pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para “demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas julgassem o trabalho importante.

Na mídia, ha um exemplo interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê estas publicações.

A automação é vista, muitas vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?

Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.

Como antropólogo, sei perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.

Pergunto: por que as pessoas agem como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema? Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem, temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em um sistema eficiente.

Um dos pontos mais interessantes do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.

Foi uma das coisas que, pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não. Alguns eram totalmente mainstream.

Mas todos chegaram à mesma conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.

Porém, há um argumento recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.

Aparentemente, você é pouco favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir a garantia de renda cidadã.

Sim. Sou alguém que não quer criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.

Acredito que a garantia de trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos o que queremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?]

David Graeber, entrevistado por Eric Allen Been, na Vice,  tradução: Antonio Martins, para Outras Palavras.

Um passeio pelo centro de São Paulo é muito ilustrativo e um bocado chocante

Moradores de rua
Foto Obvious (alterada)

Visitar a área central de São Paulo (o centro velho e o centro novo) é uma aventura muito interessante, bastante criativa, um bocado ilustrativa e nada edificante.

Trata-se de uma área muito decadente, apesar dos esforços revitalizadores da antiga prefeita petista Martha Suplicy [1].

Nessas áreas a gente vê incêndios, como o da semana passada, no Paissandu [2], e um número inacreditável de moradores de rua, ou vivendo em situação de rua, como gostam de dizer os puristas do politicamente correto, como se mudanças de denominações fossem alterar alguma coisa, e minimizar o sofrimento dessa gente.

Apenas na capital paulista moram de 20 a 25 mil pessoas (estima-se – são dados do ano passado), mas não se sabe ao certo quantas pessoas estão nessas condições em todo o Estado, a tal da locomotiva que puxa o Brasil (pra onde será?) e o Estado mais rico da federação.

No Brasil todo esse número flagela 101 mil pessoas.

Será que podemos dar um viva ao Capitalismo?

Na minha modestíssima opinião esses números estão todos defasados e são um bocado falsos.

Mas vamos trabalhar com o que temos em nossas mãos.

Estive hoje perambulando pela região do Tietê (pela rodoviária) – que não fica na área central da capital paulista – e pela Luz – área contígua ao centro velho e bastante decadente, talvez a mais decadente de todas as decadências paulistanas.

Não percebi, mas passei, ao lado da estação da Luz, por uma moradora de rua bastante jovem.

Isso é a tal da invisibilidade – passamos por essas pessoas e não as percebemos, ou pior: não queremos vê-las.

Quando voltei, fiquei frente a frente com a jovem que estava sentada no chão e visivelmente drogada. [3]

Ela não me pediu, mas piedosamente dei-lhe um dinheirinho – provavelmente para aplacar a minha vergonha por não tê-la visto.

Foi um tiquinho de nada – um real e pouco – não contei.

Ele me agradeceu educadamente, olhou-me com um sorriso nos lábios e perguntou-me se eu a tinha percebido.

Foi um troço chocante, e sem pieguismo algum deixei escorrer algumas lágrimas.

Mais à frente outra moradora de rua – esta negra.

Ela não me viu, pois estava entretida em tossir.

Não sei distinguir uma tosse da outra (tosse é um sintoma), mas me ocorreu que ela pudesse estar tuberculosa, coisa muito comum no meio dessa gente abandonada e submetida a todo tipo de atrocidades não apenas por parte da população, mas também da polícia que deveria zelar por suas seguranças – vulneráveis que são elas.

Tenho observado um número crescente de moradoras de rua, qual seja, de mulheres, coisa que não se via há algum tempo, ou eu, desavisadamente, não conseguia perceber.

Só nesse trajeto da Luz encontrei, como disse acima, duas; aqui em Cotia já contei algumas e. em Brasília, várias.

Sinceramente já pensei em morar com essa gente, pelo menos por algum tempo.

Nunca fiz isso e provavelmente nunca farei.

Creio que não tenha mais resistência para esse tipo de jornada.

De agora em diante só fico com o meu obsoleto papelzinho de pequeno burguês contrito hipocritamente com a condição a que estão submetidos moradores e moradores de rua de São Paulo, do Brasil e do mundo.

Isso, reconheço, é um troço bastante cômodo – estupidamente cômodo.

Márcio Tadeu dos Santos

Notas

[1] Marta Suplicy foi prefeita de São Paulo de 1º de janeiro de 2001 a 1º de janeiro de 2005;

[2] Desabamento de prédio escancara o apartheid habitacional na cidade mais rica do Brasil – El País

[3] Busquei, por razões obvias, não constranger a jovem, fotografando-a

“Ernst Lohoff: Il capitale fittizio e la duplicazione della ricchezza”

Trabalho
MTS

[1. Il capitale e il suo doppio

Il capitalismo sopravvive precariamente alla crisi della valorizzazione basandosi su capitale fittizio che alimenta bolle finanziarie destinate a scoppiare. Robert Kurz aveva avanzato questa tesi per spiegare che la crescita economica degli anni ’80 e ’90 era virtuale, costruita su montagne di debiti generati dall’anticipazione di un valore futuro che non sarebbe stato mai realizzato. Aveva continuato ad interpretare le vicende successive su questa base, trovando conferma nella successione ininterrotta di crisi finanziarie a livello mondiale.

Ernst Lohoff e Norbert Trenkle avevano partecipato a questa elaborazione, così come, in precedenza, alla definizione della teoria del soggetto automatico e della crisi della sua capacità di creare valore a causa della irreversibile prospettiva della scomparsa del lavoro. Il loro rapporto con Kurz si era poi rotto sul piano personale e su quello teorico. Pur non allontanandosi dalla teoria del soggetto automatico, avevano concentrato l’analisi sul capitale fittizio, convinti che la sopravvivenza del capitalismo alla crisi della valorizzazione dovesse essere attribuita alla capacità della sfera finanziaria “di produrre, in qualche modo, una forma peculiare di moltiplicazione del capitale che permette di sostituire, transitoriamente, l’accumulazione di plusvalore”. La sua drammatica crescita non poteva essere attribuita “ad una mera distribuzione e mobilitazione del plusvalore già accumulato”.1

Questa loro ricerca ha dato luogo al volume La grande svalorizzazione,2 presentato in Germania nel 2012, anno in cui Kurz ha pubblicato il suo ultimo libro Denaro senza valore,3facendo emergere una divaricazione di posizioni, poi oggetto di un confronto tra due anime della Critica del valore che dura tuttora, in assenza di Kurz deceduto quello stesso anno. Il contendere riguarda l’individualismo metodologico come approccio di analisi, che già in passato Kurz aveva duramente contestato a Lohoff,4 sostenendo che partendo da dati e processi empirici ci si priva della possibilità di risalire alle cause e, soprattutto, di comprendere teoricamente il capitalismo nella sua sostanza totalizzante.

Il sistema finanziario si erge sul principio della ‘duplicazione’ della quantità di denaro che un investitore anticipa ad un soggetto reale (banca, impresa, Stato) in cambio del titolo che definisce i suoi diritti nel rapporto contrattuale. “L’emancipazione del capitale come attivo finanziario – scrive Paul Dembinski, un economista che si occupa di finanza – ha stimolato l’emergenza, nel magma della realtà tangibile e non tangibile, di un numero infinito di oggetti finanziari. Questi ‘oggetti’ traggono la loro esistenza dal solo fatto che sono nel contempo matematizzabili e radicati in uno spazio giuridicamente coerente di diritti, doveri o convenzioni. Esistono dunque in quanto derivati dalla realtà che li contiene. Perciò, all’estremo, tutti gli elementi della realtà possono essere introdotti nello spazio teorico e pratico della finanza”.5

Lohoff ricorda che, in quanto capitale fittizio, i titoli incorporano la promessa di disporre di nuovo valore futuro con cui far fronte a interessi o dividendi e, ove previsto, al rimborso. Questo incorporamento “produce una sorta di ricchezza capitalistica che non è per nulla meno reale della variante della ricchezza capitalistica fondata sullo sfruttamento effettivo del lavoro vivo”.6 Lohoff definisce ‘capitale’ questa ricchezza. “Si tratta certamente di capitale supplementare che è capitale fittizio, ma la sua funzione nell’economia globale non differisce da un capitale risultante da una valorizzazione reale”.7

Sulla attribuzione al titolo della qualità di capitale si scatena la critica a Lohoff di individualismo metodologico. Dalla realtà empirica trarrebbe conclusioni che contraddicono l’assunto teorico condiviso dalla Critica del valore che il capitale non può essere altro che sostanza di valore. Lohoff si difende su due fronti: attaccando la rigidità dell’approccio di Kurz, e sostenendo che la propria tesi è riconducibile al quadro teorico del soggetto automatico.

Kurz, secondo Lohoff, concepisce il valore come “sostanza filosofica pseudosensibile”. Un “inquietante pensiero dialettico della totalità” lo porta a ricondurre il capitalismo “ad una base di energia sociale globale”.8 I titoli però si diffondono proprio perché “nella sua sete di cambiare tutta la ricchezza in ricchezza mercantile, il capitale non si accontenta del farsi merce della ricchezza materiale sensibile, e fa un passo avanti nella sua forma di denaro per trasformarsi in merce”.9

I titoli per Lohoff sono merci di tipo particolare, ‘merci derivate’ o ‘merci di ordine 2’, essendo ‘merci di ordine 1’ quelle che concorrono alla ricchezza capitalistica globale “nella misura in cui ‘incarnano’ il valore, ossia il lavoro passato”.10

La produzione delle merci 1 si basa sullo sfruttamento della forza lavoro, la cui attività come lavoro vivo genera plusvalore e attribuisce loro valore. La loro circolazione sul mercato dei beni e servizi non aggiunge valore, ma, con la vendita, lo riconosce come parte della ricchezza sociale. Le merci 2, a differenza delle merci 1, sono sprovviste di ogni componente sensibile-materiale. Sorgono sul mercato finanziario solo al momento in cui il denaro dell’investitore si scambia con il titolo che acquisisce – scrive Lohoff – il valore d’uso di capitale. “L’esistenza di merci 2 dispensa il singolo capitalista finanziario dall’acquistare e sfruttare la forza lavoro dandogli una soluzione alternativa per aumentare il proprio capitale”.11

  1. Il ‘capitalismo invertito’

Se le merci di ordine 1 sono valore in quanto lavoro oggettivato e le merci di ordine 2 sono promesse di valore, “la creazione di titoli monetari non è per nulla identico alla formazione del valore: aumenta piuttosto la ricchezza capitalistica nella misura in cui ha lo scopo di produrre capitale supplementare”. Nel tentativo di dare al capitale fittizio una collocazione teorica nell’alveo del soggetto automatico, Lohoff sostiene che “il legame con la valorizzazione e il consumo di lavoro non è per nulla interrotto”,12 si è soltanto invertito il rapporto tra capitale e capitale fittizio. “Nel mondo meraviglioso delle merci di ordine 2 l’ordine cronologico che caratterizza il capitale in funzione è capovolto. Nella forma deviata assunta dal capitale fittizio, il lavoro vivo può vedersi stranamente capitalizzato prima di essere speso e aumentare la riserva di capitale sociale”.13

Che si possa capitalizzare il ‘lavoro vivo’ “prima di essere speso”, è logicamente insostenibile dal momento che il ‘lavoro vivo’ non esiste se non quando è in attività. Ciononostante Lohoff si spinge oltre: “Ne consegue che la ‘sostanza’ del capitale fittizio è egualmente lavoro astratto, con la differenza che il lavoro non è stato ancora consumato e rimane sospeso, posto che venga mai attivato. Considerate al livello dell’insieme del capitalismo, le ‘merci di ordine 2’ realizzano l’impresa di capitalizzare il valore futuro non ancora realizzato”.14

La tesi di Lohoff è che in questo modo il capitale fittizio crea la ricchezza che prolunga temporaneamente la vita al soggetto automatico.

A differenza dei mercati dei beni e servizi in cui di norma la relazione tra prezzi e domanda è inverso, nei mercati finanziari la relazione è diretta, e all’aumento dei prezzi dei titoli aumenta la domanda, spesso amplificata dal ricorso al credito. Se, per chiarezza, definiamo in termini di ‘plusvalenza’ l’incremento di denaro risultante dalla vendita del titolo, e di ‘rendimento’ l’interesse e il dividendo percepito nel corso della sua vita, cogliamo la potenzialità di produrre ricchezza monetaria nella circolazione finanziaria. Ma, attribuendo al titolo un valore d’uso di capitale, Lohoff, guarda oltre la sfera finanziaria, al circuito del capitale e alla potenzialità delle merci 2 di generare merci 1, ovvero di contribuire ai processi di valorizzazione.

Dimentica però un passaggio essenziale. Per essere ‘capitale’ il titolo deve trasformarsi in denaro e il denaro deve unificare condizioni di produzione e forza lavoro per la produzione di merci. La capacità del titolo di contribuire alla valorizzazione deve passare attraverso la sua manifestazione in prezzo e la sua preventiva trasformazione in denaro, con un prezzo che, rispetto a quello del mercato primario, riflette la plusvalenza e il rendimento. Fin qui ciò che si accresce è la ricchezza monetaria. Questa deve poi ritrasformarsi in capitale fittizio nel circuito della valorizzazione per supplire alla carenza dei profitti da investire. L’emissione di azioni sono necessarie all’impresa che le mette in circolazione per acquistare macchine e pagare salari; l’emissione di titoli del Tesoro sono necessari allo Stato per costruire strade. Questi titoli sono strumenti di mobilitazione del denaro affinché diventi capitale. E’ così che “la crescita del capitale è diventata una variabile subordinata alla crescita del capitale fittizio”.15

L’industria finanziaria è al centro del nuovo regime di accumulazione in quanto produce nuove risorse, nel contesto del capitalismo invertito, “ultima forma storica che si può immaginare nel quadro del sistema di valorizzazione del valore”.16 Senza l’autonomizzazione dei mercati finanziari e la moltiplicazione dei titoli, la crisi di sovra produzione strutturale degli anni ’70 non sarebbe mai stata superata, e il lungo boom postfordista degli anni ’80 e ’90 non si sarebbe verificato. Il ‘capitale supplementare’ ha mascherato la distruzione della base della valorizzazione e, con essa la crisi del capitale-denaro legato ai profitti.

Nel capitalismo invertito l’accumulazione del ‘capitale’ e la valorizzazione reale si separano, ma entrambi i processi devono manifestarsi con una quantità aumentata di merci. Nel caso delle merci 1, il valore che incorporano si trasmette a nuove merci attraverso il loro valore d’uso, fino alla merce forza lavoro che producendo nuovo valore contribuisce all’aumento della massa complessiva di capitale sociale. “Questa potenziale immortalità che caratterizza il capitale in funzione è estranea al capitale fittizio”.17 Le merci 2 infatti cessano di esistere quando viene meno il loro valore d’uso, che è quello di duplicare temporaneamente con una promessa di valore il capitale che le ha create. La loro produzione avviene a ritmi diversi e in misura incomparabilmente maggiore rispetto a quella delle merci che sono espressione di valore.

Lohoff distingue il capitale fittizio tra ‘coperto’ e ‘scoperto’. È coperto quando si realizza la promessa di valorizzazione implicita in un titolo, e il titolo si estingue in quanto l’anticipazione trova copertura. Il bisogno di questo capitale fittizio coperto aumenta con lo sviluppo delle forze produttive che riducono il lavoro e il profitto. Invece il capitale fittizio scoperto, costituito da debiti che non vengono ripagati perché la valorizzazione non avviene, ha bisogno per restare attivo della copertura provvisoria di nuovo capitale fittizio. Perciò una massa di nuovi titoli deve far fronte al servizio del debito e al rinnovo di quelli in scadenza, con una crescita complessiva esponenziale. “L’accumulazione capitalistica globale supera l’accumulazione coperta da una precedente valorizzazione”.18

La moltiplicazione di capitale fittizio scoperto è però precaria, perché con il contrarsi della valorizzazione che è alla base dell’emissione dei titoli, si riduce il loro ancoramento. “La dinamica del capitale fittizio incontra presto o tardi i suoi limiti dal momento che il processo di crisi che sta alla sua base non può essere mascherato ad vitam aeternamdall’espansione dell’industria finanziaria (…). Al livello oggi raggiunto dalle forze produttive il capitalismo non può più funzionare se non come capitalismo invertito, e se questa sua forma storica – in sé contraddittoria – diventa insostenibile, allora lo stesso modo di produzione capitalistico è diventato insostenibile”.19

Il capitalismo invertito è “in definitiva tra le più grandi rivoluzioni della storia del capitalismo”,20 ma passando attraverso l’inversione tra valorizzazione e capitalizzazione, ci si ritrova nell’ambito teorico della fine del soggetto automatico. Kurz aveva liquidato troppo rapidamente i processi finanziari evocando la mera virtualità di quella ricchezza e la sua scomparsa con lo scoppio delle bolle. Lohoff con la sua “critica dell’economia politica del capitale fittizio”21 ha approfondito l’analisi, per l’esigenza di spiegare la persistenza temporanea del capitalismo oltre la enunciata crisi della valorizzazione. E’ arrivato alla conclusione che “quando i limiti dell’anticipazione del valore sono raggiunti, si verifica una gigantesca svalorizzazione del capitale fittizio che fa non solo mostrare la crisi strutturale sottostante, ma deve anche manifestarsi nella forma della svalorizzazione del denaro”.22 Il capitale fittizio si svalorizza in quanto promessa di valore che non può più svolgere la funzione di ‘capitale supplementare’. Il denaro si svalorizza in quanto viene definitivamente meno la sua capacità di rappresentazione del valore.

  1. Il capitale fittizio nella fase fordista

Il capitale fittizio privato coperto ha una funzione rilevante nell’allargamento estensivo e intensivo della produzione, quando il capitale-denaro originato dal plusvalore non è sufficiente per proseguire nella valorizzazione. Ne stimola la concentrazione necessaria per lo sviluppo delle grandi imprese, dalle miniere alle ferrovie prima, poi quelle chimiche e elettromeccaniche. Per renderla possibile il settore bancario si espande e si concentra rimpiazzando le banche private locali. Poi si trasforma in settore finanziario passando dalla intermediazione bancaria per la concessione di crediti all’organizzazione del finanziamento delle imprese sul mercato borsistico con l’emissione su larga scala di titoli azionari.

Nella funzione di locomotiva dell’accumulazione, che esercita fino alla fine della fase fordista, il capitale fittizio è temporalmente anteposto a quello produttivo, con la differenza – rispetto all’attuale capitalismo ‘invertito’ – che il motore dell’accumulazione è il capitale produttivo, che viene aiutato nella sua espansione dal capitale fittizio. Alla mobilitazione del denaro privato si aggiunge lo Stato, che, al fine di contribuire all’apertura di nuovi settori e nuovi mercati, impegna risorse pubbliche realizzando infrastrutture fisiche e sociali e creando imprese in regime di monopolio. Fa fronte alle spese non coperte dalla fiscalità con l’emissione di titoli del Tesoro.

Nella crisi del 1929 la gigantesca distruzione di titoli privati “rivela a quale punto la capitalizzazione anticipata della produzione del valore futuro è diventata fragile”.23 La ripresa dell’accumulazione, una volta svalorizzato il capitale sovra accumulato, richiede investimenti che superano le capacità private. L’intervento dello Stato acquista una dimensione generale di rilancio dell’economia con una politica attiva di spese pubbliche. Sospesa la convertibilità della moneta, abbandonato l’equilibrio di bilancio, rilancia la domanda.

Con il deficit spending pone in essere un sistema complessivo di creazione di capitale fittizio, agendo su due fronti. Dal lato dell’offerta mobilita le istanze pubbliche indebitandosi attraverso l’emissione di titoli. Dal lato della domanda, li fa acquistare dalla banca centrale che, a sua volta, ne facilita l’acquisto da parte delle banche d’affari, creando anche le condizioni affinché possano allargare il credito ai privati.

Con la ‘nazionalizzazione’ del capitale fittizio “le banche centrali sono promosse al rango di prestatori di tutti i prestatori, in grado di controllare l’ampiezza globale dei titoli e di esercitare una funzione decisiva sull’approvvigionamento in capitale-denaro delle rispettive zone monetarie”.24 Modificando il tasso di interesse possono ampliare o restringere la produzione di capitale fittizio, ma resta fuori dalla loro sfera di azione l’allocazione delle nuove risorse tra i diversi capitali e in funzione della loro effettiva capacità di produzione di valore. Le potenzialità di rilancio e di espansione del capitale privato sono però enormi. I debiti dello Stato non hanno copertura diretta; possono però averne in via indiretta se stimolano una valorizzazione dei capitali privati che accresce il flusso fiscale. Questo è ciò che succede nella fase di accumulazione fordista “ed è solamente per questo che il programma keynesiano funziona così bene”.25

La strada delle soluzioni nazionali finisce però col porre limiti all’accumulazione. Vengono superati con gli accordi di Bretton Woods, che stabiliscono un legame generale delle monete con l’oro. Gli Stati Uniti mettono in circolazione nel mondo un’enorme massa di dollari che stimola l’attività produttiva e genera mercati monetari – eurodollari e petrodollari – nei quali la produzione di capitale fittizio – fino allora essenzialmente circoscritto allo spazio economico nazionale e al settore privato interno – si allarga a livello mondiale, generando interesse a convogliare i profitti sugli investimenti finanziari. La politica keynesiana dei tassi di interesse bassi stimola la produzione di titoli da parte delle banche di investimento che si rifinanziano da quelle centrali.

Finché il ‘capitale-denaro supplementare’, quello fittizio, viene assorbito dalla valorizzazione, i tassi di inflazione sono modesti. Con l’aumento della produttività, il restringimento della base della valorizzazione a causa della riduzione della massa di lavoro e la diminuzione dei profitti, il capitale fittizio si trova scoperto. Lo sganciamento dall’oro elimina i vincoli all’emissione di moneta. I tassi di inflazione aumentano e così il debito pubblico. L’alternativa keynesiana di crescita forte e inflazione moderata versus crescita debole e stabilità monetaria è superata dalla stagflazione, crescita molto debole e inflazione. La fase fordista è chiusa.

  1. Il capitalismo a perdere

Con la crisi del fordismo la capacità già insufficiente del capitale funzionante di utilizzare in maniera produttiva il lavoro vivo diminuisce ancora. Il vuoto deve essere colmato con la produzione di titoli, ma, parallelamente, “si abbassa il grado di efficienza di questa produzione nel sostenere l’economia reale”.26 Il capitale fittizio resta sempre più spesso scoperto. Questo non significa che tutti i capitali siano incapaci di onorare gli impegni, ma i mezzi per farlo provengono sempre meno dalla produzione di valore, e sempre più dai guadagni realizzati in borsa e dall’emissione di nuovi titoli.

Per attutire la sovra accumulazione e la svalorizzazione delle merci, una parte sempre più grande del capitale fittizio generato dal concorso dello Stato e della banca centrale non è più orientato agli investimenti bensì ai consumi. I bassi tassi di interesse incentivano il ricorso generale al credito, e per la prima volta nella storia del capitalismo il consumo privato diventa un riferimento importante per la produzione di capitale fittizio. “Entrando nell’economia reale il capitale-denaro perde così in proporzioni sempre più grandi il carattere di capitale e vegeta come semplice mezzo di circolazione supplementare rispetto alle merci 1, senza essere accompagnato da un allargamento della produzione di valore”.27

Un’altra parte di capitale fittizio rilancia però la produzione, e contribuisce al fiorire delle imprese con le quali si realizza la terza rivoluzione industriale. “Se è vero che la creazione di titoli di proprietà non genera alcun valore – ripete Lohoff – cionondimeno genera capitale-denaro che ha pieno corso. Questo capitale fittizio ha per ‘sostanza’ il valore ancora da produrre, del lavoro produttivo ancora da realizzare”.28 Così si rinvia la crisi economica. “In ultima istanza tutti i titoli di proprietà rimandano ad un punto di riferimento qualunque, situato nel futuro dell’economia reale. Può trattarsi di profitti attesi di un capitale in funzione, dei prelevamenti futuri di imposte da parte dello Stato o, ancora, come nel caso dei crediti ipotecari del boom immobiliare negli Stati Uniti, dell’’aumento del valore’ scontato delle case individuali”.29 Contribuisce anche la moltitudine di titoli derivati che si cumulano gli uni sugli altri. Non possono però prescindere dalla base reale su cui si fondano quelli originari e risalendo la scala il loro rendimento è sempre più limitato ed il rischio è sempre più alto.

L’era del trionfo della moltiplicazione dei titoli è inaugurata dalle politiche di Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Aumentano i tassi di interesse, tagliando drasticamente l’inflazione e richiamando denaro nel settore finanziario. Abbassano le imposte liberando denaro, che viene investito in titoli. Modificano la legislazione pensionistica per incentivare gli impieghi in borsa. Offrono occasioni di investimento con la privatizzazione delle infrastrutture e delle imprese pubbliche. Deregolamentano il settore finanziario creando le condizioni per il lancio e la moltiplicazione dei titoli derivati. Con la cartolarizzazione la produzione di capitale fittizio si installa nel cuore dell’industria finanziaria, allontanandosi sempre più dall’economia reale.

Con l’aumento stratosferico del tasso di interesse il flusso del capitale transnazionale a Wall Street fa degli Stati Uniti il centro dell’industria finanziaria globale. Il suo doppio deficit strutturale, del bilancio e delle partite correnti, lancia un processo che Lohoff definisce di accumulazione primitiva del capitale fittizio da parte dei creditori che forniscono le merci agli Stati Uniti. “Al debito con l’estero dello Stato o delle imprese statunitensi corrisponde un aumento della fortuna monetaria dei creditori europei e asiatici”,30 che accettano con entusiasmo come contropartita i titoli statunitensi, il cui valore futuro è garantito dal dollaro.

I paesi capitalisti del centro seguono lo stesso cammino, partecipando alla creazione dell’industria finanziaria transnazionale con l’offerta all’interno dei propri spazi monetari di condizioni non troppo svantaggiose rispetto agli Stati Uniti. Favoriti dalla deregolamentazione si formano altri vivai di titoli.

“Dietro i circuiti deficitari non c’è altro che uno scambio tra le regioni del mondo delle merci 1 contro le merci 2, uno scambio che diventa motore centrale della congiuntura mondiale. Il nuovo slancio che si instaura nel processo della rivoluzione neoliberale traccia la linea al di là della quale l’accumulazione di ‘capitale reale’ diventa una variabile dipendente dall’accumulazione di crediti monetari”.31

Questa riorganizzazione dei rapporti provoca una fase di accumulazione accelerata auto sostenuta di titoli nel settore privato che porta al boom della nuova economia. Al suo crollo Stato e banca centrale tentano di rilanciare il capitale privato con bassi tassi di interesse e deficit spending. Ma con la crisi successiva dei subprime devono assumersi una funzione complessiva di sostituzione. Non si ripropone più l’intervento keynesiano di stimolo alla domanda reale, ma una sorta di ‘keynesismo di salvataggio’ dell’industria finanziaria. “Si tratta essenzialmente di socializzare le perdite e nazionalizzare le prospettive di guadagni futuri dell’economia privata, che si erano dissolte con lo scoppio delle bolle”.32

Il capitalismo invertito tira avanti finché da un periodo all’altro la massa di capitale fittizio può riprodursi su scala esponenziale. Le bolle che scoppiano sono rimpiazzate da nuove bolle più grandi. Per tentare di arrestare questo processo le banche centrali si trasformano in bad banks, siti di stoccaggio di titoli privati non più realizzabili, e creano denaro fresco come contropartita dei titoli rifiutati dal mercato.

E’ una situazione nuova che si manifesta su vasta scala con la crisi del 2008. Lo Stato è obbligato alla continua produzione ti titoli per far fronte al servizio del debito e per differire la svalorizzazione del valore futuro. I livelli crescenti di indebitamento sono tali da mettere in crisi la possibilità di riferirsi ad essi come hope of last resort. Se la riproduzione del capitale fittizio pubblico si contrae su scala transnazionale, il sistema tracolla.

Note

  1. Lohoff E., Per una discussione su La grande svalorizzazione e Denaro senza valore, blackblog.francosenia, 2 giugno 2017, da Krisis, 14 maggio 2017.
  2. Lohoff E., Trenkle N., Die große Entwertung, Münster, Unrast, 2012: trad. francese La grande dévalorisation, Rotterdam, Post-Editions, 2014.
  3. Kurz R., Geld ohne Wert, Berlin, Horleman, 2012.
  4. Kurz R., Il disvalore dell’ignoranza, blackblog francosenia, 31 ottobre 2014.
  5. Dembinski P.H. (2008), Finance servante ou finance trompeuse?, Parole et Silence, Paris, p. 86.
  6. Lohoff E., Trenkle N., La grande dévalorisation, Rotterdam, Post-Editions, 2014. P. 136.
  7. Ivi, p. 154.
  8. Lohoff E., Per una discussione…, cit.
  9. Lohoff E., Trenkle N., La grande dévalorisation, cit., p. 136.
  10. Ivi, p. 142.
  11. Ivi, p. 157,
  12. Ivi, p. 161.
  13. Ivi, p.162, corsivo nell’originale.
  14. Ivi.
  15. Ivi, p. 240.
  16. Ivi, p. 242.
  17. Ivi, p. 284.
  18. Ivi, p. 158.
  19. Ivi, p. 242-3.
  20. Ivi, p. 240.
  21. Lohoff E., Per una discussione…, cit.
  22. Lohoff E., Trenkle N., La grande dévalorisation, cit., p. 20.
  23. Ivi, p. 199.
  24. Ivi, p. 217.
  25. Ivi, p. 230.
  26. Ivi, p. 290.
  27. Ivi, p. 257.
  28. Ivi, p. 262, corsivo nel testo.
  29. Ivi, p. 263.
  30. Ivi, p. 254.
  31. Ivi, p. 255.
  32. Hutter R., La borne interne du capitalism. Entretien avec Ernst Lohoff, Neues Deutschland, 13 dicembre 2012.

VISIT WEBkrisis – Articolo di Giordano Silvini

“’Céu é o limite’ para Lava Jato após prisão de Lula’, diz cientista político”

coxinha
Reprodução

[Após a ordem de prisão contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a operação Lava Jato passa a ter “o céu como limite” se não sofrer qualquer interrupção, diz o cientista político Marco Aurélio Nogueira.

Em entrevista a BBC Brasil, Nogueira – professor titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – compara a estratégia de investigadores envolvidos na operação à dinâmica do jogo de dominó.

“É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras”, diz Nogueira. “No momento em que se consegue fechar o cerco e levar Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos”.

Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ditadura militar, Nogueira foi detido durante um congresso da sigla e passou duas noites sob a custódia da Polícia Federal, em 1982.

Nos anos seguintes, afastou-se da vida partidária e passou a se definir como um “comunista democrático e sem partido”. Paralelamente, tornou-se um dos maiores especialistas do país na obra do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), considerado uma das maiores influências da esquerda moderna brasileira.

Na entrevista à BBC Brasil, Nogueira diz ainda que o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro (PSL) deverá ser o maior beneficiado pela saída de Lula da eleição presidencial.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil – Qual a relevância histórica da ordem de prisão contra Lula?

Marco Aurélio Nogueira – Do ponto de vista político, ela agrava a condição de Lula se manter como o candidato a presidente nas eleições.

Outro ponto é que, na medida em que uma decisão desse tipo alcança uma figura de porte tão grande, ela acaba por emitir sinais para a sociedade de que a Justiça está sendo organizada para valer. De que não há mais limites para se pegar eventuais corruptores ou corruptos estejam onde eles estiverem, sejam de que classe social ou de partido político eles forem.

BBC Brasil – Muitos argumentam que a Justiça não tem tratado o PSDB com o mesmo rigor com que trata Lula e o PT.

Nogueira – Não há como fazer comparação entre o tamanho do esquema montado no plano federal (durante o governo do PT) e os esquemas que foram montados pelo PSDB em São Paulo e Minas Gerais. O esquema federal era muito forte, havia muito dinheiro envolvido, muitas empresas, muitas ligações internacionais. Ali se tratava de comprar uma briga de cachorro grande.

BBC Brasil – Acredita que a Lava Jato manterá sua vitalidade após a prisão de Lula?

Nogueira – A Lava Jato tem atuado até hoje como se disputasse uma partida de dominó. É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras. Ela usou a estratégia de capturar o principal personagem da vida política brasileira, o Lula.

A partir daí, se a Lava Jato não sofrer uma interrupção, o céu é o limite. No momento em que se consegue fechar o cerco e levar o Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos.

Por isso, quase todos os partidos estão de alguma maneira solidários com o Lula. Pressionaram o STF (Supremo Tribunal Federal) para aliviar a pressão em cima dele antes, o que livraria a cara de um monte de gente.

Hoje (sexta-feira) foi preso o principal operador do PSDB em São Paulo, o (ex-diretor da Dersa) Paulo Preto. Pode ser o início de alguma coisa. A Lava Jato poderá alcançar, via Procuradoria Geral da República, o (presidente) Michel Temer, como a operação Skala deixou claro. Há uma série de coisas que, se acionadas, poderão recompor o modus operandi do sistema político brasileiro.

Não acho que isso vá acontecer a tempo de interferir nas eleições de 2018. É um processo de mais longo prazo, que terá de se estender com todos os obstáculos que surgirem.

BBC Brasil – Qual o significado da prisão para a trajetória de Lula? Ele está morto politicamente?

Nogueira – A rigor, a morte política nem sempre se dá nem mesmo quando o fulano morre. A força política pode subsistir até mesmo a materialidade física de uma pessoa. Basta lembrarmos o tanto que Getúlio Vargas, depois de sua morte em 1954, interferiu na política brasileira.

Preso ou solto, acho que Lula vai continuar muito vivo. Não tem como ele sumariamente ser descartado da política brasileira simplesmente por um ato da Justiça que o enviou à prisão.

Há muitos recursos que podem ser mobilizados em termos simbólicos, ideológicos, organizacionais e partidários para manter vivo esse personagem – seja como fator real de interferência na política, seja como mito, herói ou mártir.

BBC Brasil – Como Lula poderia influenciar na eleição de 2018 se estiver preso?

Nogueira – Vai depender muito de que engrenagens forem montadas entre o Lula prisioneiro e o eleitorado brasileiro. Ele poderá influenciar na escolha de um candidato que vá substituí-lo e encarná-lo no processo eleitoral. Mas isso precisaria passar por uma discussão muito grande, que leve em consideração as dificuldades que o próprio PT sempre teve de substituí-lo como liderança.

Se o Lula na cadeia puder fazer campanha para outro candidato, que outro candidato será esse? O PT se preparou para apresentar uma alternativa? Tem lideranças que possam se colocar numa via de força semelhante ou próxima à do Lula? Não tem. Então isso complica muito as possibilidades de transferência.

Também vai depender muito da capacidade que os partidos pró-Lula tiverem para levar sua mensagem, como ventríloquos do Lula. Os partidos que giram em torno do PT são muito fracos. E o próprio PT está muito desbaratado com os fatos das duas últimas semanas.

BBC Brasil – Qual o potencial de outra candidatura do PT? Quem o senhor acredita ser o nome mais provável a substituir Lula?

Nogueira – Não consigo ver como o PT vai resolver esse problema. Eles já deveriam ter feito isso alguns meses atrás. Agora vai ser muito difícil, porque os políticos que foram aventados, como Fernando Haddad e Jaques Wagner, são políticos muito fracos, que não são digeridos por inteiro até pelo próprio PT. O Haddad sempre foi hostilizado no PT como um petista tucano.

Ficou muito difícil para o PT encontrar uma saída em termos de candidatura que realmente promova um crescimento ou mantenha pelo menos a força eleitoral do partido.

BBC Brasil – O PT sobrevive à prisão do Lula?

Nogueira – Sobrevive. Não sei se com a mesma força de antes, porque o partido sofreu muitas quedas de 2016 para cá, seja em termos políticos, com o impeachment e as derrotas nas eleições municipais, seja do ponto de vista jurídico-político. A combinação desses dois percursos acidentados deverá afetar o partido no que diz respeito à sua imagem.

O PT tenderá a perder uma parte grande da classe média, que era uma parte importante do eleitorado petista, e poderá até mesmo ter sua imagem queimada ou ofuscada entre a população mais pobre, que vai ter de digerir esse processo.

No caso da classe média, o cenário é mais difícil, porque ela é muito mais moralista que as massas populares. A massa popular, os eleitores pobres do Lula, é pragmática.

Eles são lulistas porque têm uma postura de agradecimento com o Lula, e, mesmo que ele seja corrupto, eles perdoam. Estão acostumados com a corrupção, não há um veto moral ao político corrupto no seio da população mais pobre. O que há ali é o reconhecimento do político que prestou algum tipo de benfeitoria social.

BBC Brasil – Quais os impactos da prisão de Lula para outros partidos de esquerda não tão alinhados ao PT e que lançaram candidatos à Presidência, como o PDT, de Ciro Gomes e o PSOL, de Guilherme Boulos?

Nogueira – Talvez isso se aplique ao Ciro Gomes, mas não ao PSOL. O Boulos está no palanque da resistência no Sindicato dos Metalúrgicos. Ele sempre foi uma liderança sintonizada com o lulismo. Boulos faz certo tipo de crítica, mas é muito mais próximo do Lula do que qualquer outra figura do PSOL.

No caso do Ciro Gomes, ele tem uma trajetória política que só com muito esforço pode ser aproximada da esquerda. Ele não tem um partido propriamente de esquerda e já passou por tantos partidos que é difícil entendê-lo simplesmente como uma figura de esquerda. Pode-se dizer que é um progressista com uma carreira própria.

Ele terá de pensar como se aproveitar desse afastamento do Lula. Acho que Ciro agirá muito mais em função da oportunidade eleitoral do que de solidariedade a Lula. Ciro imagina ter chance eleitoral e, dentre os candidatos do progressismo, ele e a Marina Silva são os que de fato têm mais fôlego.

BBC Brasil – Ciro e Marina são os principais beneficiários da saída de Lula da disputa?

Nogueira – Não acho. Uma parte grande do voto do Lula vai para o Bolsonaro, porque ele está fazendo uma campanha que de alguma maneira copia certas práticas e procedimentos que foram típicos do Lula. Só que Bolsonaro faz isso com o sinal invertido. O Lula era bonzinho, o Bolsonaro é mauzinho.

Eles estão tentando construir por vias antagônicas uma narrativa de trajetória que se aproxima muito da ideia do salvador da pátria, daquele sujeito que assumirá o poder presidencial para varrer tudo o que há de errado no Brasil.

Se o Bolsonaro de fato ganhar, a gente sabe que não será bem assim. Tanto que o Lula de 2002 emergiu com um discurso desse tipo e foi se acomodando ao jogo político, fazendo alianças espúrias e deixando de fazer o que seu discurso de campanha anunciava, que era uma reforma social profunda no país.

O Bolsonaro que rosna para todos os lados e faz um discurso agressivo contra a esquerda, contra a proteção social, em favor de armas, se eventualmente ganhar a eleição, vai também ter de dimensionar esse discurso e negociar com as forças políticas que estão ali. Nessa operação, ele poderá ser completamente descaracterizado como um mauzinho.

BBC Brasil – Nos últimos dias nota-se um acirramento das tensões entre as instituições, como por exemplo no julgamento do habeas corpus de Lula no STF e nas declarações do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, interpretadas por muitos como uma pressão sobre o Judiciário. Como a prisão de Lula afeta o equilíbrio entre as instituições?

Nogueira – Isso vai depender muito de qual será a reação do PT, dos movimentos sociais e dos outros partidos. Se apostarem numa linha de resistência e combate, de enfrentamento, inclusive desafiando a Justiça, a gente estará num caminho de risco, no qual poderemos assistir uma maior corrosão do equilíbrio institucional do país e até mesmo uma espécie de revival da intervenção militar, que é uma coisa que funciona no Brasil como uma espécie de sombra da política.

Os militares estão sempre aí e sempre poderão ser estimulados e impulsionados a se intrometer na política.

Do ponto de vista do sistema como um todo, o grande problema hoje no país é como o sistema judiciário vai se recompor. Hoje, dentre todos os sistemas, até mesmo o sistema político, ele é o que conhece uma crise mais profunda e está todo dividido.

Não tem mais um centro de coordenação que faça valer a hierarquia do sistema. O próprio STF, que deveria o guardião desse sistema, está todo atrapalhado, porque parece estar enciumado com o protagonismo de uma corte de primeira instância, do juiz Sérgio Moro, e o sucesso que ele está tendo na relação com a sociedade.

Isso pode ser um fator de complicação, porque o sistema judiciário dividido acaba por comprometer seu serviço no que diz respeito às garantias, à liberdade etc.

BBC Brasil – Lula tem comparado o cerco judicial que enfrenta à perseguição sofrida por Getúlio Vargas. Os dois processos se equivalem? Há outros episódios na história do Brasil comparáveis ao cenário vivido por Lula hoje?

Nogueira – Já tivemos presidentes da República que foram presos ou exilados. Na Primeira República, Washington Luís foi mandado para fora do país após a Revolução de 1930. Mas o mundo era muito diferente, é difícil fazer uma comparação.

O Lula é muito diferente de todos que vieram antes dele. O que poderia ser mais próximo é o Getúlio. Mas Getúlio é um personagem do Brasil tradicional, que já desapareceu.

O curioso é que Lula se compare com Getúlio depois de fazer em sua carreira como sindicalista uma trajetória contrária ao getulismo. O sindicalismo do Lula era anti-getulista de maneira radical. Era um sindicalismo totalmente hostil ao trabalhismo getulista, tanto que comprou briga com os grandes sindicatos e parte dos partidos trabalhistas, como o PTB, o PDT e o Partido Comunista, que eram seguidores da estrutura sindical dos anos 30.

Outra diferença é que Getúlio se matou. Lula não dá nenhuma mostra de que fará isso.]

 João Fellet – @joaofelletDa BBC Brasil em Brasília – BBC Brasil

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“O Capital de Karl Marx: uma crítica sólida ao capitalismo”

KM
Créditos da foto: UMass Amherst

[Nas últimas décadas, passaram-se acontecimentos contraditórios. Por um lado, o colapso do comunismo na URSS e na Europa Oriental produziu narrativas de fim da história que tentaram naturalizar o capitalismo como a melhor solução social possível, mesmo que humanamente falível. Por outro, a forma neoliberal do capitalismo que dominou o mundo desde o início da década de 1980 exacerbou as profundas e persistentes desigualdades de salário, riqueza e poder, acelerou os problemas de degradação ambiental e mergulhou a economia mundial numa crise económica e financeira profunda e duradoura em 2008, indiscutivelmente a pior crise económica do capitalismo desde a Grande Depressão da década de 1930. É no contexto desse movimento contraditório da história recente que precisamos revisitar o trabalho do maior crítico e analista do capitalismo, Karl Marx.

Nascido em Trier, na Alemanha, em 1818, numa família de classe média, o jovem Marx começou a ter contacto com as ideias radicais do socialismo francês graças ao pai e ao futuro sogro. Depois de obter o doutoramento em Filosofia pela Universidade de Jena em 1841, e sem poder exercer uma posição académica graças às suas ideias políticas radicais, começou a trabalhar para um jornal democrático em Colónia, o Rheinische Zeitung. Como comentador e editor de um jornal muito popular, Marx foi confrontado com questões de “interesse material”, como o comércio internacional e tarifas, a condição do campesinato no vale do rio Mosela, o acesso a recursos de propriedade comum como lenha por parte dos pobres. O treino anterior de Marx em Filosofia, História, Clássicos, Jurisprudência, Literatura, não lhe permitiu envolver-se adequadamente com tais questões de interesse material. Assim, quando a oportunidade surgiu, em 1844, sob a forma de um desacordo com os apoiantes da classe média sobre o conteúdo democrático do jornal, renunciou à redação do Rheinische Zeitung e iniciou um longo estudo sobre economia política. Mas por que economia política?

O período entre 1844 e 1848 que Marx devotou a um intenso estudo foi dividido em três pontos: uma reavaliação da filosofia alemã clássica, especialmente hegeliana; um engajamento crítico com as ideias francesas do socialismo; e um estudo introdutório de economia, especialmente economia clássica proveniente do mundo anglo-saxônico. Este foi um período formativo para o futuro desenvolvimento intelectual de Marx. As conclusões que alcançou durante esta altura acompanharam-no durante o resto da vida e guiaram a sua trajetória intelectual.

A primeira conclusão pode ser chamada conceção materialista da história, que afirma que, para entender a entidade complexa a que chamamos sociedade, é preciso compreender a estrutura da sociedade civil, ou seja, a totalidade da vida material; e, para fazê-lo, é preciso usar as ferramentas da economia política. A segunda conclusão pode ser denominada dialética, que afirma que, para entender a grande escala, a mudança histórica na sociedade, é preciso identificar as principais contradições na sociedade civil. Essas contradições, além disso, são a contradição entre classes sociais fundamentais.

Aqui, então, temos uma resposta à pergunta “por que economia política?” Marx abordou o estudo da economia política, porque isso lhe permitiria entender a “anatomia da sociedade civil”, um passo fundamental para entender a estrutura da sociedade burguesa contemporânea. Além disso, orientou os seus estudos em economia política para uma investigação das “categorias que compõem a estrutura interna da sociedade burguesa e sobre as quais as classes fundamentais descansam” porque as contradições entre as “classes fundamentais”, o seu ponto de vista filosófico dialético combinado com a sugerida conceção materialista da história, tinha a chave para a mudança histórica de grande escala da sociedade burguesa. Essas conclusões forneceram as categorias para estudar a estrutura interna da sociedade burguesa – capital, trabalho assalariado e propriedade – e tornaram-se nas principais categorias de análise na sua magnum opus, O Capital.

Enquanto Marx continuava os seus estudos em economia política na década de 1850, também estudou a melhor forma de apresentar os resultados das suas investigações. Algures em 1865, chegou à estrutura final de O Capital, com um trabalho de três volumes/livros que opera em dois níveis primários de abstração, “capital em geral” e “muitos capitais”. A análise ao nível do “capital em geral” é, por sua vez, dividida em dois volumes. O primeiro volume do processo de produção de capital; e o segundo do processo de circulação de capital. A análise ao nível de “muitas capitais” é apresentada num volume (Volume Três) e trata da totalidade do processo de produção capitalista. Usando a mais-valia, um dos conceitos-chave de O Capital, como princípio organizador central, também podemos pensar nos três volumes de O Capital como aqueles que lidam, respetivamente, com a criação e acumulação de mais-valia (Volume Um); a realização de mais-valia (Volume Dois); e a distribuição da mais-valia (Volume Três).

A análise nos três volumes de O Capital desenvolve ideias profundas sobre a estrutura e as dinâmicas de longo prazo do capitalismo. Mostra de que forma o capitalismo, como todas as sociedades divididas em classes, depende da exploração dos trabalhadores. Isso mostra como é que essa exploração tem a forma quantitativa de mais-valia, e como esta, por sua vez, é redistribuída através de vários canais sob a forma de lucros, juros e renda. Mostra de que forma a existência e a reprodução do exército de reserva do trabalho – o grupo de trabalhadores desempregados e subempregados e os trabalhadores potencialmente empregáveis no agregado familiar e na agricultura camponesa de subsistência – é necessária para a estabilidade do sistema capitalista. Mostra de que forma as relações capitalistas, ao mesmo tempo, revolucionam os métodos e a organização da produção, e degradam as condições de trabalho, incapacitam os trabalhadores e destroçam o meio ambiente. Em comentários dispersos, que foram posteriormente desenvolvidos de forma mais sistemática por estudiosos marxistas, mostra como é que o processo de acumulação de capital – a força dinâmica central de uma economia capitalista – é um processo intrinsecamente contraditório, de modo a que períodos de crise, como o que estamos a testemunhar desde 2008, são a norma para as sociedades capitalistas, e não as ocorrências excecionais que os economistas burgueses provavelmente conseguem.

Ainda que muitas características específicas do capitalismo tenham mudado muito nos 150 anos desde que o Volume Um de O Capital foi publicado pela primeira vez em 1867, muitas das suas características estruturais fundamentais – trabalho assalariado, competição entre capitais, mais-valia e a sua redistribuição, acumulação de capital – permanecem intactas. Assim, mesmo que uma análise do capitalismo contemporâneo tenha de ir além do que está contido nos três volumes de O Capital, esses três volumes continuam a ser um ponto de partida importante – e o melhor – para uma análise crítica do capitalismo contemporâneo, uma análise voltada para um projeto para transcender o capitalismo, fazendo parte dele.]

Deepankar Basu é economista da universidade de Massachussets com vários trabalhos no âmbito da economia marxista e também na economia política da Índia.

Tradução de Ana Bárbara Pedrosa para o esquerda.net.

 In Carta Maior.

‘Noam Chomsky: “As pessoas já não acreditam nos fatos”’

Noam
O Cafezinho

[Prestes a fazer 90 anos, acaba de abandonar o MIT. Ali revolucionou a linguística moderna e se transformou na consciência crítica dos EUA. Visitamos o grande intelectual em seu novo destino, no Arizona.

Noam Chomsky (Filadélfia, 1928) superou faz tempo as barreiras da vaidade. Não fala de sua vida privada, não usa celular e em um tempo onde abunda o líquido e até o gasoso, ele representa o sólido. Foi detido por opor-se à Guerra do Vietnã, figurou na lista negra de Richard Nixon, apoiou a publicação dos Papéis do Pentágono e denunciou a guerra suja de Ronald Reagan. Ao longo de 60 anos, não há luta que ele não tenha travado. Defende tanto a causa curda como o combate à mudança climática. Tanto aparece em uma manifestação do Occupy Movement como apoia os imigrantes sem documentos.

Mergulhado na agitação permanente, o jovem que nos anos cinquenta deslumbrou o mundo com a gramática gerativa e seus universais, longe de descansar sobre as glórias do filósofo, optou pelo movimento contínuo. Não se importou com que o acusassem de antiamericano ou extremista. Sempre seguiu em frente com valentia, enfrentando os demônios do capitalismo − sejam os grandes bancos, os conglomerados militares ou Donald Trump. À prova de fogo, sua última obra volta a confirmar sua tenacidade. Em Réquiem para o sonho americano (editora Bertrand Brasil), ele põe no papel as teses expostas no documentário homônimo e denuncia a obscena concentração de riqueza e poder que exibem as democracias ocidentais. O resultado são 192 páginas de Chomsky em estado puro. Vibrante e claro.

Preparado para o ataque.

— O senhor se considera um radical?

— Todos consideramos a nós mesmos moderados e razoáveis.

— Defina-se ideologicamente.

— Acredito que toda autoridade tem de se justificar. Que toda hierarquia é ilegítima enquanto não demonstrar o contrário. Às vezes pode se justificar, mas na maioria das vezes, não. E isso… isso é anarquismo.

Uma luz seca envolve Chomsky. Depois de 60 anos dando aulas no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), o professor veio viver nos confins do deserto de Sonora, no Arizona. Em Tucson, a mais de 4.200 quilômetros de Boston, ele se instalou e estreou um escritório no Departamento de Linguística da Universidade do Arizona. O centro é um dos poucos pontos verdes dessa cidade abrasadora. Freixos, salgueiros, palmeiras e nogueiras crescem em torno de um edifício de tijolos vermelhos de 1904 onde tudo fica pequeno, mas tudo é acolhedor. Pelas paredes há fotos de alunos sorridentes, mapas das populações indígenas, estudos de fonética, cartazes de atos culturais e, no fundo do corredor, à direita, o escritório do maior linguista vivo.

O lugar não tem nada a ver com o espaço inovador do Frank Gehry que o abrigava em Boston. Aqui, mal cabe uma mesa de trabalho e outra para sentar-se com dois ou três alunos. Recém-estreado, o escritório de um dos acadêmicos mais citados do século XX ainda não tem livros próprios, e seu principal ponto de atenção recai em duas janelas que inundam a sala de âmbar. Chomsky, de calças jeans e longos cabelos brancos, gosta dessa atmosfera calorosa. A luz do deserto foi um dos motivos que o levaram a se mudar para Tucson. “É seca e clara”, comenta. Sua voz é grave e ele deixa que se perca nos meandros de cada resposta. Gosta de falar longamente. Pressa não é com ele.

A entrevista é de Jan Martínez Ahrens, publicada por El País, 10-03-2018.

Eis a entrevista.

Vivemos uma época de desencanto?

Já faz 40 anos que o neoliberalismo, liderado por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, assaltou o mundo. E isso teve um efeito. A concentração aguda de riqueza em mãos privadas veio acompanhada de uma perda do poder da população geral. As pessoas se sentem menos representadas e levam uma vida precária, com trabalhos cada vez piores. O resultado é uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo. Já não se confia nem nos próprios fatos. Há quem chama isso de populismo, mas na verdade é descrédito das instituições.

E assim surgem as fake news (os boatos)?

A desilusão com as estruturas institucionais levou a um ponto em que as pessoas já não acreditam nos fatos. Se você não confia em ninguém, por que tem de confiar nos fatos? Se ninguém faz nada por mim, por que tenho de acreditar em alguém?

Nem mesmo nos veículos de comunicação?

A maioria está servindo aos interesses de Trump.

Mas há alguns muito críticos, como The New York Times, The Washington Post, CNN…

Olhe a televisão e as primeiras páginas dos jornais. Não há nada mais que Trump, Trump, Trump. A mídia caiu na estratégia traçada por Trump. Todo dia ele lhes dá um estímulo ou uma mentira para se manter sob os holofotes e ser o centro da atenção. Enquanto isso, o flanco selvagem dos republicanos vai desenvolvendo sua política de extrema direita, cortando direitos dos trabalhadores e abandonando a luta contra a mudança climática, que é precisamente aquilo que pode acabar com todos nós.

O senhor vê em Trump um risco para a democracia?

Representa um perigo grave. Liberou de forma consciente e deliberada ondas de racismo, xenofobia e sexismo que estavam latentes, mas que ninguém tinha legitimado.

Ele voltará a ganhar?

É possível, se conseguir retardar o efeito letal de suas políticas. É um demagogo e showman consumado que sabe como manter ativa sua base de adoradores. Também joga a seu favor o fato de que os democratas estão mergulhados na confusão e podem não ser capazes de apresentar um programa convincente.

Continua apoiando o senador democrata Bernie Sanders?

É um homem decente. Usa o termo socialista, mas nele significa mais um New Deal democrata. Suas propostas, de fato, não seriam estranhas a Eisenhower [presidente dos EUA pelo Partido Republicano de 1953 a 1961]. Seu sucesso, mais que o de Trump, foi a verdadeira surpresa das eleições de 2016. Pela primeira vez em um século houve alguém que esteve a ponto de ser candidato sem apoio das corporações nem dos veículos de comunicação, só com o apoio popular.

Houve um deslizamento para a direita do espectro político?

Na elite do espectro político sim, ocorreu esse deslizamento, mas não na população em geral. Desde os anos oitenta se vive uma ruptura entre o que as pessoas desejam e as políticas públicas. É fácil ver isso no caso dos impostos. As pesquisas mostram que a maioria quer impostos mais altos para os ricos. Mas isso nunca se leva a cabo. Frente a isso se promoveu a ideia de que reduzir impostos traz vantagens para todos e que o Estado é o inimigo. Mas quem se beneficia da reduzir [verbas para] estradas, hospitais, água limpa e ar respirável?

Então o neoliberalismo triunfou?

O neoliberalismo existe, mas só para os pobres. O mercado livre é para eles, não para nós. Essa é a história do capitalismo. As grandes corporações empreenderam a luta de classes, são autênticos marxistas, mas com os valores invertidos. Os princípios do livre mercado são ótimos para ser aplicados aos pobres, mas os muito ricos são protegidos. As grandes indústrias de energia recebem subvenções de centenas de milhões de dólares, a economia de alta tecnologia se beneficia das pesquisas públicas de décadas anteriores, as entidades financeiras obtêm ajuda maciça depois de afundar… Todas elas vivem com um seguro: são consideradas muito grandes para cair e são resgatadas se têm problemas. No fim das contas, os impostos servem para subvencionar essas entidades e com elas, os ricos e poderosos. Mas além disso se diz à população que o Estado é o problema e se reduz seu campo de ação. E o que ocorre? Seu espaço é ocupado pelo poder privado, e a tirania das grandes corporações fica cada vez maior.

O que o senhor descreve soa a Orwell.

Até Orwell estaria assombrado. Vivemos a ficção de que o mercado é maravilhoso porque nos dizem que está composto por consumidores informados que adotam decisões racionais. Mas basta ligar a televisão e ver os anúncios: procuram informar o consumidor para que tome decisões racionais? Ou procuram enganar? Pensemos, por exemplo, nos anúncios de carros. Oferecem dados sobre suas características? Apresentam informes realizados por entidades independentes? Porque isso sim que geraria consumidores informados capazes de tomar decisões racionais. Em vez disso, o que vemos é um carro voando, pilotado por um ator famoso. Tentam prejudicar o mercado. As empresas não querem mercados livres, querem mercados cativos. De outra forma, colapsariam.

Diante dessa situação, não é muito fraca a contestação social?

Há muitos movimentos populares muito ativos, mas não se presta atenção neles porque as elites não querem que se aceite o fato de que a democracia pode funcionar. Isso é perigoso para elas. Pode ameaçar seu poder. O melhor é impor uma visão que diz a você que o Estado é seu inimigo e que você tem de fazer o que puder sozinho.

Trump usa frequentemente o termo antiamericano. Como o senhor entende esse termo?

Os Estados Unidos são o único país onde, por criticar o Governo, te chamam de antiamericano. E isso representa um controle ideológico, acendendo fogueiras patrióticas por toda parte.

Em alguns lugares da Europa também ocorre isso.

Mas nada comparável ao que ocorre aqui, não há outro país onde se vejam tantas bandeiras.

O senhor teme o nacionalismo?

Depende. Se significa estar interessado em sua cultura local, é bom. Mas se for uma arma contra outros, sabemos aonde pode conduzir, já vimos e experimentamos isso.

Acha possível que se repita o que ocorreu nos anos trinta?

A situação se deteriorou. Depois da eleição de Barack Obama se desencadeou uma reação racista de enorme virulência, com campanhas que negavam sua cidadania e identificavam o presidente negro com o anticristo. Houve muitas manifestações de ódio. No entanto, os EUA não são a República de Weimar [democracia alemã anterior ao nazismo]. Precisamos estar preocupados, mas as probabilidades de que se repita algo assim não são altas.

Seu livro começa lembrando a Grande Depressão, uma época em que “tudo estava pior que agora, mas havia um sentimento de que tudo iria melhorar”.

Eu me lembro perfeitamente. Minha família era de classe trabalhadora, estava desempregada e não tinha educação. Objetivamente, era uma época muito pior que agora, mas havia um sentimento de que todos estávamos juntos naquilo. Havia um presidente compreensivo com o sofrimento, os sindicatos estavam organizados, havia movimentos populares… Tinha-se a ideia de que juntos podíamos vencer a crise. E isso se perdeu. Agora vivemos a sensação de que estamos sozinhos, de que não há nada a fazer, de que o Estado está contra nós…

Ainda tem esperanças?

Claro que há esperança. Ainda há movimentos populares, gente disposta a lutar… As oportunidades estão aí, a questão é se somos capazes de aproveitá-las.

Chomsky termina com um sorriso. Deixa vibrando no ar sua voz grave e se despede com extrema cortesia. Em seguida, sai do escritório e desce as escadas da faculdade. Fora, esperam-lhe Tucson e a luz seca do deserto de Sonora.]

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Desafios frente ao neoliberalismo

In IHU/Adital.

“No capitalismo só não há espaço para dois entes: o ser humano e a natureza”

O ponto final na curta história do projeto de estado de bem-estar social, iniciado no pós-guerra, parece ter sido colocado com a crise financeira mundial de 2008. Se o capitalismo atual, impulsionado pela financeirização, não encontra limites matemáticos, alcançando uma cifra 350% superior ao PIB mundial, defronta-se com a barreira que lhe confere alguma materialidade: o ser humano e a natureza. “É bem evidente hoje que os problemas ecológicos, tais como o aquecimento global, a poluição das águas potáveis, a acidificação dos oceanos, a destruição das espécies, etc. ameaçam o capitalismo porque ameaçam a própria continuidade da vida humana na Terra. Eis que a natureza, assim como o ser humano que faz parte dela, não está integrada ao capital; eis que ambos estão apenas subordinados e que, por isso mesmo, podem contrariar a lógica de expansão insaciável que caracteriza sobretudo o modo de existência da produção capitalista”, pontua Eleutério F. S. Prado, em entrevista por e-mail à IHU On-Line [1].

“No capitalismo contemporâneo, quase todos os setores estão dominados por oligopólios formados por grandes ou mesmo enormes empresas, as quais são administradas com base em uma visão financeira dos negócios”, descreve Prado. “A sua lógica é de curto prazo: obter o máximo lucro para repassá-lo aos juristas (os keynesianos usariam aqui a palavra ‘rentistas’). Há, ademais, um certo consenso no pensamento crítico de que a financeirização está associada a um capitalismo de crescimento rastejante, mas altamente concentrador de renda”, complementa.

O professor acrescenta que testemunhamos uma tentativa sistemática de supressão dos direitos dos trabalhadores, conquistados historicamente, em detrimento da proteção de instituições econômicas e ingerências políticas. “A democracia pressupõe o cidadão, mas o neoliberalismo quer transformar o humano em mero agente econômico. E este apenas compete dentro de regras que não cria e, por isso, não se junta a outros na luta pelo comum”, analisa. “Atualmente, os Estados pouco se preocupam com o bem-estar da população, pois se concentram em impor as normas e as leis que favorecem a financeirização, a competição generalizada e a globalização. Diante desse quadro, como sugerem Dardot e Laval   no livro Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI (São Paulo: Boitempo, 2017), não se pode mais depositar as esperanças progressistas na possibilidade de vir a usar o poder estatal”, critica o entrevistado.

Veja entrevista na íntegra em http://www.ihu.unisinos.br/575494-no-capitalismo-so-nao-ha-espaco-para-dois-entes-o-ser-humano-e-a-natureza-entrevista-especial-com-eleuterio-f-s-prado.

[1] Eleutério F. S. Prado realizou graduação e pós-graduação em Economia pela Universidade de São Paulo. Fez estágio pós-doutoral na Universidade de Yale, nos Estados Unidos e, mais tarde, livre docência na USP. Atualmente é professor aposentado.

 

“Robótica eliminará até 800 milhões de empregos até 2030”

Interrogacao [O impacto das novas tecnologias na vida dos trabalhadores será sentido sobretudo nas economias mais desenvolvidas. Segundo o relatório, até um terço da força de trabalho de Estados Unidos e Alemanha terá de aprender novas habilidades e encontrar outra ocupação. No Japão, a porcentagem de afetados poderá chegar a quase a metade dos trabalhadores.

Os efeitos do fenômeno calculados pela consultoria variam segundo a projeção que se leve em consideração: se a automatização das economias avança a um ritmo intenso ou gradual.

Os responsáveis pelo documento da McKinsey afirmam que os baixos salários no México, por exemplo, levarão a um impacto menos intenso da automatização no país latino-americano: do total de 68 milhões de pessoas que comporão a força de trabalho mexicana em 2030, cerca de 9 milhões serão afetados.

“O México tem uma população jovem e uma força de trabalho que está crescendo. O nível dos salários pode diminuir a implementação da automatização no país”, destaca a consultoria.

A McKinsey analisou o efeito da robotização em 46 economias que representam quase 90% do PIB mundial. Além disso, fez projeções detalhadas do impacto da automatização em seis países: Estados Unidos, China, Alemanha, Japão, México e Índia. A consultoria destaca que os países têm de encontrar formas de realocar os trabalhadores substituídos pela automatização. “Nos cenários em que alguns dos substituídos levam anos para encontrar um novo trabalho, o desemprego cresce em curto e médio prazo. Em longo prazo, se reduz o desemprego e o mercado de trabalho se ajusta, mas com um crescimento menor dos salários”, afirmam.

Além disso, as mudanças tecnológicas atingirão com mais força os trabalhadores com menos estudo. As pessoas com formação universitária e pós-graduação serão menos afetadas. Entre as atividades mais prejudicadas destacadas pela consultoria estão os operadores de máquinas e os funcionários de redes de fast food, além de trabalhadores que fazem coleta e processamento de dados.

“As profissões altamente dependentes das atividades que identificamos como mais suscetíveis à automatização — trabalhos físicos ou processamento de dados — serão provavelmente as mais afetadas”, afirmam os responsáveis pelo relatório. “Ocupações que exigem alto nível de especialização ou uma alta exigência de interação social e emocional serão menos suscetíveis à automatização até 2030”, dizem.

Apesar dos efeitos esperados no mercado de trabalho, os pesquisadores destacam que a inovação, o crescimento econômico adequado e os investimentos podem gerar empregos suficientes para compensar os postos de que serão perdidos pela automatização.]

A reportagem é de Ricardo Della Coletta e publicada por El País, 02-12-2017. Publicado no Brasil em http://www.ihu.unisinos.br/574292-robotica-eliminara-ate-800-milhoes-de-empregos-ate-2030

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