Sínodo Pan-Amazônico: início de um diálogo para buscar novos caminhos

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[As perguntas anexadas ao documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico, publicado no dia 8 deste mês pelo Vaticano, “revelam a atitude dos autores do texto, que procuram iniciar um diálogo e não antecipar respostas”, pontua o teólogo Paulo Suess à IHU On-Line, ao comentar o documento que foi enviado para dioceses e prelazias brasileiras pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e também está disponível na internet.

Na avaliação de Suess, o núcleo do documento está diretamente relacionado com o objetivo central do Sínodo Pan-Amazônico, que é a busca por “novos caminhos” para a evangelização na Amazônia. Isso fica explícito, informa, nas 18 vezes em que o documento menciona a necessidade de se buscarem “novos caminhos”. Essa busca, frisa, está articulada com três questões fundamentais apresentadas no texto: “a questão dos sujeitos e protagonistas”, à medida que “o Sínodo está sendo realizado pelos bispos, para e com os povos amazônicos”; “a construção de uma Igreja com rosto amazônico”, que “visa à construção de uma Igreja descolonizada, inculturada e contextualizada”; e “um novo estilo de vida de todos”, a partir de “caminhos dialogais e interconectados”, nos quais o “processo de evangelização não pode ser separado do zelo pelas culturas, nem do cuidado com o território e a ecologia”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Suess também destaca que a avaliação geral do documento preparatório depende de premissas que Kant formulou em suas três Críticas: Que podemos saber? Que devemos fazer? Que podemos esperar? “Nos três campos — no saber, no fazer e no esperar — aguardam a Igreja tarefas gigantes, tanto na preparação do Sínodo como na sua realização, em outubro de 2019”, conclui.

Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia.

Entre suas publicações, estão Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia – A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017) e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual sua avaliação geral do documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico, publicado no dia 8 de junho pelo Vaticano, em especial dos três conjuntos de perguntas que correspondem às diferentes partes do documento?

Paulo Suess – As perguntas anexadas ao “Documento Preparatório” para o Sínodo Pan-Amazônico podem ser ampliadas, resgatadas e contextualizadas pelas respostas. Revelam a atitude dos autores do texto, que procuram iniciar um diálogo e não antecipar respostas.

A avaliação geral do “Documento Preparatório” depende de premissas que Kant (1724-1804), em suas três Críticas para o campo da filosofia, assim formulou: Que podemos saber? Que devemos fazer? Que podemos esperar? Nos três campos — no saber, no fazer e no esperar — aguardam a Igreja tarefas gigantes, tanto na preparação do Sínodo como na sua realização, em outubro de 2019.

Que podemos saber? Um Documento Preparatório” não deve substituir o próprio Sínodo com propostas concretas que se esperam das comunidades e lideranças das comunidades amazônicas. Hoje, os trabalhos científicos e os dados sociológicos, econômicos, geográficos e ecológicos sobre a Amazônia enchem bibliotecas. Menos conhecidos são a real história da Amazônia, suas culturas e o núcleo central dessas culturas, a sabedoria dos povos que habitam essa grande área. Mas essa lacuna sobre a Amazônia pode gradativamente ser superada através de uma metodologia participativa e sinodal que o “Documento Preparatório” e a própria organização do Sínodo propõem. Como o objetivo do Sínodo é refletir sobre “novos caminhos” da Igreja na Amazônia e, portanto, decidir sobre mudanças na prática pastoral, cabe a todos os envolvidos nesse Sínodo não somente invocar saberes teológicos construídos no decorrer dos séculos e indicar supostos limites de negociação para transformações pastorais, litúrgicas e teológicas, mas sobretudo procurar saber até onde certos saberes teológicos são históricos e não necessariamente normativos para todos os tempos. A “Igreja em saída”, que o Papa Francisco propõe, nos lembra que Jesus não foi pedreiro que construiu muros, mas carpinteiro que fez portas e janelas. Precisamos resgatar a liberdade do cristianismo dos primeiros séculos e do próprio Vaticano II, que nos falou da infalibilidade do povo de Deus no ato da fé (in credendo), porque “Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé — o sensus fidei — que os ajuda a discernir o que vem realmente de Deus” (EG 119).

Que devemos fazer?

Precisamos nos exercitar na escuta recíproca entre todos. Para a Igreja universal é de vital importância escutar os povos indígenas e as comunidades que vivem na Amazônia, como os primeiros interlocutores deste Sínodo. Nessa escuta, podem-se conhecer os desafios e encontrar os novos caminhos que Deus pede à Igreja. O Papa Francisco nos deu um exemplo quando veio ao encontro dos representantes dos povos da Amazônia, em Puerto Maldonado (Peru), não somente para “visitar”, mas para “escutar”. A escuta é um ato de fé e “requer um magistério eclesial aberto para a escuta do Espírito Santo, que garante unidade e diversidade” [60] [1] . “É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles” (EG 198) e por suas culturas [75], que são “culturas do encontro” na vida cotidiana, nas quais se vive em “harmonia pluriforme” (EG 220) com “sobriedade feliz” (LS 224s) [cf. 4].

Que podemos esperar?

A finalidade principal deste Sínodo é modelar uma Igreja com “rosto amazônico”, o que significa libertar o povo de Deus de todas as formas de alienação e neocolonialismo, que destroem sua biodiversidade pela imposição de modelos culturais (religiosos, educativos, econômicos, políticos) estranhos à sua vida. Ainda hoje existem restos do projeto colonizador que demoniza as culturas indígenas [cf. 24]. Ao Sínodo cabe, portanto, “colaborar na construção de um mundo capaz de romper com as estruturas que sacrificam a vida e com as mentalidades de colonização para construir redes de solidariedade e interculturalidade” [4]. Cabe aos padres sinodais fazer aparecer melhor o rosto amazônico da Igreja, ou seja, “aprofundar o processo de inculturação(EG 126) [79] e denunciar profeticamente as situações de injustiça no mundo e na região [cf. 66].

As grandes distâncias geográficas da Amazônia produziram também grandes distâncias pastorais. O mistério da encarnação e a prática pastoral da inculturação apontam para a superação real dessas distâncias. Novas tecnologias (carros, canoas com motores sofisticados e internet) exercem um papel secundário nessa superação das distâncias geográficas e pastorais. O “Documento de Aparecida”, de 2007, descreve a defasagem entre exigências pastorais e realidade assim: “O número insuficiente de sacerdotes e sua não equitativa distribuição impossibilitam que muitíssimas comunidades possam participar regularmente na celebração da Eucaristia. Recordando que a Eucaristia faz Igreja, preocupa-nos a situação de milhares dessas comunidades privadas da Eucaristia dominical por longos períodos” (DAp 100e) [cf. 64]. A carência eucarística afeta mistérios centrais da vida cristã: A comunhão trinitária na Igreja “tem seu ponto alto na Eucaristia, que é princípio e projeto da missão do cristão” (DAp 153). Como as comunidades na Amazônia podem “viver sua fé na centralidade do mistério pascal de Cristo através da Eucaristia, de maneira que toda a sua vida seja cada vez mais vida eucarística” (DAp 251)?

Espera-se do Sínodo que a Igreja possa gerar processos que respondam às realidades concretas dos povos amazônicos. Os “novos caminhos” ainda são devedores do Vaticano II, cujo Decreto “Presbyterorum ordinis” é taxativo: “Nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia, a partir da qual, portanto, deve começar toda a educação do espírito comunitário” (PO 6). Espera-se do Sínodo coerência e relevância, coerência com as promessas e afirmações até normativas da Igreja e relevância para com os povos originários que nunca “estiveram tão ameaçados nos seus territórios como o estão agora” [24].

IHU On-Line – Quais são as três questões mais importantes do documento preparatório?

Paulo Suess – O “Documento Preparatório” com seu Questionário segue a inspiração do Papa Francisco, que já no primeiro anúncio da realização de uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica, no dia 15 de outubro de 2017, definiu como sua finalidade principal “encontrar novos caminhos para a evangelização”. O “Documento Preparatório” menciona 18 vezes esses “novos caminhos” para a evangelização da Igreja na Amazônia. Esses novos caminhos, marcados por três cuidados, são o fio condutor proposto para o trabalho do Sínodo Pan-Amazônico: o sujeito (os povos da Amazônia), a microrregião (rosto amazônico) e a macrorregião (novo estilo de vida de toda a humanidade).

– Primeiro, a questão dos sujeitos e protagonistas

O Sínodo está sendo realizado pelos bispos, para e com os povos amazônicos [1], cujas vidas são ameaçadas e cujos territórios são disputados [cf. 24]. Trata-se, portanto, de um protagonismo partilhado com todo o povo de Deus e de um caminhar sinodal. A participação dos povos amazônicos vai além de meras consultas, porque o povo de Deus é dotado com o “instinto da fé” (sensus fidei), que o torna infalível em seu conjunto (EG 119; cf. LG 12; DV 10) [61].

– Segundo, a construção de uma Igreja com rosto amazônico

A Igreja com rosto amazônico visa à construção de uma Igreja descolonizada, inculturada e contextualizada. Com esse pano de fundo, “urge avaliar e repensar os ministérios que hoje são necessários para responder aos objetivos de “uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” [81]. Onde já se mostra este rosto amazônico e indígena é na presença e atuação das mulheres nas comunidades. A reivindicação de avançar na admissão de viri probati ainda é a reivindicação de uma Igreja clerical e machista de meio século atrás. Ao falarmos de uma Igreja indígena descolonizada haveremos de falar de viri probati e uxores probatae, de homens e mulheres que marcaram por longos anos sua relevância pastoral na Igreja. O “Documento Preparatório” não se antecipa a essas propostas, porém abre o caminho para elas.

– Terceiro, um novo estilo de vida de todos

Os “novos caminhos” não são caminhos paralelos que se encontram na eternidade, mas caminhos dialogais e interconectados. O processo de evangelização não pode ser separado do zelo pelas culturas, nem do cuidado com o território e a ecologia [cf. 52]. “‘Tudo está interligado’ (LS 16, 91, 117, 138, 240) [cf. 48] é a grande insistência do Papa Francisco para facilitar o diálogo com as raízes espirituais das grandes tradições religiosas e culturais” [72]. Os “novos caminhos” convidam para um novo estilo de vida de “sobriedade feliz” [LS 224s], que assume a mística da interligação e interdependência de tudo que foi criado. Interligados são a mãe Terra e toda a humanidade, as religiões e os sonhos. Também a cruz e a ressurreição fazem parte da polaridade sinergética da vida. Ela nos permite “encontrar Deus em todas as coisas”, como os místicos Mestre Eckhart e Inácio de Loyola nos ensinaram. Seu lema, que pode nos inspirar para um novo estilo de vida, nos impulsiona a “praticar a solidariedade global” [74], viver a “corresponsabilidade no trabalho comum” [25] e superar a ação desordenada do ser humano ante a natureza que ameaça o futuro de suas próprias condições de vida. “Encontrar Deus em todas as coisas” é uma chave importante para superar a “cultura do descarte” (LS 6) [2] e assumir “uma conversão ecológica que implica um novo estilo de vida, cujo foco é o outro. Urge praticar a solidariedade global e superar o individualismo, abrir novos caminhos de liberdade, verdade e beleza” [74].

IHU On-Line – Alguma questão importante não foi contemplada pelo documento?

Paulo Suess – O “Documento Preparatório” para o Sínodo não tinha a tarefa de contemplar todas as questões importantes e pertinentes para a região Amazônica. Seguiu-se a proposta do Papa Francisco de que “uma pastoral em chave missionária não está obsessionada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas […]; o anúncio concentra-se no essencial […]. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade” (EG 35). De fato, nem as questões do trabalho nem as do ecumenismo ou as do diálogo inter-religioso foram aprofundadas. As questões realmente importantes para os povos da Amazônia (povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e afrodescendentes, a população rural e a dos centros urbanos) só saberemos depois da devolução do Questionário com respostas, propostas e novas perguntas.

IHU On-Line – O documento preparatório segue a metodologia “ver, julgar (discernir) e agir”. Qual é a importância desse método para esse Sínodo em especial?

Paulo Suess – A metodologia indutiva do “ver-julgar-agir”, que parte da realidade pluridimensional concreta, marca desde Medellín a teologia latino-americana. Já no início de seu pontificado, o Papa Francisco nos convida, no processo de evangelização, a assumir a cultura do outro e nos adverte: “Às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador” (EG 117). Se a proposta para este Sínodo é a construção de uma Igreja com rostos amazônicos, que são muitos, e se o desafio da pastoral na Amazônia são as grandes distâncias, então, para superar as duas distâncias, a cultural, que “abrange a totalidade da vida de um povo” (EG 115), e a geográfica, que envolve as estruturas eclesiais e ministeriais, se oferece o método indutivo, que permite contextualizar o “ver, julgar (discernir) e agir”.

Contextualizar o cristianismo na Amazônia significa abrir “novos caminhos” no plural das culturas e de sua evolução histórica, porque “não faria justiça à lógica da encarnação pensar num Cristianismo monocultural” (EG 117). “Contexto” significa busca de proximidade para ver a pessoa e os povos em sua história, cultura, relações sociais e geografia, nas contradições de interesses, conflitos e poderes. Como se situar nesse mundo amazônico entre isolamento e aggiornamento? Como traduzir os artigos de fé, os sinais de justiça, as imagens de esperança e as práticas de solidariedade para os interlocutores do mundo tradicional e do moderno ao mesmo tempo? Como viver a inculturação da fé e a contraculturalidade do Evangelho? Como manter a Igreja universalmente unida e localmente enraizada? Precisamos um novo conceito de unidade na diversidade do Espírito Santo, porque “o cuidado da casa comum” inclui também o cuidado da casa de cada um.

IHU On-Line – Qual sua avaliação particular da dimensão bíblico-teológica do documento, especialmente em sua proposta de anunciar o Evangelho na Amazônia levando em conta uma dimensão social, ecológica, sacramental e eclesial-missionária?

Paulo Suess – Todas as dimensões mencionadas não são subdivisões da “dimensão bíblico-teológica” do documento, mas, dentro da metodologia do “ver, julgar e agir”, da segunda parte do texto que trata do “Discernir (julgar) – para uma conversão pastoral e ecológica”.

Se você pergunta por “minha avaliação particular”, diria o seguinte: Eu tenho muitas razões para dar força ao texto assim como está. Que essa “conversão pastoral e ecológica”, em todos os subitens, é cinco vezes introduzida com o mantra de “Anunciar o Evangelho de Jesus na Amazônia” é uma falha estilística, não semântica, que poderia ser evitada por um título mais abrangente da segunda parte do Documento: “II. DISCERNIR. Para uma conversão pastoral e ecológica a partir do anúncio do Evangelho de Jesus na Amazônia”. O restante, encontrar em todas as cinco dimensões (na dimensão bíblico-teológica, social, ecológica, sacramental e eclesial-missionária) razões para a “conversão pastoral e ecológica” a partir do anúncio do Evangelho, é uma questão hermenêutica.

Na dimensão bíblico-teológica destacam-se os mistérios da criação, da encarnação e da redenção como criação nova. A dimensão social enfatiza a “conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana(EG 178) [42]. A dimensão ecológica remete ao “vínculo intrínseco entre o campo social e o ambiental” [49]. A dimensão sacramental é caracterizada por “um modo privilegiado em que a natureza é assumida por Deus e transformada em mediação da vida” [57] e na vida sacramental se realiza a contemplação de Deus em todas as coisas. A dimensão eclesial-missionária articula “a participação de todos” no louvor a Deus com “a prática da justiça a favor dos pobres” [60] e “um grande exercício de escuta recíproca” [64]. As cinco dimensões “para uma conversão pastoral e ecológica” não são uma tempestade torrencial, mas uma chuva suave para regar os “novos caminhos” e absorver a poeira da estrada.

IHU On-Line – Que reações o senhor já percebeu acerca de como o documento preparatório para o Sínodo Pan-Amazônico está sendo recebido na Igreja brasileira, em especial na Amazônia? O que está sendo preparado para que os leigos tenham acesso ao questionário?

Paulo Suess – Faz tempo que existe junto à CNBB a Comissão Episcopal para a Amazônia e, desde o ano passado, também a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil), cujo presidente é o cardeal Cláudio Hummes. Ambos os organismos, através de Encontros e Assembleias territoriais, estão assessorando dioceses e comunidades da Pan-Amazônia e da sociedade brasileira nas questões ecológicas, econômicas e pastorais pertinentes a esta macrorregião. Na CNBB e nos organismos vinculados com ela, como no Cimi, o “Documento Preparatório” já era esperado, e está sendo divulgado pelos diferentes sítios na internet. A CNBB já imprimiu o documento e o enviou para as dioceses e prelazias.

No Brasil, as respostas do questionário serão enviadas para o seguinte e-mail: sinodoamazonia@gmail.com. CNBB e REPAM-Brasil estão criando uma plataforma específica para a comunicação acerca do sínodo.

Ainda é cedo para registrar reações acerca do documento, sobretudo das comunidades, no interior do país, das quais se esperam respostas e propostas concretas, seguindo o convite do Papa Francisco, em Porto Maldonado: “Ajudai os vossos Bispos, ajudai os vossos missionários e as vossas missionárias a fazerem-se um só convosco e assim, dialogando com todos, podeis plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena” [90]. Esta interiorização do documento, da discussão e do recolhimento das respostas através do questionário, que se espera até meados de janeiro, vai depender muito dos nossos e das nossas agentes de pastoral. Seria recomendável que cada região, diocese, paróquia ou comunidade constituísse um Grupo de Trabalho Sinodal (GTS) encarregado de fazer, no final do processo de recolhimento das respostas, uma síntese das respostas.

IHU On-Line – Como será feita a avaliação dessas respostas? Até que ponto a sinodalidade pode ser efetiva?

Paulo Suess – A partir de janeiro, o grupo de assessores do Sínodo vai sintetizar as respostas. Essa síntese exige muita sensibilidade, para não desfigurar as respostas por “valorizações” nas quais seus autores não se conseguiriam mais reconhecer. A partir dessa síntese, os assessores redigem o “Documento de Trabalho” que será discutido e aprovado pelo “Conselho Pré-Sinodal”. Depois, o “Documento de Trabalho” será enviado aos delegados do próprio Sínodo. Está previsto que todos os bispos e prelados da Pan-Amazônia serão delegados do Sínodo, além de representantes das Conferências Episcopais dos Continentes e da Cúria Romana.

Um sínodo não funciona como uma democracia liberal, mas como uma cooperativa. No Brasil, muitas cooperativas já fracassaram, enquanto outras deram bons resultados. A sinodalidade pode ser efetiva, perfeita não. Efetivo, o Sínodo Pan-Amazônico já se mostrou na elaboração do “Documento Preparatório”. Com as contribuições heterogêneas, que devem vir das bases da Igreja da Amazônia Legal, o desafio de um trabalho sinodal na elaboração do “Documento de Trabalho” pode ser maior, mas novamente efetivo e não perfeito. Se for perfeito, será o fim da história. Sendo efetivo, nos leva a alguns passos à frente, e o processo continua.

IHU On-Line – Quais são os documentos centrais que fundamentam teoricamente o Documento Preparatório para o Sínodo e que, certamente, vão fundamentar também o “Documento de Trabalho”?

Paulo Suess – Na busca de “novos caminhos” para a inculturação e descolonização da Igreja na Amazônia, o Sínodo se situa num processo que mais explicitamente começou com o Concílio Vaticano II (1962-1965). “A providência do Pai e a bondade da criação alcançam seu ponto culminante no mistério da encarnação do Filho de Deus, que se aproxima e abraça todos os contextos humanos, mas sobretudo o dos mais pobres. O Concílio Vaticano II menciona esta proximidade contextual com palavras como adaptação e diálogo (cf. GS 4, 11; CD 11; UR 4; SC 37ss) e encarnação e solidariedade” (cf. GS 32) [39].

No tempo pós-conciliar, a Igreja latino-americana assumiu intenções profundas do Vaticano II, cunhou expressões próprias e sacudiu as colunas de uma teologia dedutiva cristalizada. A teologia conciliar foi indutiva. A leitura latino-americana das palavras-chave dessa teologia indutiva, que constrói seu argumento a partir da realidade concreta (cf. GS 62,2), forjou a Teologia da Libertação e outras teologias contextuais, como, por exemplo, a Teologia Índia [cf. 82]. O processo pós-conciliar incorporou novos verbetes no dicionário teológico-pastoral: “libertação” e “opção pelos pobres” (Medellín, 1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base” (Puebla, 1979), “inserção” e “inculturação” (Santo Domingo, 1992), “missão”, “testemunho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres (Aparecida, 2007).

Desde as “Conclusões de Santo Domingo”, o magistério latino-americano acrescentou, explicitamente, ao paradigma da libertação o paradigma da inculturação. A inculturação da fé e de todas as atividades eclesiais que emergem dessa fé (pastoral, liturgia, teologia, anúncio, missão, obras sociais), são “imperativos do seguimento de Jesus” (DSD 13), que redimiu a humanidade na proximidade histórico-cultural da encarnação. O paradigma da inculturação, na síntese do DAp, foi novamente proposto como caminho para expressar cada vez melhor a catolicidade. Palavras como “assumir” (DAp 280b, 330, 348), “contexto” (DAp 276, 331), “inserir” (DAp 329, 517h) e “presença” (DAp 215, 474b) pertencem ao campo semântico da inculturação: “Com a inculturação da fé, a Igreja se enriquece com novas expressões e valores, manifestando e celebrando cada vez melhor o mistério de Cristo, conseguindo unir mais a fé com a vida e assim contribuindo para uma catolicidade mais plena, não só geográfica, mas também cultural” (DAp 479).

Para a Igreja universal, esse processo de busca de “novos caminhos” estava também presente no Sínodo sobre “a nova evangelização para a transmissão da fé cristã”, de 2012. A Exortação Apostólica Evangelii gaudium (2013), do Papa Francisco, “sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual” concretizou as propostas do Sínodo sobre a Nova Evangelização e fez dos “novos caminhos” o fio condutor do seu pontificado (cf. EG 14). A Evangelii gaudium, com suas palavras-chave de “diálogo” (EG 142), “encontro” (EG 239) e “Igreja em saída” (EG 20ss), ofereceu novos verbetes para o dicionário teológico-pastoral. O “Documento Preparatório” está familiarizado com esses paradigmas que, em seu conjunto, estão presentes na proposta dos “novos caminhos” para o Sínodo. A convocação do próprio Sínodo só é possível no interior desse processo do qual o Papa Francisco é o avalista aglutinador.

Nos documentos centrais, que fundamentam o “Documento Preparatório”, está presente a memória histórica do povo de Deus que lembra a Igreja de promessas cumpridas e de outras, ainda não cumpridas, no decorrer de uma longa caminhada. O Sínodo Pan-Amazônico é herdeiro dessa caminhada. O Sínodo, em relação à Igreja, é como o anjo que tocou o profeta Elias e disse: “Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer”. O profeta levantou-se, comeu e bebeu e, com a força desse alimento, andou quarenta dias e quarenta noites, até chegar ao Horeb, monte de Deus” (1Rs 19,8). O Sínodo pode ser o anjo que nos toca. Os “novos caminhos” são lembrete desse longo caminho pelo deserto, mas também promessa da realização da utopia do Horeb e do Reino.]

Nota

[1] Os números entre colchetes se referem ao “Documento Preparatório” que se encontra no sítio da RELAMI – Brasil (Rede Latino-Americana de Missiólogos e Missiólogas) com a enumeração dos parágrafos de 1 até 90.

Título original do texto “Sínodo Pan-Amazônico. O Documento Preparatório e o Questionário – início de um diálogo para buscar novos caminhos. Entrevista especial com Paulo Suess”       in IHU Unisinos.

“As novas (velhas) faces do conservadorismo católico”

Capanha da Frazternidade
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[“O fundamentalismo católico ganha espaço, ou ao menos anda fazendo muito barulho pela internet. Longe de ser um bloco homogêneo, o que temos são variados grupos que hoje estão irmanados por percepções da realidade muito próximas, o que nos permitiria classificá-los todos com uma expressão carregada de picardia: Catolibãs. Ou seja, católicos que agem com elevado grau de intolerância e agressividade a ponto de os tornarem comparáveis aos talibãs afegãos”, escreve Jorge Alexandre Alves, sociólogo, professor do IFRJ, participante do Movimento Fé e Política e colaborador voluntário do ISER-Assessoria.

Eis o artigo.

Três recentes episódios públicos chamaram a atenção para um tipo de catolicismo que durante muito tempo parecia estar restrito a poucos espaços e sem muito alcance social. O primeiro foi a tentativa de execrar publicamente um frade franciscano por ter celebrado uma missa em memória de Dona Marisa Letícia da Silva. O segundo episódio foi a cruzada difamatória contra a CNBB e a Campanha da Fraternidade, por meio da qual se acusa o centro de poder da Igreja do Brasil de apoiar entidades comunistas. E mais recentemente, a repercussão envolvendo o trágico assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.

Quem pensa tratar-se de episódios isolados estão enganados. Poderíamos mencionar ao menos outros cinco casos em que reações muito parecidas ocorreram, de 2016 para cá. Ao que parece, os segmentos mais conservadores do catolicismo tomaram a iniciativa e “saíram do armário”.

Em todos esses casos podemos constatar alguns elementos em comum: a presença de grupos e lideranças católicas distorcendo os fatos. Por isso, atacaram agressivamente pelas redes sociais os envolvidos nestes eventos, sejam eles pessoas vivas, organismos oficiais da Igreja ou mesmo uma pessoa executada. Reproduzem as chamadas “fake news” sem checar suas fontes e sem respeitar os princípios mais básicos da piedade cristã, propagando ódio, calúnias e inverdades. Nestes fatos, a arquidiocese do Rio de Janeiro aparece seja como local efetivo (o território da arquidiocese equivale a área do município do Rio de Janeiro) dos eventos ou como lugar das manifestações contrárias mais ácidas. Se tomarmos o caso de Marielle como exemplo, nem ao menos se respeitou a dor e o luto de familiares e amigos. Um padre carioca chegou inclusive a insinuar que o Papa não havia telefonado aos parentes da vereadora.

Outro aspecto marcante envolvendo esses episódios é a postura do clero, sobretudo de quem é investido de alguma autoridade eclesiástica. Aqui temos um problema muito sério: o silêncio condescendente, omisso ou o apoio aberto de membros da hierarquia aos extremistas confere certa legitimidade a esses grupos. Aos olhos do “católico médio” – aquele que vai à missa, segue as mídias católicas e frequenta procissões ou outras devoções – os “haters católicos” parecem contar com respaldo oficial. Isso permite que tais mensagens de ódio e intolerância desses grupos se convertam em instrumentos de cooptação de agentes de pastorais (como catequistas, músicos e membros da pastoral familiar) e leigos em funções de coordenação em nível local e diocesano. Provavelmente é o que já vem ocorrendo em muitas dioceses ou espaços eclesiais de perfil mais conservador, como na cidade do Rio de Janeiro.

Mas o que significa esse fenômeno? Quem compõe essa onda conservadora? De uma forma mais ampla parece que o fundamentalismo católico ganha espaço, ou ao menos anda fazendo muito barulho pela internet. Longe de ser um bloco homogêneo, o que temos são variados grupos que hoje estão irmanados por percepções da realidade muito próximas, o que nos permitiria classificá-los todos com uma expressão carregada de picardia: Catolibãs. Ou seja, católicos que agem com elevado grau de intolerância e agressividade a ponto de os tornarem comparáveis aos talibãs afegãos.

Em comum, além da postura agressiva manifestada através das redes sociais, reside neles uma visão de que a esquerda brasileira atual é constituída em sua totalidade por comunistas – como se isso fosse algo pejorativo… É uma compreensão tosca e anacrônica de nossa conjuntura política, porque fica parecendo que voltamos à década de 50 do século passado, no auge da Guerra Fria. E que ser “de esquerda” é necessariamente ser anticatólico. Também pensam semelhante quanto às temáticas da moral cristã. Negam-se a discutir a descriminalização do aborto, o acesso à Comunhão para casais em segunda união e propagam uma excrescência conceitual chamada de “Ideologia de Gênero”. Trata-se de expressão carente de qualquer fundamentação teórica academicamente relevante e que apenas alimenta distorções quanto às discussões de gênero nos espaços eclesiais.

Outro elemento em comum reside no ódio à Teologia da Libertação, grupos, pastorais e movimentos que se aproximam dessa perspectiva pastoral são perseguidos e difamados pelas mídias sociais, e tratados como hereges, como células comunistas dentro da Igreja. Colabora muito na disseminação deste tipo de mensagem a formação teológica do clero nos seminários diocesanos. Ela alimenta preconceitos e reforça uma certa “catequese” pela qual se transmite para os fiéis uma visão enviesada a respeito desta perspectiva teológico-pastoral.

Uma parte de bloco se constitui naquilo que se pode chamar de neointegrismo católico. É constituído por grupos e indivíduos que, a despeito dos ensinamentos e posturas do Papa Francisco, assumem posições político-religiosas que remontam a tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, quando Pio XII ainda era Papa. Não são numerosos, mas fazem bastante barulho pelas redes sociais e parecem ter cada vez mais seguidores. Alguns desses grupos contam com o apoio de autoridades eclesiásticas, como acontece na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Lá, o silêncio do arcebispo sobre os últimos eventos trágicos na cidade, a postura de membros proeminentes do clero ou com funções importantes na estrutura diocesana, e o apoio de um bispo-auxiliar a um dos mais extremistas destes grupos, ratifica essa observação.

No mesmo campo estão setores radicalizados do pentecostalismo católico, residentes principalmente em algumas das ditas comunidades de vida e aliança. A uma delas praticamente foi entregue a coordenação e a organização da Jornada Mundial da Juventude, em 2013, alijando do processo a Pastoral da Juventude, por exemplo. A outra se constituiu em um grande império midiático e centro de disseminação de sua vertente católica, localizado no interior de São Paulo. Recebem peregrinos e visitantes de todo o Brasil semanalmente. Em muitos aspectos se parecem com as igrejas evangélicas pentecostais, promovendo um cristianismo de perfil intimista, que insiste no caráter mágico do sagrado. Defendem uma espiritualidade centralizada no louvor desconectado da realidade, no êxtase religioso e na cura divina. Sua marca católica está no resgate das práticas medievais de piedade popular – como a reza do terço e a adoração ao Santíssimo, na devoção mariana e a aparente obediência ao Papa.

Por outro lado, as mídias católicas que estes segmentos gerenciam vêm promovendo figuras que estão na contramão dos ensinamentos de Francisco. Destacam-se um dito professor leigo e um padre cuja indumentária lembra os tempos Pré-Conciliares. Este clérigo mantém um canal no YouTube, mas é sabido que foi afastado de suas funções de professor no seminário de sua diocese, e que houve um manifesto contrário à sua pregação assinado por 40 sacerdotes em sua cidade. Recentemente sua visita ao seminário diocesano do Rio de Janeiro causou espanto a segmentos progressistas da Igreja, que ignoravam que o padre em questão fazia palestras todos os anos aos seminaristas deste local.

Completam esse bloco grupos tradicionalistas já conhecidos, como a Opus Dei. Dentre todos talvez seja o de maior poder financeiro e influência política. Têm ligações com governantes, juristas, além de espaço garantido na grande imprensa. Outros como Arautos do Evangelho e Legionários de Cristo, ambos sob investigação do Vaticano, também fazem parte de campo ultraconservador. Caracterizam-se mais pelo elitismo de suas ações e pelo formalismo de suas regras, vestes e falas. Ainda que não o façam de forma pública, é sabido que se opõem aos ensinamentos do Papa Francisco.

Este campo, longe de representar a maioria dos católicos no Brasil, começa a se posicionar publicamente de forma mais aguerrida, sem que a CNBB ou um dos cardeais brasileiros na ativa se manifeste em relação a eles. Ao contrário, o que parece é que estes grupos conseguiram, ainda que preliminarmente, emparedar o episcopado brasileiro. Ou será que contam com o apoio tácito de parcela representativa dos bispos?

Cabe ainda, para concluir, uma outra reflexão. A arquidiocese do Rio de Janeiro sempre foi um bastião do conservadorismo católico, no qual grupos ultraconservadores sempre tiveram livre trânsito e um protagonismo que não se via em outras dioceses brasileiras, salvo em poucos lugares até 25 anos atrás. Esse caldo de cultura religiosa acabou por formar uma geração inteira de leigos dentro uma visão estreita da fé cristã e do seguimento de Jesus. Além disso, tais grupos controlam a formação oferecida no Seminário São José, a ponto dos seus estudantes – oriundos de muitas dioceses brasileiras – não fazerem seus estudos teológicos na PUC-RJ. Por sinal, o seu curso de Teologia, que já foi dos mais prestigiosos do Brasil, hoje sobrevive a duras penas, dada a pressão conservadora sobre os padres jesuítas que administram a universidade.

Assim, podemos desconfiar se a conjuntura eclesial carioca não começa a se reproduzir em todo o país. Se isso for confirmado, entender quem são os protagonistas no contexto diocesano do Rio de Janeiro nos ajudaria a compreender melhor os meandros do conservadorismo católico brasileiro. Uma vez que ele, ao que parece, está “saindo do armário”, não seria a estrutura eclesiástica da arquidiocese do Rio de Janeiro e seu modus operandi um modelo que começa a ser imitado em escala nacional? Fenômeno que merece ser observado atentamente.]

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Kafka

Kafka
Reprodução

[Estou lendo os 3 volumes da biografia do Kafka nas últimas semanas, surpreso comigo mesmo por conseguir progredir em um bom ritmo na leitura. Ele teve uma vida sem eventos significativos que orbitou em torno de algumas obsessões compulsivas incluindo sua necessidade incontrolável de escrever e seu ouvido perfeito para a literatura. Foi a compulsão por escrever que fez deste advogado de seguros que não podia se comprometer com o amor ou escapar dos seus pais um dos profetas da era moderna. Sua percepção sobre o efeito desumano da burocracia e o senso de opressão pessoal e alienação causado pela vida contemporânea ainda carregam significado para nós com uma intensidade comovente.

No livro O Processo ele descreve a influência doentia de estruturas injustas de poder que esmagam os inocentes. A narrativa da Paixão do julgamento show no qual Jesus é condenado à morte evoca o mesmo cenário de pesadelo quando a paranoia é exposta como não imaginária e nós vemos que somos de fato o alvo inocente de inimigos maldosos.

Mas com Jesus este pesadelo de perseguições, apesar de tão reais quanto um expurgo Stalinista, não o sobrepujam como a vítima inocente. Isso ocorre simplesmente porque ele não se permite ser identificado como uma vítima. Ele é um sacrifício. Então há um resultado bem diferente.

Para uma pessoa religiosa – de qualquer fé – a cumplicidade das autoridades religiosas na injustiça cometida contra Jesus é profundamente perturbadora. Então, para o pastor Luterano e teólogo Dietrich Bonhoeffer, foi a pessoal responsável por conformidade das igrejas Cristãs junto aos Nazistas. Nestes casos nós vemos — assim como hoje com a aliança da Igreja Russa com o seu regime político — como poder, falsa prudência e privilégios corrompem a fé.

O poder é um fluxo de energia. Se, originado de qualquer fonte, carregar o vírus da corrupção então carregará este vírus para todas as partes do sistema. Conforme a monstruosa corrupção do poder se vira pessoalmente contra ele, Jesus a confronta com racionalidade (“Se o que eu disse está certo, por que você me bate?”), calma e silêncio. O seu próprio poder, fluindo diretamente da sua fonte de ser, confronta e engaja com o poder sistemicamente corrupto detido por aqueles que o declararam como o inimigo.

Quando o poder é corrompido, as sombras mais escuras da natureza humana aparecem, do topo à base da hierarquia. O sadismo dos campos de morte, ou o genocídio de Srebrenica, ou o tratamento desumano em Guantánamo autorizado por políticos civilizados em Capitol Hill (Washington) são refletidos na tortura e crueldade descritos na narrativa da Paixão.

Pilatos, o político de supremo sucesso, é a divisória deste confronto entre o poder puro e corrupto. Sua pergunta perturbadora “o que é a verdade?” responde a si mesma quando ele lava as suas mãos da injustiça que ele permitiu. Todo sistema de poder a partir daí enxergará — e para sempre será afetado — ao enxergar a vítima inocente como a única personagem a sair deste drama de corrupção com integridade.]

Texto original em inglês

[I have been reading the three-volume biography of Kafka for some weeks, surprised at myself for plodding through it. He had an uneventful life revolving around a few compulsive obsessions including his irrepressible need to write and his perfect ear for literature. It was the compulsion to write that made this insurance lawyer who could not commit to love or escape from his parents one of the prophets of the modern era. His insight into the dehumanizing effect of bureaucracy and the sense of personal oppression and alienation caused by contemporary life speaks to us still with moving intensity.

In The Trial he describes the sickening influence of unjust power structures crushing down against the innocent. The Passion narrative of the show trial at which Jesus was condemned to death evokes the same nightmare scenario when paranoia is exposed as not imaginary and we see that we are indeed the innocent target of malevolent enemies.

But with Jesus this nightmare of persecution, though as real as a Stalinist purge, does not overwhelm him as the innocent victim. This is because he simply does not allow himself to identify himself as a victim. He is a sacrifice. And so there is a quite different outcome.

For a religious person – of any faith – the complicity of religious authorities in the injustice committed against Jesus is deeply disturbing. So, to the Lutheran pastor and theologian Dietrich Bonhoeffer, was the compliance of the Christian churches with the Nazis. In these cases we see – as today with the alliance of the Russian Church with its political regime – how power, false prudence and privilege corrupt faith.

Power is a flow of energy. If, from whatever source, it bears the virus of corruption it carries it to every part of the system. As the monstrous corruption of power turns personally against him, Jesus confronts it with rationality (‘if I have said nothing wrong why do you strike me?’), equanimity and silence. His own power, flowing directly from his source of being, confronts and engages with the systemic corrupt power held by those who have declared him to be the enemy.

When power is corrupted, the darkest shadows in human nature surface, from top to bottom of the hierarchy. The sadism of the death camps, or Srebrenika, or the inhumanity at Guantanemo authorized by civilized politicians on Capitol Hill are reflected in the torture and cruelty described in the Passion narrative.

Pilate, the consummate successful politician, is the foil of this confrontation between pure and corrupt power. His creepy question ‘what is truth?’ answers itself as he washes his hands of the injustice he has permitted. Every power system thereafter will see – and be forever disturbed – by seeing the innocent victim as the only character to walk away from this drama of corruption with integrity.]

  1. Laurence Freeman, in Comunidade Mundial para a Meditação Cristã. Quarta-feira da Semana Santa. Leitura de Quarta, 28 Março 2018.

O conhecimento está dentro de nós

Tao
Reprodução: Science and Nonduality (Tao-Te-Ching-1ª)

[De acordo com o Tao-Te-Ching, antigo texto da sabedoria chinesa, o modo de vida correto depende da sabedoria; e a sabedoria consiste de um paradoxo tão radical quanto o que encontramos nas bem-aventuranças e no significado da história de vida e morte de Jesus. O Tao-Te-Ching, assim como Jesus, se utiliza de linguajar popular, e não de um tom pretensiosamente intelectual.

Trinta raios unem-se em um cubo

É precisamente onde nada há que encontramos a utilidade da roda…

Talhamos portas e janelas

É precisamente nesses espaços vazios que encontramos a utilidade do aposento.

Nesta tradução o termo “precisamente” chama a nossa atenção. Respeitamos e exigimos precisão, o termo correto, o relatório financeiro acurado, a abordagem correta a uma situação. Empresas e governos gastam fortunas procurando atingir uma aparente precisão. Trata-se do novo “virtuoso” e um valor universal em uma era onde todas as coisas devem ser provavelmente úteis.

No entanto, utilizada nesse contexto de sabedoria, numa metáfora poderosa, mas mundana, a precisão não é o mesmo que prova científica. E, porque o método científico é o nosso mais elevado valor, é fácil menosprezar termos como esses acima citados como sendo mera sabedoria popular. Podemos ler isso no trem para o trabalho, ou na cama antes de dormir, mas não nos sentimos desafiados a aplicar isso na verdadeira maneira como vivemos ou como operamos nossas instituições.

Nosso sistema materialista de valores gira em torno de utilidade verificável. Qual a razão de ser de algo que não produza benefícios óbvios? Naturalmente, a sabedoria trata de tornar a vida melhor, ainda que não necessariamente óbvia. Lao Tse, e a história do Evangelho na qual seremos mergulhados na próxima semana, provam uma tese muito perturbadora. O mais útil pode ser o menos óbvio.

A meditação é uma via de sabedoria. Trata-se de uma via estreita, na maneira que Jesus quis dizer quando afirmou que o caminho para a vida é estreito. Porém, essa qualidade de estreitamento produz imensa expansão, do mesmo modo que duas linhas convergentes que se encontram em um ponto ricocheteiam afastando-se numa trajetória de infinita expansão. Um ponto é infinitamente pequeno; ele tem posição, mas não tem magnitude.

Compara-se à vacuidade de uma janela, ou ao cubo de uma roda, assim como a própria morte.

Temos uma dívida incomensurável com aqueles que transmitiram sabedoria em todos os campos que ilustram isso de maneira que possamos entender, ainda que por fugaz momento antes que novamente o esqueçamos. Esses mestres de sabedoria não são como os loquazes consultores que são remunerados por palavra ou pela extensão de um relatório. Eles dizem tudo em quase nada.

Esse é o ponto de minha fracassada tentativa de minimalismo quaresmal em que eu deveria parar.]

Texto original em inglês

[According to the Te-Tao Ching, an ancient Chinese wisdom text, right living depends on wisdom; and wisdom consists in a paradox as radical as that we find in the Beatitudes and the meaning of the story of the life and death of Jesus.

The Te Tao Ching, like Jesus, uses homely language not a hifalutin intellectual tone.

Thirty spokes unite in one hub
It is precisely where there is nothing that we find the usefulness of the wheel …

We chisel out doors and windows

It is precisely in these empty spaces that we find the usefulness of the room

The word ‘precisely’ in this translation engages our attention. We respect and demand precision, the right word, the accurate financial report, the correct assessment of a situation. Businesses and governments spend fortunes trying to achieve the appearance of precision. It is the new ‘virtuous’ and a universal value in an age where everything must be probably useful.

Used in this wisdom context, in a powerful but mundane metaphor, however, precision is not the same as scientific proof. Because the scientific method is our very highest value, it is easy to dismiss words like those above as mere folk-wisdom. We may read it on the train to work or in bed at night but we don’t feel challenged to apply it to the actual ways we live or run our institutions.

Our materialist value-system revolves around verifiable usefulness. What’s the point if something doesn’t produce obvious benefits? Naturally, wisdom is about making life better but not necessarily obvious. Lao Tzu – and the gospel story we will be plunged into next week – make a very disruptive point. The most useful may be the least obvious.

Meditation is a wisdom path. It is a narrow one – in the way Jesus meant when he said that the way to life is narrow. But its narrowness produces immense expansion in the way that two converging lines, meeting in a single point, ricochet outwards into an infinitely expanding trajectory. A point is infinitely small; it has a position but no magnitude.

It is like the emptiness of a window or the hub of a wheel, like death itself.

We owe an immeasurable debt to the transmitters of wisdom in every field who illustrate this in ways we can understand, even for a fleeting moment before we forget again. Such teachers of wisdom are not like loquacious consultants paid by the word or the length of a report. They say everything in almost nothing.

At which point in my failed attempt at Lenten minimalism I should stop.]

  1. Laurence Freeman, in Comunidade Mundial para a Meditação Cristã. Segunda-feira da Quinta Semana da Quaresma. Leitura de Segunda, 19 Março 2018.

Nos iludimos achando que a solução está fora de nós mesmos

Alemdaterra
Crédito da imagem: Apolo11.com

[William Blake disse que se pudéssemos limpar as portas da percepção nós veríamos tudo como verdadeiramente é: infinito. “Pois o homem se fechou, até o ponto em que enxergue as coisas através de fendas estreitas da sua caverna”.

É sempre tentador achar que as soluções estão fora de nós mesmos. Outros que falham em colaborar então podem ser culpados pelo problema. Lentamente na vida aprendemos que não podemos mudar o mundo ou as outras pessoas até que tenhamos primeiro mudado a nós mesmos. É perturbador que isso seja uma lei universal, mas que não exista forma de lidar com êxito com ela.

Uma tentativa de evadir a necessidade de transformação pessoal é pensar que podemos limpar as portas da percepção por meio de pegar algo externo a nós mesmos e colocar para dentro. A humanidade tem estabelecido uma relação com bebidas alcóolicas por dez milhões de anos e depois dominou a arte de produção cerca de dez mil anos atrás. Nossa atual epidemia de vício de drogas simplesmente confirma a facilidade que encontramos em escapar das dolorosas percepções da realidade ao distorcê-las por meios externos. Todo alcoólatra e viciado é testemunha da falência definitiva destas tentativas.

Se queremos ver as coisas como realmente são temos que limpar os poderes de percepção que nos permitem conhecer a nós mesmos como realmente somos. Existem vários destes poderes, assim como existem muitas dimensões de consciência nas esferas físicas, mentais e espirituais. Propriocepção, ou cinestesia, é o termo médico para um destes poderes, que é talvez a percepção que a maioria de nós toma como adquirida. É o senso ou sentido através do qual podemos perceber a posição e o movimento do nosso corpo. Por exemplo, mesmo com nossos olhos fechados, nós sabemos onde nossa mão esquerda ou direita está e o que estão fazendo. Nós também conhecemos por este sentido se estamos nos sentindo equilibrados. Os atletas são bons elementos para o estudo científico desta forma de percepção.

Nós praticamos isso – e limpamos isso – cada vez que meditamos, quando dedicamos alguns instantes para perceber o nosso corpo e a sua postura. Estamos sentados de forma ereta, em quietude, com o pescoço equilibrado e as mãos em posição – “de forma confortável e relaxada?” Esta verificação intuitiva se torna secundária com a prática regular e sustenta a meditação na apreciação da própria percepção. Que nós podemos ter consciência de nós mesmos nesta mais simples e imediata forma nos lembra de que somos seres sensíveis e não apenas indivíduos estressados, ansiosos, descontentes ou rabugentos. Alguns momentos de atenção com a nossa postura mostram um caminho para fora da caverna na qual Blake diz que aprisionamos a nós mesmos.

Pode parecer paradoxal, mas esta forma básica de autoconsciência, percepção sobre a nossa realidade física, inicia uma jornada na capacidade de estarmos centrados no outro. Se você preferir, é atenção plena básica e da forma como for praticada, trará os seus próprios tipos de benefícios. Mas, se não quisermos ficar presos na autoconsciência e se queremos aproveitar todos os frutos do autoconhecimento, precisamos dar o próximo passo. É por isso que meditamos e por isso que algum de nós apoie isso com o trabalho de limpeza de percepção da Quaresma.]

Texto original em inglês

[William Blake said that if we could only cleanse the doors of perception we would see everything as it truly is: infinite. ‘For man has closed himself up, till he sees all things thro’ narrow chinks of his cavern.’

It is always tempting to think that solutions lie outside us. Others who fail to collaborate can then be blamed for the problem. Slowly through life we learn that we cannot change the world or other people until we first change ourselves. It is very annoying that this is a universal law but there’s no getting around it.

One attempt to evade the need for personal transformation is to think that we can cleanse the doors of perception by taking something outside ourselves and putting it inside. Humanity has had a relationship with alcohol for ten million years and then mastered the arts of producing it about ten thousand years ago. Our drug-addiction epidemic today merely confirms how easy we find it to escape painful perceptions of reality by changing them by external means. Every alcoholic and addict witnesses to the ultimate failure of this attempt.

If we want to see things as they really are we have to cleanse the powers of perception that permit us to know ourselves as we truly are. There are many of these powers, as there are many dimensions of consciousness in the physical, mental and spiritual realms. Proprioception, or kinesthesia, is the medical term for one of these powers, which is perhaps the perception we most take for granted. It is the sense by which we can perceive the position and movement of our body. For example, even with our eyes closed we know where our left and right hands are and what they are doing. We also know by this sense whether we are feeling balanced. Athletes make good subjects for the scientific study of this form of perception.

We practice it – and cleanse it – each time we meditate, when we take a few moments to be aware of our body and its posture. Are we sitting upright, still, with neck balanced and hands in position – ‘comfortable and relaxed’? This intuitive checklist becomes second nature with regular practice and grounds meditation in the wonder of perception itself. That we can be aware of ourselves in this most simple and immediate way reminds us that we are sentient beings not just stressed, anxious, discontented or complaining individuals. A few moments’ attention to our posture shows a way out of the cavern in which Blake says we have incarcerated ourselves.

Paradoxical as it may sound, this most basic power of self-awareness, perception concerning our physical reality, initiates the journey into other-centredness. It is, if you like, basic mindfulness and however it is practiced it brings its own kinds of benefits. But, if we are not to get stuck at self-awareness and if we are to enjoy the fruits of self-knowledge, we need to take the next step. This is why we meditate and why some of us support it with the perception-cleansing work of Lent.]

  1. Laurence Freeman in Comunidade mundial para a meditação cristã.

A infindável controvérsia sobre a existência ou não de Deus

Luta
As pessoas se envolvem em lutas sem fim com questões sobre a existência de Deus e sobre como Deus é.

Laurence Freeman, in Comunidade Mundial para a Meditação Cristã, praticamente fala sozinho nestes tempos “bicudos” e intransigentes, onde as máximas parecem sempre ser a mentira, os fakenews e desonestidade.

A discussão, e principalmente a forma como D. Laurence Freeman discute, são ótima e oportunas na busca por superar a dicotomia Deus existe / Deus não existe.

Veja texto abaixo?

[A Bíblia acha que somente “o tolo diz em seu coração que Deus não existe”. Mas chamar um ateu de tolo não ajuda em nada na discussão atualmente. A importância de acreditar em Deus hoje em dia não é para evitarmos ser queimados na fogueira de uma tirania teocrática, mas para nos lembrarmos de questões igualmente importantes sobre a existência e o significado humanos. Sem uma conexão com o símbolo vivo da transcendência, não podemos realizar plenamente nossa humanidade.

A primeira leitura usa a metáfora familiar da ira de Deus descendo sobre os que são infiéis à Aliança. É uma metáfora que muitos continuam levando a sério, pois oferece uma explicação fácil para o mistério do sofrimento e dá ao crente um senso de superioridade sobre aqueles que ele condena por desobedecerem a Deus. Porém, se não decodificarmos a metáfora, acabaremos sendo iguais ao Talibã.

A segunda leitura ajuda a desconstruir isso afirmando que cometemos uma injustiça para conosco mesmos ao conceber Deus dessa maneira punitiva — o que era chocante para qualquer um naquela época. Só podemos conhecer qualquer coisa sobre Deus através do autoconhecimento que, em sua origem, é o amor de Deus por nós. O texto diz que nós, seres humanos, “somos a obra de arte de Deus”. E que recebemos a salvação — o potencial para chegar à plenitude da união com Deus — através da fé e como “dom de Deus”.

A questão de Deus é sempre uma questão acerca nós mesmos. A maneira como acreditamos nEle revela o que realmente pensamos sobre nós. Somos um miserável e culpado pecador ou uma gloriosa obra de arte. Se pensamos ser a obra de arte, então Deus deve olhar para nós da mesma maneira que um artista olha sua obra-prima: não como um objeto artístico com uma etiqueta de preço, mas como uma extensão de si mesmo.

Como sempre, o evangelho condensa todas essas ideias numa única e simples questão: Jesus e seu significado para nós. Nele vemos que Deus nos ama, nós que somos sua criação; tanto que é incapaz de ser cruel para com ela. Muito pelo contrário: ele se humilha como um amante apaixonado, abrindo mão de sua dignidade e direitos, amando sua obra incompleta até a perfeição. Se conseguirmos nos ver como sua obra de arte, recebendo o dom de sua atenção continuamente criativa, nos depararemos com o que a perfeição humana realmente significa.

Uma artista se afasta de sua obra e a contempla. Ela intervém, mas não interfere em sua identidade emergente. E embora a obra ainda seja imperfeita, a artista se apaixona pelo trabalho de suas mãos. Enquanto ainda trabalha na obra, ela sabe que a beleza e a verdade de sua criação vêm, na verdade, de si mesma. E que descanso sabático quando o trabalho termina! E que obra perfeita quando ela se volta para o divino artista e lhe diz “obrigada por ter me criado”.]

Texto em inglês 

IMG_20180304_153405871 [The Bible thinks that only the ‘fool says in his heart there is no God above’. But calling the atheist a fool doesn’t help the discussion today. The importance of believing in God today is not that we avoid being burned at the stake in a theocratic tyranny but so that we remember the equally important questions about human existence and meaning. Without a connection with the living symbol of transcendence we cannot fulfil our human-ness.

The first reading uses the familiar metaphor of God’s wrath descending on those who are unfaithful to the Covenant. It is still a metaphor that many take seriously because it offers an easy explanation for the mystery of suffering and gives the believer a sense of superiority over those he condemns for disobeying God. If we don’t decode the metaphor we end up with the Taliban.

The second reading helps to deconstruct this by stating – shockingly to anyone at that time – that we do an injustice to ourselves by thinking of God in this punitive way. We can only know anything about God through the self-knowledge which at source is God’s love for us. The text says that we, the human, ‘are God’s work of art’. And, that we receive salvation – the potential to come to fullness of being in union with God – through faith and as a ‘gift from God. The question of God is always a question about ourselves. The way we believe in God reveals what we really think about ourselves. Are we a miserable guilty sinner or a glorious work of art. If the work of art, then God must look on us as an artist looks at his masterpiece, not as an art object with a price tag but as an extension of himself.

As always, the gospel condenses all these ideas into the single, simple question of Jesus and of his meaning for us. In him we see that God loves us, his creation, so much that he is incapable of being cruel to it. On the contrary, he humiliates himself as a passionate lover does, discarding dignity and rights, loving the incomplete work into perfection. If we can see ourselves as his work of art, receiving the gift of his continuously creative attention, we have stumbled upon what human perfection really means.

The artist stands back from her work and contemplates it. She intervenes but does not interfere with its emerging identity. While it is still imperfect, she falls in love with it. While still working on it she knows that its beauty, its truth, is her own. What a Sabbath rest when it is finished. What a perfect work when it looks back at the divine artist and says thank you for making me.]

Neopelagianismo e neognosticismo: as falsas concepções da salvação cristã hoje

Pela
Marcospoorman’s Blog – WordPress.com: O nome pelagianismo tem sua origem a partir de um monge britânico que se engajou num debate ardente com Agostinho na igreja primitiva.

[Foi publicada nessa quinta-feira, 1º de março, a carta da Congregação para a Doutrina da Fé Placuit Deo (disponível aqui, em português) dirigida “aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da salvação cristã”. O documento é assinado por Dom Luis Francisco Ladaria Ferrer e Dom Giacomo Morandi, respectivamente prefeito e secretário do dicastério.

O texto pretende aprofundar o ensinamento da salvação em Cristo em um momento de transformações culturais que tornam mais difícil, para o ser humano de hoje, a compreensão do anúncio cristão que “proclama Jesus o único Salvador de todo o homem e da humanidade inteira”.

Em particular, ressaltam-se duas tendências do mundo contemporâneo: a primeira é um “individualismo centrado no sujeito autônomo”, cuja “realização depende apenas somente das suas forças”, que vê Cristo como um “modelo que inspira ações generosas”, mas não como “Aquele que transforma a condição humana, incorporando-nos em uma nova existência reconciliada com o Pai e entre nós, mediante o Espírito”.

A segunda tendência aponta para “uma salvação meramente interior”, que “talvez suscita uma forte convicção pessoal ou um sentimento intenso de estar unido a Deus, mas sem assumir, curar e renovar as nossas relações com os outros e com o mundo criado”. Uma perspectiva que não capta o sentido da Encarnação do Verbo.

Pelagianismo [1] e gnosticismo [2]

Papa Francisco – afirma a carta – muitas vezes se referiu a essas duas tendências: trata-se de “dois desvios” que “se assemelham em alguns aspectos a duas antigas heresias, isto é, o pelagianismo e o gnosticismo”. São “erros antigos” que, no entanto, “representam perenes perigos de equívocos da fé”, mesmo em contextos históricos diferentes.

Em uma nota, recordam-se os conteúdos dessas duas heresias: “De acordo com a heresia pelagiana, desenvolvida durante o século V ao redor de Pelágio, o homem, para cumprir os mandamentos de Deus e ser salvo, precisa da graça apenas como um auxílio externo à sua liberdade”, mas “não como uma sanação e regeneração radical da liberdade, sem mérito prévio, para que ele possa realizar o bem e alcançar a vida eterna”.

Já o movimento gnóstico, que surgiu nos séculos I e II, conheceu formas muito diferentes entre si. “Em geral, os gnósticos acreditavam que a salvação é obtida através de um conhecimento esotérico ou ‘gnose’. Esta gnose revela ao gnóstico sua essência verdadeira, isto é, uma centelha do Espírito divino que habita em sua interioridade, que deve ser libertada do corpo, estranho à sua verdadeira humanidade. Somente assim o gnóstico retorna ao seu ser originário em Deus, de quem ele afastou-se pela queda original”.

O neopelagianismo de acordo com Francisco

A carta se refere, sem citá-lo por extenso, ao discurso do papa em Florença aos representantes do 5º Congresso Nacional da Igreja Italiana, em 10 de novembro de 2015. Um discurso que convém ser lembrado neste contexto.

Francisco apresenta essas duas tendências como tentações dentro da Igreja. A tentação pelagiana – dissera – “nos leva a ter confiança nas estruturas, nas organizações, nos planejamentos perfeitos por serem abstratos. Muitas vezes, também nos leva a assumir um estilo de controle, de dureza, de normatividade. A norma dá ao pelagiano a segurança de se sentir superior, de ter uma orientação precisa. Nisso, ele encontra sua força, não na leveza do sopro do Espírito. Diante dos males ou dos problemas da Igreja, é inútil buscar soluções em conservadorismos e fundamentalismos, na restauração de condutas e formas superadas que nem mesmo culturalmente têm capacidade de serem significativas. A doutrina cristã não é um sistema fechado incapaz de gerar perguntas, dúvidas, interrogações, mas é viva, sabe inquietar, sabe animar. Tem um rosto não rígido, tem corpo que se move e se desenvolve, tem carne macia: a doutrina cristã se chama Jesus Cristo. A reforma da Igreja, então – e a Igreja é sempre reformada –, é alheia ao pelagianismo. Ela não se esgota no enésimo plano para mudar as estruturas. Em vez disso, ela significa se enxertar e enraizar em Cristo, deixando-se conduzir pelo Espírito. Então, tudo será possível com gênio e criatividade”.

O neognosticismo nas palavras do papa

tentação do gnosticismo – recordava ainda o papa em Florença – “nos leva a confiar no raciocínio lógico e claro, que, porém, perde a ternura da carne do irmão. O fascínio do gnosticismo é o de ‘uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos’ (Evangelii gaudium, 94). O gnosticismo não pode transcender. A diferença entre a transcendência cristã e qualquer forma de espiritualismo gnóstico está no mistério da encarnação. Não pôr em prática, não levar a Palavra à realidade significa construir sobre a areia, permanecer na pura ideia e degenerar em intimismos que não dão fruto, que tornam estéril seu dinamismo”.

Mediação salvífica da Igreja

Voltando ao texto da carta, afirma-se que “tanto o individualismo neopelagiano quanto o desprezo neognóstico do corpo descaracterizam a confissão de fé em Cristo, único Salvador universal” e “contradizem a economia sacramental, através da qual Deus quis salvar a pessoa humana”. “O lugar onde recebemos a salvação trazida por Jesus é a Igreja”: compreender “essa mediação salvífica da Igreja é uma ajuda essencial para superar qualquer tendência reducionista”.

A salvação “não é alcançada apenas pelas forças individuais, como gostaria o neopelagianismo, mas através das relações nascidas do Filho de Deus encarnado e que formam a comunhão da Igreja”. Além disso, ao contrário da visão neognóstica de “uma salvação meramente interior”, a Igreja “é uma comunidade visível: nela tocamos a carne de Jesus, de maneira singular nos irmãos mais pobres e sofredores”, através das “obras de misericórdia corporais e espirituais”.

Missão e diálogo

“A consciência da vida plena, na qual Jesus Salvador nos introduz, impulsiona os cristãos à missão de proclamar a todos os homens a alegria e a luz do Evangelho. Neste esforço, eles estarão também prontos para estabelecer um diálogo sincero e construtivo com os crentes de outras religiões, na confiança que Deus pode conduzir à salvação em Cristo ‘todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente’. Ao dedicar-se com todas as suas forças à evangelização, a Igreja continua a invocar a vinda definitiva do Salvador”, porque – como diz São Paulo aos Romanos – “na esperança fomos salvos”.

E conclui: “A salvação integral, da alma e do corpo, é o destino final ao qual Deus chama todos os homens”.]

A reportagem é de Sergio Centofanti, publicada por Vatican News. A tradução é de Moisés Sbardelotto, in IHU Unisinos.

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 Notas

[1] Pelagianismo – doutrina de convicção dos pelagianos, segundo a qual o homem era totalmente responsável por sua própria salvação e que minimizava o papel da graça divina.

[2] Gnosticismo – movimento religioso, de caráter sincrético e esotérico, desenvolvido nos primeiros séculos de nossa era à margem do cristianismo institucionalizado, combinando misticismo e especulação filosófica; qualquer conhecimento místico das verdades divinas e transcendentes que se referem à condição espiritual do ser humano.

 

A falsa paz

A Paz
Bispo Rodovalho

[Existe uma falsa paz que vem meramente da impressão de que estamos no controle e que podemos explicar tudo que está acontecendo. É o que Jesus chamou de “paz como o mundo dá”, e a distinguiu de sua própria paz, que concede como dádiva. Como todas as dádivas de uma fonte verdadeiramente autêntica, ela é sem condições, independentemente de o beneficiário – nós – merecer ou não.

A paz como o mundo dá se degrada e é facilmente dissolvida, deixando-nos confusos, assustados e raivosos. Algo com que contávamos não existe mais, e seu desaparecimento mina nossa confiança na benevolência do universo. Já não podemos ter certeza de que a vida vai nos tratar de forma justa. Qualquer infortúnio pode causar essa ruptura da paz. Pode ser a perda de uma epifania de amor, na qual tínhamos cautelosamente nos permitido acreditar e que achávamos que duraria para sempre. Pode ser um diagnóstico médico inesperado, ou uma carta dizendo que nos tornamos redundantes. Em instantes, a paz que nos deu um amortecedor, para superar os pequenos solavancos da vida com um sorriso, desaparece numa lufada de ar. Aterrissamos com uma pancada dura em uma terra que de repente tornou-se difícil e inóspita.

Pior de tudo, não faz sentido. As trivialidades religiosas podem dar alívio temporário: Deus trabalha de maneiras misteriosas. Temos que aceitar o áspero com o suave. Jesus também sofreu desse jeito. Não é que elas são falsas, mas continuam sendo trivialidades insípidas, sem fundamento e anêmicas, até que tenhamos vivenciado seu significado. Uma vez que o tenhamos, podemos usá-las com moderação.

Não há explicação. Pelo menos, nenhuma que leve em conta toda a gama de destinos humanos, incluindo a comédia e a tragédia da vida. As explicações buscam a harmonia e apresentam uma visão ordenada das coisas. Como na música, relaxamos na harmonia e permitimos que nos acalme. Bach tem muitas seções em suas gloriosas harmonias nas quais propositalmente perturba o equilíbrio e, por um tempo, promove caos na mente do ouvinte. Estes são os momentos em que ele deliberadamente apresenta a dissonância. Parece que as coisas desmoronam, bem quando estavam tomando uma bela forma. Por que ele faz isso: seria ele na verdade um cínico dissimulado rindo de nossa credulidade por acreditarmos em harmonias supremas? Ou está revelando o segredo sombrio de que tudo acabará em caos.

Essas explicações, sobre o porquê Bach às vezes nos nega a harmonia da explicação, não confluem com a fé profunda que permeia sua música. Seu uso de dissonância pode ser uma expressão de que o inexplicável deve ser aceito tanto quanto o previsível e todas as explicações ordenadas que gostamos que nos protejam. Mas nenhum deles é completo ou real, a menos que possam coexistir com o que é às vezes sem sentido e que resiste a qualquer razão. Uma mãe que perdeu dois filhos em um acidente de carro não deve ter de ouvir de um jovem padre, ansioso para suavizar essa dissonância fatal, “Não se preocupe, eles estão em um lugar melhor”. Não existe uma explicação fidedigna que não respeite a inexplicabilidade das coisas.

Nossas disciplinas Quaresmais são uma espécie de dissonância controlada que pode nos ensinar isso em escala reduzida. O mesmo acontece com o refluxo e o fluxo de percepção na meditação diária ao longo dos anos.]

Texto original em inglês

[There is a false peace which comes merely from the feeling that we are in control and can explain everything that is happening. It is what Jesus called ‘peace as the world gives it’ and he distinguished it from his own peace which he bestows as gift. Like all gifts from a truly authentic source it is without conditions, regardless of whether the beneficiary – us – deserve it or not.

Peace as the world gives it breaks down and is easily dissolved leaving us confused, frightened and angry. What we had relied on is no longer there and its disappearance undermines our trust in the benevolence of the universe. We can no longer be sure we will be treated fairly by life. Any number of misfortunes may cause this breakdown of peace. It might be the loss of an epiphany of love that we had cautiously allowed ourselves to believe in and felt would last forever. It could be an unexpected medical diagnosis or a letter telling us we are made redundant. In a moment the peace which gave us a cushion, on which to ride out the small bumps of life with a smile, is gone in a puff. We land with a hard bump on an earth that has suddenly become hard and inhospitable.

Worse of all it makes no sense. Religious platitudes may give temporary relief: God works in mysterious ways. We have to take the rough with the smooth. Jesus suffered like this too. It is not that they are untrue but they remain tasteless platitudes, ungrounded and bloodless, until we have experienced their meaning. Once we have, we may use them, sparingly.

There is no explanation. At least none that takes account of the full range of human destiny including the comedy and the tragedy of life. Explanations seek harmony and present an orderly view of things. As in music, we relax into harmony and allow it to soothe us. Bach has many sections in his glorious harmonies where he tips this apple cart over and, for a while, lets the apples roll chaotically around the listening mind. These are the times when he deliberately introduces dissonance. It sounds as if things fall apart, just as they were taking beautiful shape. Why does he do this: is he really a secret cynic laughing at our gullibility for believing in ultimate harmonies? Or is revealing the dark secret that it will all end in chaos.

These explanations of why Bach sometimes denies us the harmony of explanation do not flow with the deep faith that pervades his music. His use of dissonance might be a statement that the inexplicable has to be accepted just as much as the predictable and all the orderly explanations we like to protect us. But none of these are complete or real unless they can co-exist with what is at times senseless and resists being given any reason. A mother who has lost two children in a car accident should not be told by a young priest eager to smooth away this fatal dissonance, ‘don’t worry, they are in a better place.’ There is no trustworthy explanation that does not respect the inexplicability of things.

Our Lenten disciplines are a sort of controlled dissonance that can teach us this in a small way. So does the ebb and flow of feeling in daily meditation over the years.]

Laurence Freeman, in Comunidade Mundial para a Meditação Cristã

O amor em tempo de quaresma

Eros
Ilustração: Valle de Sensaciones

[Na Idade Média, esperava-se que os católicos fizessem abstinência de carne, laticínios e sexo durante a Quaresma. Na tradição judaica, a moral sexual possui uma ideia bem diferente da ascese sexual. Há uma atitude mais comemorativa em relação ao sexo, que se reflete em considerar o Shabbat como o dia em que se espera que um casal casado faça sexo. As atitudes sobre sexo são condicionadas culturalmente.

Universalmente, sexo é um assunto tão delicado e difícil de ser regulado por estar entrelaçado com nossa necessidade de amor e senso da beleza. Bede Griffiths achava que é tão perigoso dar expressão irrestrita à energia sexual quanto reprimi-la. A única solução, ele dizia, é encará-la como uma energia sagrada, do modo como fizeram muitas das grandes tradições espirituais, capaz de nos transformar se lidarmos bem com ela. Mas como?

Qualquer tipo de amor, segundo Tomás de Aquino, é uma “analogia da participação” no amor divino. A teologia aqui é bela e integral. Eros é divino, pertence à vida de Deus, porque é um aspecto e uma manifestação do amor. O difícil é acreditar nisso e vivenciar esta crença no contexto de nossas vidas, junto com as inconsistências de nossa personalidade.

Muitas das pessoas mais amorosas e generosas do mundo não têm suas energias sexuais harmonizadas desta maneira ideal. Elas lutam com medo e culpa, excesso ou coercitividade. Mas, se forem honestas com elas mesmas, esta luta poderá torná-las mais humildes e, assim, criar espaço para a graça e a sabedoria fluírem nelas e até através delas.

A sexualidade é uma energia sensível e inefavelmente íntima. Ela nos conduz implacavelmente à união com outros, mas, muitas vezes dolorosamente, nos afasta deles: uma fonte de beatitude e, frequentemente, de angústia. É estranho, então, que nós sejamos tão cruéis e moralistas em relação às falhas ou indiscrições sexuais dos outros. Por nós, vamos incluir aqui muitos cristãos e a maior parte da mídia. Talvez isso ocorra porque a exposição de uma falha ou erro sexual de uma pessoa ameace expor algo semelhante de todas as pessoas. “Nós” defendemos e protegemos a nós mesmos atacando aqueles que já falharam e foram banidos.

Esta cultura de julgamento poderia ser uma coisa boa a se observar e apreender na nossa reflexão diária sobre o que fizemos e o que não conseguimos fazer. Mas então temos de agir para reduzi-la. Damos às pessoas o benefício da dúvida? Nós automaticamente aderimos ao clamor da multidão contra seu mais recente bode expiatório? Projetamos nossa própria humilhação numa condenação aos outros? Somos capazes de ver quanto de nosso julgamento dos outros provém, não de uma decisão bem pensada, mas de nossa absorção das opiniões da mídia, das “notícias”?
Afastar-se da multidão é uma necessidade espiritual essencial para nossa integração e para termos compaixão. Mas, para isso, precisamos encarar um segredo ainda mais perigoso do coração humano, que é a solidão.]

Texto original em inglês

[In the middle ages Catholics were expected to refrain from meat and dairy products and sex during Lent. Jewish tradition has a sexual morality with a very different idea of sexual ascesis. It has a more celebratory attitude to sexuality which is reflected in seeing the Shabbat as a day when a married couple are expected to have sex. Attitudes to sex are culturally conditioned.

Yet universally sex is such a delicate subject and difficult to regulate because it is so intertwined with our need for love and with our sense of beauty. Bede Griffiths thought that it was equally dangerous to give unrestricted expression to sexual energy as to repress it. The only solution, he said, was to see it as a sacred energy, as many of the great spiritual traditions have done, capable of transforming us if we handle it well. But how?

Any kind of love, according to Thomas Aquinas, is a ‘similarity of participation’ in divine love. The theology here is beautiful and integral. Eros is divine, belonging in the life of God, because it is an aspect and manifestation of all love. The difficult thing is believing it and then living the belief in the context of our lives along with the inconsistencies of our own character.

Many of the most loving and generous people in the world have not got their sexual energy harmonised in this ideal way. They struggle with fear and guilt, excess or compulsiveness. But if they are honest with themselves this struggle itself can humble them and so create spaces for grace and wisdom to flow in and eventually through them.

Sexuality is a sensitive and ineffably intimate energy. It relentlessly drives us to union with others but also often and painfully separates us from them: a source of bliss but often of anguish. It is odd, then, that we can be so cruel and high-minded towards other’s sexual faults or indiscretions. By we, let’s include many Christians and most of the media. Perhaps the reason for this is that when a sexual fault is exposed in one person it threatens to expose something of the same kind in everyone. ‘We’ defend and protect ourselves by attacking those who have already failed and been cast out.

This judgementalism might be a good thing to observe and arrest in our daily reflection on what we have done or failed to do. But then we have to act to reduce it. Do we give people the benefit of the doubt? Do we automatically join in the jeers of the crowd as it turns on its latest scapegoat? Do we project our own shame into a condemnation of others? Can we see how much of our judgeing of others comes not from our own considered decision but through our absorption of the opinions of the media, the ‘news’.

Stepping outside the crowd is a spiritual necessity essential for integrating ourselves and for being compassionate. But to do it we must face an even more dangerous secret in the human heart which is loneliness.]

D. Laurence Freeman

Ascetismo

Existe uma tradição na parte mais exótica da tradição ascética Cristã, desde os bons velhos tempos quando asceticismo significava negócios, de ficar em pé em água gelada para resfriar as paixões enquanto se recitava os salmos. Por paixões, eles se referiam não apenas às óbvias carnais mas geralmente a todos os hábitos e estados da mente desordenados e desequilibrados.

Normalmente a estrita moderação parece ser a melhor forma de reajustar o sistema mas, da mesma forma que alguns países usam austeridade extrema para melhorar a economia, alguns indivíduos também preferem banhos gelados que levam a noite toda.

Existe outro elemento nestas histórias, porém, que as tornam menos sensacionais e mais significativas. É frequentemente descrito que alguém uma vez testou a água sobre a qual os ascéticos estavam para verificar quão gelada ela estava e descobriu que, na realidade, a água estava quente. A energia da oração tinha aquecido a água. Isso ecoa os contos dos monges Tibetanos que se sentam nos Himalaias envoltos em mantas úmidas e geladas e as esquentam pelo poder físico-mental até que estejam secas pelo vapor.

A maioria de nós é um pouco estranha, verdade seja dita, de forma que nós normalmente não tornamos públicas, então não devemos ser ligeiros em julgar ou ridicularizar aqueles que gostam de fazer estas coisas. A maior parte das pessoas não quer inventar ou enfrentar voluntariamente sofrimentos deste tipo mesmo que de fato ajudem a desenvolver autocontrole e o treinamento pessoal. Os atletas talvez entendam melhor isso. Mas talvez exista uma lição para os mais convencionais e, assim esperamos, mais moderados entre nós também.

É a mensagem de que podemos radicalmente transformar situações difíceis pela aceitação, resiliência e atenção duradoura durante estas situações. A descoberta de uma doença séria pode evocar o medo presente da morte, mas depois pode conduzir, através deste medo, ao poder do amor e produzir a compaixão pelos outros, na qual o medo da morte se dissolve. Um vício destrutivo pode ameaçar destruir nossa vida e depois evoluir para a descoberta da liberdade interna e da alegria. O mais angustiante senso de ausência, como depois da perda de alguém que amamos, pode gradualmente abrir-se como uma flor em uma nova forma de presença íntima. E a morte pode levar à ressurreição.

Mais importante do que rezar para que o inevitável seja tirado de nós – pedindo pela suspensão das leis da natureza – é a oração para ter resistência e ficar alerta – que é o tema da Quaresma.

E mais importante do que isso, como os grandes mestres do deserto aconselharam, é rezar pelo dom da própria oração verdadeira.

Nós precisamos, no entanto, aprender a rezar – assim como aprendemos a andar ou conversar.

Texto original em inglês

There is a tradition in the more exotic part of Christian ascetical tradition, from the good old days when ascetics meant business, of standing in icy water to cool off the passions while reciting the psalms. By passions, they meant not only the obvious carnal ones but generally all disordered and unbalanced habits or states of mind. Usually strict moderation seems to be the best way to re-set the system but, just as some countries use extreme austerity to improve the economy, so some individuals preferred cold nightlong baths.

There is another element in these stories, however, which make them less sensational and more significant. It is often described how someone tested the water the ascetics had just been standing in to see how cold it was and found it was in fact very warm. The energy of prayer had heated the water. This echoes the quite well-authenticated tales of Tibetan monks who sit in the Himalayas wrapped in cold wet blankets and heat them up by mental-physical power until they steam dry.

Most of us are a bit strange, if true be told, in ways that we normally don’t make public, so we should not be too quick to judge or ridicule those who like to do such things. Most people don’t want to invent and endure voluntary suffering of this kind even if it does develop self-control and personal training. Athletes might understand them better. But perhaps there is a lesson for the more conventional and, hopefully, more moderate among us as well.

It is the message that by acceptance, resilience and strong attention in the midst of difficult situations we can radically transform them. The discovery of a serious illness can evoke crippling fear of death but then lead through that fear to powerful love and produce compassion for others, in which the fear of death dissolves. A destructive addiction can threaten to wreck our life and then evolve into the discovery of inner freedom and joy. The most anguished sense of absence, as after the loss of someone we love, can gradually open like a flower into a new kind of intimate presence. And death can lead to resurrection.

More important then praying to have the unavoidable taken away from us – asking for a suspension of the laws of nature – is the prayer to endure and stay awake – what Lent is about. 

And more important than that, as the great desert teachers advised, is to pray for the gift of true prayer itself.

We have, however, to learn to pray – just as we learn to walk or to talk.

Laurence Freeman, in http://www.wccm.org.br/quaresma-2018/669-quarta-feira-da-segunda-semana-da-quaresma