“Que espaço sobrou para uma política dos trabalhadores na democracia moderna?”

Marx
Wikipédia

[O último sábado foi o bicentenário de Karl Marx. É uma oportunidade para discutir a relação do pensamento de Marx com o maior partido de esquerda da história do Brasil, o Partido dos Trabalhadores. [1]

Há um trabalho interessantíssimo de história intelectual ainda a ser escrito mostrando a influência de autores marxistas heterodoxos e pós-marxistas sobre o PT. Eurocomunistas gramscianos, autonomistas adeptos das ideias do grupo francês “Socialisme ou Barbarie” (socialismo ou barbárie), admiradores dos “operaistas” italianos, todos tinham em comum características que marcaram muito a experiência petista: a preferência pelos movimentos de base, em vez das vanguardas teóricas leninistas, e a recusa do economicismo característico do marxismo ortodoxo. A crítica ao leninismo era um retorno a Marx. A crítica do economicismo era uma correção feita ao velho comuna.

O artesanato ideológico envolvido na construção de um partido tão heterogêneo foi difícil, mas produziu um resultado muito positivo: o PT não apoiou o totalitarismo soviético. Quando Gorbachev, em 1991, sofreu um golpe da velha guarda comunista, a Folha publicou, na página 3, dois artigos: o do presidente do PCdoB, João Amazonas, tinha o título “Uma Notícia Alvissareira”. Pelo lado do PT, o petista José Genoino defendia o processo de democratização e se opunha ao golpe. O PT ficou do lado certo.

Mas a independência do PT frente ao socialismo real teve ao menos duas consequências ruins.

Em primeiro lugar, desobrigou o PT de fazer a autocrítica que o PCB, por exemplo, não conseguiu evitar. Embora não apoiasse os outros regimes do socialismo real, o PT apoiava o castrismo. Eventualmente, a “exceção” que era o apoio ao regime cubano abriu as portas para o apoio ao regime chavista, a maior culpa da história do Partido dos Trabalhadores. Diferentemente de várias outras, ela é explicável exclusivamente por defeitos do próprio PT.

Em segundo lugar, as ideias marxistas heterodoxas ou pós-marxistas que influenciaram o PT tinham também seus problemas. O marxismo ortodoxo é, como se sabe, bastante economicista (e o próprio Marx gostava bastante de economia). Na reação a isso, os marxistas ocidentais produziram análises que enfatizavam a importância da política e da cultura na vida social. Grandes obras foram escritas sob essa perspectiva, mas a nova esquerda passou a ter um déficit de reflexão econômica do qual o PT até hoje se ressente.

Mas o principal interesse da história petista para a reflexão do bicentenário é outra. O PT, até mais do que os partidos de esquerda do primeiro mundo, tem que resolver, na prática, questões que estão no centro da discussão do bicentenário.

O PT, bem mais que os outros partidos de esquerda brasileiros, continua sendo o partido dos sindicatos. O que fazer com essa herança? Como organizar uma classe trabalhadora que não é mais a da indústria fordista? Que espaço para a política sobrou agora que a produção é global? Como garantir que a automação gere tempo livre e não miséria? Que espaço sobrou para uma política “dos trabalhadores” na democracia moderna?

Essa questão é especialmente importante porque, desde que as formas anteriores de política dos trabalhadores entraram em crise, a democracia moderna não anda lá muito bem. Nem a nossa nem nenhuma.]

Leia mais

Governos Lula e Dilma e o mundo do trabalho doze anos depois. Revista IHU On-Line, Nº 441

Partido dos Trabalhadores, 10 anos no poder. Um governo de esquerda? Revista IHU On-Line, Nº 413

Os Grundrisse de Marx em debate. Revista IHU On-Line, Nº 381

PT quer eleição popular no Judiciário e referendo para revogar todas as medidas de Temer

‘A dúvida da esquerda é se a renovação será dentro ou fora do PT’

O PT sem Lula. Artigo de Rudá Ricci

Por que Marx, no século 21? Artigo de Yánis Varoufákis

“Karl Marx se mantém extremamente atual”. Entrevista com Martin Endress

Marx no seu bicentenário

Marx hoje: o fim está próximo… apenas não da forma que imaginávamos

A esquerda pós-PT: “Chega uma hora em que a realidade precisa vencer o medo”. Entrevista especial com Rodrigo Nunes

O processo de renovação da esquerda é atravancado pela ‘renovada’ hegemonia do PT. Entrevista especial com Pablo Ortellado

10 anos de PT no governo e o desafio de uma esquerda socialista de massas. Entrevista especial com Valter Pomar

“O PT tem que fazer sua autocrítica, se explicar”. Entrevista com Olívio Dutra

O PT não é comunista

“O PT não defende a causa da esquerda. Nem a do país”. Entrevista com Ruy Fausto

Nota

[1] Este texto foi capturado da Folha de São Paulo publicado no site   IHU/Unisinos – “O PT no bicentenário de Marx,

[“O principal interesse da história petista para a reflexão do bicentenário de Marx é que o PT, até mais do que os partidos de esquerda do primeiro mundo, tem que resolver, na prática, questões que estão no centro da discussão do bicentenário. O PT, bem mais que os outros partidos de esquerda brasileiros, continua sendo o partido dos sindicatos. O que fazer com essa herança? Como organizar uma classe trabalhadora que não é mais a da indústria fordista? Que espaço para a política sobrou agora que a produção é global? Como garantir que a automação gere tempo livre e não miséria? Que espaço sobrou para uma política “dos trabalhadores” na democracia moderna?”, questiona Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 07-05-2018.]

 

Os índios bem que insistiram, mas nós não aprendemos nada com eles

Luta_indigena
Xingu (peuple) – Wikiwand- wikiwand.com

O jornalista Washington Novaes conta uma história interessante de quando de sua primeira ida a uma aldeia indígena.

Novaes é hoje um jornalista ambientalista, com ligações com o indigenismo, o que quer dizer mais ou menos a mesma coisa – indigenismo = ambientalismo.

Conta Novaes que quis tomar um banho nessa sua primeira visita, e buscou se dispor que toda parafernália que costumamos usar nessas ocasiões, apenas não abrindo mão da toalha, do sabonete, do calção e do chinelo.

Vale ressaltar aqui que normalmente as “casas de banho” (como se diz em Portugal) indígenas são rios ou lagos e normalmente ficam em áreas mais baixas que os aldeamentos.

Ao descer para o “banho”, o jornalista deparou-se com um indígena que estava subindo, já banhado, todo nu, sem sabonete, toalha, chinelo e calção.

Trata-se de uma cena extraordinária, uma lição sem palavras, sem discursos e sem afetações.

Uma lição dada por quem vive sem pudor, sem os filtros sociais e religiosos que costumamos carregar por nossas vidas.

Numa de minhas primeiras idas a aldeias indígenas (quando ainda atuava no Cimi – Conselho Indigenista Missionário), neófito, portanto, busquei igualmente um lugar para me banhar.

Um dos índios indicou-me o lugar, um lago, mas para minha surpresa banhavam-se no mesmo local meninos e meninas e algumas mulheres.

Meu filtro moral indicou-me que voltasse para a aldeia sem me banhar.

Os indígenas, principalmente os homens, se divertiram um bocado com a história.

A questão indígena e a nossa incapacidade de compreendê-los, no entanto, não se resumem a simples banhos ou festas, como se vê na foto acima.

No link que pode ser acessado aqui (https://www.youtube.com/watch?v=XKxO1Px4F5s&t=495s) o professor Sergio Lessa mostra como o Capitalismo se apropria do conhecimento e das práticas das sociedades primitivas, transformando-as em valor e marginalizando homens e mulheres, pois no sistema capitalista não há lugar para todos.

Abusadamente acrescento um remendo ao que diz o professor Lessa, lembrando que as experiências socialistas, como por exemplo, a soviética e a chinesa, foram pródigas no desrespeito e na violência contra as sociedades primitivas, como foram os casos da violenta repressão à religiosidade xamânica, na URSS, e a invasão do Tibet pela China.

A questão, portanto, parece ser de outra ordem, não de sistema (capitalista ou socialista) mas de modelo (desenvolvimentista).

O que choca, sejam capitalistas, sejam socialistas, é a capacidade que as sociedades primitivas têm de partilhar, de tornar tudo (cultura e bens) “coisas comuns”, a serem comungadas, comunistas, de todos para todos, indistintamente.

Daí ser possível entender a razão dos massacres perpetrados pelos europeus nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania.

“O Capital de Karl Marx: uma crítica sólida ao capitalismo”

KM
Créditos da foto: UMass Amherst

[Nas últimas décadas, passaram-se acontecimentos contraditórios. Por um lado, o colapso do comunismo na URSS e na Europa Oriental produziu narrativas de fim da história que tentaram naturalizar o capitalismo como a melhor solução social possível, mesmo que humanamente falível. Por outro, a forma neoliberal do capitalismo que dominou o mundo desde o início da década de 1980 exacerbou as profundas e persistentes desigualdades de salário, riqueza e poder, acelerou os problemas de degradação ambiental e mergulhou a economia mundial numa crise económica e financeira profunda e duradoura em 2008, indiscutivelmente a pior crise económica do capitalismo desde a Grande Depressão da década de 1930. É no contexto desse movimento contraditório da história recente que precisamos revisitar o trabalho do maior crítico e analista do capitalismo, Karl Marx.

Nascido em Trier, na Alemanha, em 1818, numa família de classe média, o jovem Marx começou a ter contacto com as ideias radicais do socialismo francês graças ao pai e ao futuro sogro. Depois de obter o doutoramento em Filosofia pela Universidade de Jena em 1841, e sem poder exercer uma posição académica graças às suas ideias políticas radicais, começou a trabalhar para um jornal democrático em Colónia, o Rheinische Zeitung. Como comentador e editor de um jornal muito popular, Marx foi confrontado com questões de “interesse material”, como o comércio internacional e tarifas, a condição do campesinato no vale do rio Mosela, o acesso a recursos de propriedade comum como lenha por parte dos pobres. O treino anterior de Marx em Filosofia, História, Clássicos, Jurisprudência, Literatura, não lhe permitiu envolver-se adequadamente com tais questões de interesse material. Assim, quando a oportunidade surgiu, em 1844, sob a forma de um desacordo com os apoiantes da classe média sobre o conteúdo democrático do jornal, renunciou à redação do Rheinische Zeitung e iniciou um longo estudo sobre economia política. Mas por que economia política?

O período entre 1844 e 1848 que Marx devotou a um intenso estudo foi dividido em três pontos: uma reavaliação da filosofia alemã clássica, especialmente hegeliana; um engajamento crítico com as ideias francesas do socialismo; e um estudo introdutório de economia, especialmente economia clássica proveniente do mundo anglo-saxônico. Este foi um período formativo para o futuro desenvolvimento intelectual de Marx. As conclusões que alcançou durante esta altura acompanharam-no durante o resto da vida e guiaram a sua trajetória intelectual.

A primeira conclusão pode ser chamada conceção materialista da história, que afirma que, para entender a entidade complexa a que chamamos sociedade, é preciso compreender a estrutura da sociedade civil, ou seja, a totalidade da vida material; e, para fazê-lo, é preciso usar as ferramentas da economia política. A segunda conclusão pode ser denominada dialética, que afirma que, para entender a grande escala, a mudança histórica na sociedade, é preciso identificar as principais contradições na sociedade civil. Essas contradições, além disso, são a contradição entre classes sociais fundamentais.

Aqui, então, temos uma resposta à pergunta “por que economia política?” Marx abordou o estudo da economia política, porque isso lhe permitiria entender a “anatomia da sociedade civil”, um passo fundamental para entender a estrutura da sociedade burguesa contemporânea. Além disso, orientou os seus estudos em economia política para uma investigação das “categorias que compõem a estrutura interna da sociedade burguesa e sobre as quais as classes fundamentais descansam” porque as contradições entre as “classes fundamentais”, o seu ponto de vista filosófico dialético combinado com a sugerida conceção materialista da história, tinha a chave para a mudança histórica de grande escala da sociedade burguesa. Essas conclusões forneceram as categorias para estudar a estrutura interna da sociedade burguesa – capital, trabalho assalariado e propriedade – e tornaram-se nas principais categorias de análise na sua magnum opus, O Capital.

Enquanto Marx continuava os seus estudos em economia política na década de 1850, também estudou a melhor forma de apresentar os resultados das suas investigações. Algures em 1865, chegou à estrutura final de O Capital, com um trabalho de três volumes/livros que opera em dois níveis primários de abstração, “capital em geral” e “muitos capitais”. A análise ao nível do “capital em geral” é, por sua vez, dividida em dois volumes. O primeiro volume do processo de produção de capital; e o segundo do processo de circulação de capital. A análise ao nível de “muitas capitais” é apresentada num volume (Volume Três) e trata da totalidade do processo de produção capitalista. Usando a mais-valia, um dos conceitos-chave de O Capital, como princípio organizador central, também podemos pensar nos três volumes de O Capital como aqueles que lidam, respetivamente, com a criação e acumulação de mais-valia (Volume Um); a realização de mais-valia (Volume Dois); e a distribuição da mais-valia (Volume Três).

A análise nos três volumes de O Capital desenvolve ideias profundas sobre a estrutura e as dinâmicas de longo prazo do capitalismo. Mostra de que forma o capitalismo, como todas as sociedades divididas em classes, depende da exploração dos trabalhadores. Isso mostra como é que essa exploração tem a forma quantitativa de mais-valia, e como esta, por sua vez, é redistribuída através de vários canais sob a forma de lucros, juros e renda. Mostra de que forma a existência e a reprodução do exército de reserva do trabalho – o grupo de trabalhadores desempregados e subempregados e os trabalhadores potencialmente empregáveis no agregado familiar e na agricultura camponesa de subsistência – é necessária para a estabilidade do sistema capitalista. Mostra de que forma as relações capitalistas, ao mesmo tempo, revolucionam os métodos e a organização da produção, e degradam as condições de trabalho, incapacitam os trabalhadores e destroçam o meio ambiente. Em comentários dispersos, que foram posteriormente desenvolvidos de forma mais sistemática por estudiosos marxistas, mostra como é que o processo de acumulação de capital – a força dinâmica central de uma economia capitalista – é um processo intrinsecamente contraditório, de modo a que períodos de crise, como o que estamos a testemunhar desde 2008, são a norma para as sociedades capitalistas, e não as ocorrências excecionais que os economistas burgueses provavelmente conseguem.

Ainda que muitas características específicas do capitalismo tenham mudado muito nos 150 anos desde que o Volume Um de O Capital foi publicado pela primeira vez em 1867, muitas das suas características estruturais fundamentais – trabalho assalariado, competição entre capitais, mais-valia e a sua redistribuição, acumulação de capital – permanecem intactas. Assim, mesmo que uma análise do capitalismo contemporâneo tenha de ir além do que está contido nos três volumes de O Capital, esses três volumes continuam a ser um ponto de partida importante – e o melhor – para uma análise crítica do capitalismo contemporâneo, uma análise voltada para um projeto para transcender o capitalismo, fazendo parte dele.]

Deepankar Basu é economista da universidade de Massachussets com vários trabalhos no âmbito da economia marxista e também na economia política da Índia.

Tradução de Ana Bárbara Pedrosa para o esquerda.net.

 In Carta Maior.

“Gustav Landauer: El espíritu contra el Estado”

ContraoEstado
Ángel Cappelletti (1927-1995)

[Nacido en Karlsruhe, Baden, Alemania, el año de la guerra franco-prusiana, en el seno de una familia hebrea de la clase media, ingresó en la Universidad de Zurich y pasó luego a la de Berlín para seguir sus cursos de historia, arte, filosofía y germanística [405]. En la capital del Imperio a Benedikt Friedlandes, un socialista heterodoxo que se atrevía a oponer el pensamiento, tan rudamente vituperado de Dürhring, configuraban un socialismo personalista y antiestatal, basado en gran parte en la idea de la “cooperación”, con lo cual en la medida en que se alejaba de Marx se iba acercando a Proudhon. En verdad, el sistema de Dühring, como bien observa Souchy, ocupa un término medio entre el marxismo y el anarquismo [406] y, podríamos añadir, se acerca por eso mucho al “guildismo” inglés. Tales ideas, fermentadas por las más diversas corrientes de la filosofía finisecular (pero muy especialmente por la de Nietzsche) contribuyeron mucho a formar el pensamiento de algunos jóvenes rebeldes de la socialdemocracia, a los cuales se vinculó muy pronto Landauer y entre los que debe mencionar, en primer término, a Bruno Wille, autor más tarde de una original metafísica (Fausticher Monismus – 1907) y de una interpretación monista del cristianismo (die Chystusmythe als monistiche Weltanschaung – 1903) [407].

La lectura de Stirner, de Nietzsche y aún de Schopanahuer (según se revela en su primera obra, Der Todesprediger, una novela que escribió a los 21 años pero que recién se publicó en 1893) había dejado, por su parte, hondas huellas en la mente del joven Landauer. Pero quien más directa y profundamente lo influyó en él, desde el punto de vista filosófico-científico, fue el crítico del lenguaje Fritz Mauthner, según claramente se puede ver a través de su libro Skepis und Mystik – Versuche im Anschluss an Mauthners Sprachkritik (1903) [408]. Muy lejos, sin embargo de convertirse en epígono de nadie, su espíritu permaneció ampliamente abierto a todas las manifestaciones, presentes y pasadas, del pensamiento. En su semanario Der Sozialist comienza ya a traducir a Kropotkin, cuyo impulso ético admira, pero no deja de advertir los aspectos flojos y superficiales de su pensamiento. Aunque no comparte el crudo atomismo materialista de Bakunin, siente, son embargo, un mayor respeto por su solidez filosófica.

Más tarde se interesa mucho (como Sorel, dentro del campos socialista) por la filosofía de Bergson y llega a ser, a través de numerosas lecciones y conferencias, uno de sus más profundos expositores en Alemania. Su simpatía por ese “élan vital” que permitía superar la inerte materia del socialismo ortodoxo.

Landauer fue además editor y comentador del más grande los pensadores medievales: Meister Eckert, al cual, en una carta de 1899, caracteriza como: “un espíritu muy claro, muy sobrio, hasta algunas veces minucioso, en el que la vida racional superaba completamente al sentimiento; un panteísta con pensamientos extraordinariamente profundos, que nos dan la sensación de ser modernos y una prosa encantadora, hermosa y sencilla” [409]. (Cfr. Meister Sckhart’s Mystische Schriften – Berlín, 1903). Pero su fina sensibilidad lo acerca, sobre todo, a los grandes poetas: uno de los números de su semanario Sozialist (agosto de 1899) aparece dedicado enteramente a Goethe con gran escándalo, por supuesto, de los practicistas y de los espíritus estrechos. En 1917-8, pronuncia en Berlín una serie de veinte admirables conferencias sobre Shakespeare, recogidas después de su muerte en un volumen y traducidas hoy también al castellano (Shakespeare – Buenos Aires, 1947). Su original propósito aquí, queda bien definido por las palabras de una carta de 1917, donde dice que lo que busca Shakespeare es la libertad: “Libertad, por cierto, no en el sentido político relativo a las condiciones sociales dadas, nada hay que fuese más ajeno a Shakespeare; libertad más bien en lo humano, lo privado y sobre todo en aquella relación que es el eterno problema de Shakespeare, la relación entre los impulsos y el espíritu. Estar libre de fórmulas, de convenciones, sean de índole teórica o práctica” [410].

Otro gran porta inglés al que tradujo y comentó y al cual se hallaba vinculado por múltiples ideas, actitudes y sentimientos fue Oscar Wilde. En colaboración con su segunda mujer, la poetisa Hedwig Lachmann, pone en un brillante alemán The Ballado of Reading Goal, Salomé, The portrair of Dorian Gray y varios de sus ensayos, entre los que se cuenta Socialism and the soul of man. También se interesó vivamente, en lo más hondo de su pensamiento y de su alma, por Ibsen, por Holderlin, por Whitman, por Tolstoi y por Stringberg (Cfr. G. Landauer: Der werdende Mensh – Postdam 1921). En su creación literaria, con ser como es tan original, se nota el influjo de algunos de ellos, así como en Wilde (Cfr. Arnold Himmelheber, novela escrita durante su prisión en Sorau, Silesia, en 1893-4, Mach und Maechte, cuentos publicados en 1903). No se debe olvidar tampoco la figura de un gran pensador judío, muerto hace muy poco, que, a nuestro juicio, dio a Landauer tanto como recibió de él: Martín Buber. A pedido de éste escribió su obra Die Revolution (publicada en la colección Die Gesellschaft de Frankfurt, en 1907, hoy traducida al castellano: La Revolución – Bs. Aires, 1961) [411]. El héroe de este libro, dice Max Netlau, es Etiènne de la Boite, el autor del discurso sobre la servidumbre voluntaria idea que lanzó en pleno siglo XVI y que es la negativa general de ayudar a los tiranos y a los explotadores trabajando para ellos, obedeciendo sus órdenes, combatiendo a sus enemigos [412]. Y el anti-héroe, podría añadirse, es Karl Marx, el autor del socialismo científico, que creyó poder reducir a leyes la libre actividad del hombre en la sociedad y que no pudo descubrir para el socialismo sino aquel camino único que le está según Landauer, vedado: el camino del Estado [413].

Las ideas expuestas más o menos sistemáticamente en dicha obra se complementan con numerosos artículos que hasta el final de su vida dio a luz en la prensa socialista y anarquista de los diversos países de Europa y sobre todo con el Aufrus zum Sozialismus, publicado por vez primera en 1911, reeditado en 1919 con motivo del estallido revolucionario de Baviera y también traducido al castellano (Incitación al Socialismo, Barcelona, 1931; Buenos Aires, 1947) [414].

Notas

[404] Tal es el título de un libro de Agustín Socuchy, publicado primero en

Sueco: Gustav Landauer, Revolutionens filosof – Stockholm, 1920, y luego traducido al castellano por Diego Abad de Santillán (Gustav Landauer, el filósofo de la revolución – Bs. Aires, 1934).

[405] Estos datos biográficos que damos pueden ser ampliados con el libro de A. Souchy, antes citado y, sobre todo, con la obra de MAX NETTLAU: La vida de Gustav Landauer según su correspondencia (Bs. As. 1947) que a su vez, ha utilizado el trabajo de Martín Buber: Gustav Landauer, sein Lebensganf im Briefen (Frankfurt, 1929)

[406] Cfr. Fr. ENGELS: Anti Düring.

[407] Cfr. HANS MACK: Bruno Wilde als philosoph- Giesen, 1913.

[408] FRITZ MAUTHNER nació en Horitz (Bohemia) en 1849, estudió en la Universidad de Praga y murió en Meersburg (Suiza) en 1923. Su obra principal lleva por título: Beitrage zu einer Krotik der sprache (Sttutgart, 1901-1903), La misma es completada por Die drei Bilder der Welt, ein Sprachkritische Versuch Erlangen, 1929). También fue autor de un Woterbuch der philosophie (Munich, 1910), de una monografía sobre Spinoza (Desdes, 1921) y antes, de un trabajo sobre Aristóteles (Berlín, 1904), así como de una extensa obra titulada Der Atheismus und Seine Geschichte im Abendlande (1920-1923).

[409] Citada por M. NETTLAU, op. Cit. P. 216.

[410] Citada en el prefacio de la primera edición alemana, que se reproduce en la traducción castellana de G. Thiele, p. 11.

[411] La traducción es de Pedro Scaron y tiene un prologo, especialmente escrito para la edición castellana, por H. Koechlin.

[412] Op. Cit. P. 243.

[413] Para la crítica de Marx, véase en especial: Incitación al Socialismo, p. 51 y sigs.

[414] La traducción castellana se debe a Diego Abad de Santillán, quien escribió para ella una breve “advertencia” y ha contribuido, sin duda, más que ninguno, a hacer conocer en nuestra lengua, la obra de Landauer.]

[Texto extraído del ensayo más extenso, de igual título, incluido en el libro Utopías Antiguas y Modernas, obra que es accesible por Internet enhttp://www.radical.es/historico/archivos/upload/utopscappelletti.pdf.]

In Periodico el Libertário   

“O anarquismo é o caminho que a humanidade deve transitar para não se autodestruir”

[“Anarquista é, por definição, aquele que não quer estar oprimido e não quer ser opressor; aquele que quer o máximo bem estar, a máxima liberdade, o máximo desenvolvimento possível para todos os seres humanos”. Errico Malatesta

Anarco
Docente de sociologia da Universidade Nacional de Rosário, Carlos Solero

Os chamam utópicos, mas isso não representa freio algum para deixar de enriquecer o sonho de uma sociedade livre, sem autoridade, baseada na ajuda mútua e na cooperação voluntária.

O anarquismo argentino contou com grandes escritores, como José Ingenieros, Rodolfo González Pacheco, Teodoro Antilli, Emilio López Arango, com excelentes poetas, como Alberto Ghiraldo e Herminia Brumana. Todos eles não descansaram tratando de compartilhar a chave da consciência liberadora.

A Fora (Federação Obreira Regional Argentina) soube ter seu grande momento na organização sindical de nosso país. A mesma sofreu repressões sangrentas conhecidas como “La Semana e Patagonia Trágica”, dali emergiria a figura do “vindicador” Simón Radowitzky. Outra figura, mais controvertida e de ação direta, foi sem dúvida Severino Di Giovanni, alguém a que Osvaldo Bayer, outra grande referência, soube imortalizar em livros e na tevê.

Mas não vamos nos estender em demasia, já que o anarquismo é tão amplo que seria insultante tratar de colocá-lo em um só informe. Por isso mesmo “Conclusión” dialogou com o licenciado em ciências políticas e professor de sociologia Carlos Solero, alguém que abraça fortemente as ideias anarquistas.

“Em uma sociedade onde reina o egoísmo e a propriedade privada é considerada sacrossanta, falar de anarquismo tem uma base sólida em poder estabelecer acordos mútuos”, sustentou.

Pensar em uma sociedade onde os laços se estendam de maneira horizontal, nos mostraria um horizonte transformador. Mas, como levá-lo adiante ante a consolidação do Capital e do Estado que o protege?

“É sabido que não há muita permeabilidade na sociedade, pelo antes mencionado, devemos seguir através de todos os meios de divulgação elevando nossas ideias. As brechas sociais nos encontraram levando adiante nosso ideário, mais precisamente nas ruas, histórico refúgio de nossas lutas”, indicou Solero.

O sistema capitalista vive em um colapso quase permanente, sobre isto disse, “se bem não podemos ser otimistas, se o podemos ser em médio prazo, já que este sistema sempre vai se encarregar de mostrar-nos suas misérias. A nós cabe construir vínculos no cotidiano, sempre existirão revoltas onde possamos mover-nos com mais desenvoltura que em outros momentos”.

O parlamentarismo e essa velha discussão, “o parlamentarismo não modifica nem altera o sistema na propriedade, nem na autoridade. Ou seja, o mesmo te mantém na obediência e na submissão, o povo acredita que deve depositar sua vida naqueles que dizem ser “seus representantes”, quando na realidade não é assim. É uma maneira que busca ser cordial para poder legalizar a exploração”, enfatizou o professor universitário.

Capital e Estado, ambos se dão as mãos segundo o olhar de Carlos Solero, “um não existe sem o outro, o Capital necessita do Estado. Há um pensador contemporâneo que define o Estado como bárbaro, sustenta que se manifesta só de duas formas, como socialdemocrata e totalitário. Em essência são o mesmo, são duas formas de dominação, nós sabemos que sempre que haja criação de valor, vai existir exploração e dominação, por isso combatemos contra todos eles integralmente. Não se trata de um governo ou outro, é o Estado, primeiro como máquina de guerra em defesa do Capital, e segundo pela captação de subjetividade na hora de obter votantes”.

Para conseguir certo conforto, ou dar-se alguns gostinhos, o ser humano deve entregar longas jornadas de sua vida. Isto sem sombra de dúvidas o conduz infalivelmente a conviver com uma espinhosa contradição.

O rol da esquerda parlamentar

Solero nisto não faz rodeios e a define como a “esquerda do Capital”. Algo que gera debates virulentos com aqueles que consideram que através do parlamentarismo se pode transformar a realidade dos explorados.

“Com a esquerda no poder, em suma se poderia aspirar a uma socialdemocracia. Esta poderá ter muita força nas ruas, mas não passará nunca de ser uma minoria lúcida, já que passaria a fazer parte do sistema”, destacou.

O licenciado em ciências políticas insiste com a socialdemocracia, “o mais parecido a isto foi sem dúvida Lula da Silva no Brasil e a Frente Ampla do Uruguai, sem esquecer a anterior do Chile e o regime venezuelano”.

Quando se consulta por Chiapas no México, e o Curdistão como possíveis construções anarquistas aferradas ao separatismo, é categórico: “Não creio que o Curdistão tenha nada disso, é um tema mais complexo que se dá em uma zona do mundo muito particular. Com respeito ao do México, podem existir alguns municípios autônomos que poderiam ser de alguma referência, não assim o neozapatismo que optou pela via eleitoral. O anarquismo tem sua essência nas revoltas permanentes, é o caminho que a humanidade deve transitar para não se autodestruir”, concluiu.]

Por Alejandro Maidana

Fonte: http://www.conclusion.com.ar/info-general/el-anarquismo-é-el-caminho-que-la-humanidade-debe-transitar-para-não-autodestruirse/01/2018/

Tradução: Sol de Abril

In Agência de Noticias Anarquistas (ANA)

Conteúdo relacionado:

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2017/07/12/argentina-apresentacao-do-livro-escrito-y-reflexiones-contra-teclado-do-anarquista-carlos-solero/

“Os hippies soviéticos”

Hippie com
Cortesia de Soviet Hippies para Esquerda Net.

[Embora os militantes de esquerda veteranos fiquem incomodados com a ideia, na imaginação popular a cultura hippie continua associada a protestos políticos. Durante o auge da radicalização estudantil da década de 1960, a música, roupas e estética visual associadas ao movimento hippie permearam a cultura de protesto da Nova Esquerda. Esta imagem continua a animar nos dias de hoje as caricaturas de direita sobre a Esquerda.

Embora este tipo particular de rebelião cultural fosse mais proeminente nas sociedades fordistas do ocidente capitalista, esta atravessou o Atlântico e ganhou forma própria na cada vez mais estagnada União Soviética de Leonid Brezhnev. Aí, milhares de jovens descontentes reuniram-se numa rede underground de pessoas que se identificavam enquanto hippies, à qual chamaram Sistema. A história do movimento, maioritariamente esquecida, é o foco de um recente documentário intitulado Soviet Hippies, onde se capta esta parte cultural única da Guerra Fria, na qual um difuso sentimento antiautoritário ressoou com os jovens dos dois lados da Cortina de Ferro. Loren Balhorn falou recentemente com o realizador, Terje Toomistu.

O seu filme documenta a vida de uma rede de hippies chamada Sistema, concentrada, sobretudo nos Estados Bálticos, mas que se espalhou pela URSS. De onde surgiu o nome e por que se tornou na alcunha deste grupo de miúdos soviéticos rebeldes e de cabelos compridos?

De acordo com o que se diz, esta surgiu com um hippie carismático que vivia em Moscovo no final de 1960, chamado Sontse, que significa “ensolarado”. Os outros hippies referiam-se a ele como “o sol”, pelo que o grupo à sua volta começou aos poucos a ser chamado de “sistema solar”. É provável que o nome Sistema venha daí. De qualquer modo, nesta fase o Sistema ainda não funcionava como aquilo que viria a tornar-se mais tarde: uma rede auto organizada e autossustentável de pessoas que partilhavam certos valores e ideais, viajando pelo país e reunindo em casa das pessoas e em acampamentos temporários com muitas pessoas.

Quando surgiu esta rede?

A rede propriamente dita surgiu alguns anos depois, no início dos anos de 1970. O movimento começou entre algumas pessoas das maiores cidades da União Soviética que tinham acesso à música ocidental. Algum tempo depois, começaram a questionar-se sobre se existiriam outras pessoas como elas noutras partes do país, e rapidamente estabeleceram contacto com outras pessoas de cabelos comprimidos em cidades de grandes dimensões. Foi aí que o Sistema se começou a desenvolver enquanto cultura, com os hippies a viajar pela URSS e a fazer “couch surfing”, digamos assim, em casa de outras pessoas de cabelos compridos. Os membros do Sistema compilavam em cadernos os números de telefone de hippies de outras cidades, permitindo-lhes estabelecer contacto com pessoas com os mesmos ideais em Kaunas, Tallinn e outros sítios, durante as suas viagens de verão.

E a política do movimento hippie? Parece-me que estes se estavam a rebelar contra o mesmo tipo de atitudes conservadoras e normas sociais que no contexto ocidental, embora sob um diferente sistema socioeconómico e instituições políticas. Ao passo que, nos anos de 1960, muitos jovens rebeldes nos Estados Unidos da América idealizavam, por exemplo, a Revolução Cultural de Mao na China, muitos das pessoas no seu filme parecem idealizar tudo o que fosse estado-unidense. Porém, tal como o filme admite muitos dos primeiros hippies eram filhos da elite soviética. Quais os problemas e fatores que deram origem a este afastamento da sociedade soviética?

Existiram certamente algumas semelhanças entre o Leste e o Ocidente, mas também algumas diferenças. Na URSS o pacifismo não era puramente político – tinha também implicações a nível quotidiano. A sociedade soviética da altura era profundamente autoritária e altamente militarista. A maioria dos hippies rejeitava essas atitudes e tentavam modelar as suas vidas diárias em torno de valores como a “paz” e o “amor”.

Dito isto, a cena hippie começou com pessoas que tinham acesso a música e a jornais ocidentais e é claro que isso só poderia acontecer entre a elite – as únicas pessoas na União Soviética que tinham acesso a bens do Ocidente. Altos funcionários – membros do Partido Comunista, agentes do KGB, etc. – conseguiam obter autorização para viajar para países ocidentais, trazendo geralmente todo o tipo de presentes estrangeiros e exóticos para os seus filhos. Os filhos da elite também tinham mais dinheiro para comprar discos em contrabando, algo que era muito caro. Muitas vezes, as pessoas formavam pequenos clubes de quatro ou cinco amantes de música que reuniam dinheiro para comprar um disco que, depois, copiam à vez para cassete.

Nesse sentido, continha um aspeto de dissidência, mas também era uma questão de estatuto. Se se tinha uma boa coleção de discos, tinha-se muitos amigos. Por isso, pelo menos no início, os hippies eram filhos de famílias soviéticas poderosas. Em termos ideológicos, existia certamente uma idealização do Ocidente como sendo o “mundo livre” e, a um menor nível, uma idealização do mercado livre.

Então o movimento tinha um certo cunho pró-mercado livre?

Sim, porque associavam o mercado livre a boa música e a boas calças de ganga. Não é que fossem a favor do capitalismo per se, mas tinham uma noção idealizada da liberdade de consumo. Isto era mais ou menos verdade entre a população soviética em termos mais gerais: o consumo era reprimido e, em consequência, idealizado. As pessoas queriam usar calças de ganga como expressão desse desejo de liberdade. É difícil julgá-los por isso em retrospectiva: numa sociedade onde os bens são difíceis de obter, é compreensível que o consumo ganhasse esse significado.

Uma coisa que não surge no seu filme é a invasão soviética do Afeganistão em 1979. A guerra no Afeganistão teve algum efeito no movimento hippie? Cresceu ou teve alguma relação com o sentimento anti-guerra?

Bem, o Afeganistão não entra no meu filme porque o documentário concentra-se no surgimento do movimento hippie, que se tornou numa entidade social visível em 1971, quando os hippies se reuniram em Moscovo para protestar contra a guerra do Vietname. Esta ocasião foi escolhida por se alinhar com o posicionamento em termos de política externa do Governo soviético, bem como com o pacifismo prevalente entre a comunidade hippie. Foi também um momento importante para o movimento, sobretudo porque foram todos detidos e identificados pela polícia, o que de repente fez com que ser hippie na URSS fosse algo muito perigoso.

Desta forma, as autoridades mataram o elemento político do movimento – este se tornou muito mais underground, mais virado para si mesmo e talvez mais espiritual, mas também muito mais envolvido com drogas e álcool. Os aspetos sociais e políticos recuaram. Quando pergunto aos hippies mais velhos se estes se interessavam por política, estes respondem geralmente que viam a política como algo estagnado. Sentiam não ter como mudar algo na sociedade soviética e que seriam presos caso tentassem. De certa forma, acho que a sua rejeição da política era em si mesmo um protesto.

Existia alguma ligação entre o movimento hippie, ou o Sistema, e a intelligentsia de Leninegrado ou a dissidência soviética avant-garde, ou tratavam-se de meios separados? 

Existiam certamente ligações. Na Estónia, por exemplo – que era uma sociedade comparativamente livre em relação à maioria da URSS – as pessoas que trabalhavam na música e nas artes, literatura, etc., estavam sempre meio que entre estas esferas oficiais e não oficiais, produzindo a sua arte livre e radical ao mesmo tempo em que tentavam manter boas relações com as autoridades. Muitas pessoas também se aproximaram da cultura hippie quando eram jovens, antes de se tornarem artistas soviéticos “oficiais”, mais estabelecidos e respeitados. Foquei-me deliberadamente no Sistema, este grupo de hippies mais radicais que realmente “saíram” da sociedade soviética e viajaram pelo país como espíritos livres, mas existiram certamente ligações com artistas e a intelligentsia.

E o género? Não é bem um foco do filme, mas várias das pessoas entrevistadas fazem comentários ao de leve onde sugerem que as políticas de género na comunidade não eram particularmente progressistas. Existia um elemento feminista nestes meios? 

Os hippies soviéticos não tiveram uma revolução sexual comparável à que associamos aos hippies ocidentais – as comunas, o amor livre e tudo isso. Os hippies soviéticos apaixonavam-se, viajavam pelo país em casais, passavam de um parceiro para outro, etc., mas não existia esse elemento de “amor livre”. Havia, claro, muito sexo, mas mais sob forma de casos que ocorriam entre pessoas nas suas viagens pela União Soviética. Nesse sentido era muito convencional, mas ainda assim muito mais liberal que o resto da sociedade soviética!

Perguntei a várias mulheres hippies se se consideravam feministas, mas estas geralmente diziam que isso não se relacionava com as sua vidas (com algumas exceções, claro). Porém, ouvi falar de uma mulher chamada Ophelia que liderava um grupo de hippies de Moscovo e que se interessava muito por drogas psicodélicas. Teve vários namorados ao mesmo tempo e praticava uma forma consciente de “amor livre”. O movimento tinha mulheres fortes, mas em geral “os homens eram homens e as mulheres eram mulheres”, por assim dizer. Há que ter em mente que muitas mulheres eram socializadas no movimento quando se apaixonavam por homens hippies.

Em muitos países do Bloco de Leste houve certamente uma sobreposição entre políticas pró-democracia e um ressurgimento do nacionalismo. Houve uma dinâmica semelhante na comunidade hippie soviética? No documentário há pelo menos um hippie ucraniano que afirma “odiar a Rússia”, por exemplo.

Sim e não. Alguns hippies envolveram-se com o nacionalismo, sobretudo nos Bálticos onde as pessoas ainda viam a era soviética como uma era de ocupação, havendo assim um toque nacionalista desde o início. Ainda assim, o Sistema era multicultural e multinacional, com o russo servindo geralmente de língua comum. Os hippies que se envolveram mais com a espiritualidade não se relacionaram muito com o crescimento do nacionalismo nos anos de 1980, embora alguns dos protagonistas do filme, sobretudo os ucranianos, misturassem um pouco a cultura hippie com nacionalismo.

Tal como terá possivelmente visto no filme, os desenvolvimentos não foram iguais. Alguns hippies pós-soviéticos mantiveram-se comprometidos com o pacifismo e tentaram organizar manifestações contra a guerra no Leste da Ucrânia, por exemplo. A reunião anual de hippies em Moscovo, onde foi filmada a cena de encerramento do documentário, comemora o protesto anti-guerra de 1971 que tornou o movimento hippie visível aos olhos do público. Algumas das pessoas com quem falámos aí pareciam sentir uma certa continuidade entre o pacifismo dessa era e dos dias de hoje.

Há uma cena particularmente engraçada no filme, onde dois hippies mais velhos descrevem a um grupo de jovens espantados a forma como cultivavam o seu ópio e canábis. O conceito de uso destas drogas de forma recreativa foi importado do Ocidente ou estava relacionado com tradições locais? 

Essas drogas já lá estavam. Não é como se os hippies soviéticos tivessem pensado de repente “oh, os hippies do Ocidente fumam erva? Como é que podemos arranjar?”. Existiam campos de canábis em algumas partes da Rússia, Ásia Central e Ucrânia, geralmente para produção de cânhamo. Os hippies mais velhos contam histórias de mulheres hippies a correrem nuas pelos campos de canábis, recolhendo o pólen no seu suor e produzindo haxixe a partir disso.

Também fiquei surpreendido com as quantidades. A unidade de medida menor para a canábis era a de uma caixa de fósforos, depois uma chávena de chá e, depois disso, geralmente um cesto inteiro. As autoridades perceberam eventualmente que se estava a passar alguma coisa com a erva, mas ficaram mais preocupados com o aspeto do negócio que propriamente com o uso da droga.

Estavam mais preocupados com o envolvimento de cidadãos soviéticos em “especulação” que no facto de estes usarem drogas – suspeito que alguns agentes nem conseguisse compreender o conceito. Existem muitas histórias sobre rusgas da polícia a casas de hippies nas quais procuravam literatura proibida e ignoravam por completo as pilhas de canábis na mesa da cozinha. Muitos me contam que fumavam charros no Café Moscow, na baixa de Tallinn, pois ninguém reconhecia o cheiro ou sabia o que aquilo era. Para consumir ópio geralmente faziam chá de papoila. No entanto, o problema aqui se prendia com a dificuldade de medir a quantidade de ópio que ia com o chá, pelo que por vezes as pessoas morriam de overdose.

Uma coisa que noto na música rock da era soviética em geral é a sua mistura de estilos bastante eclética, onde combinam influências e géneros do cânone do pop-rock ocidental com as suas próprias criações e de formas bastante surpreendentes para os ouvidos mais habituados às cenas musicais americanas ou britânicas. Até que ponto é que estes músicos conseguiam promover o seu trabalho através de canais estatais e oficiais? Alguns dos telediscos que surgem no documentário parecem ter custos de produção particularmente elevados. Tocavam na televisão ou na rádio ou eram totalmente alternativos? 

Eram maioritariamente alternativos. Aqueles que conseguiam gravar a sua música de forma profissional geralmente descreviam-no como um “milagre”. A banda estonada Suuk, por exemplo, conseguiu gravar (link is external) o seu disco em 1976 num único dia numa “rádio móvel” do Estado. Este era o caso da Estónia, onde as pessoas tinham mais liberdades que no resto da URSS, motivo pelo qual o meio era mais vibrante aí que nos restantes sítios. Ainda assim, estas bandas não assinavam ou não eram promovidas pela Melodia, a editora musical do Estado. Ocorreram algumas exceções, mas eram muito raras e obscuras. É particularmente difícil encontrar gravações de boa qualidade de música alternativa russa desse período. Devido ao acesso limitado a materiais de gravação, estas bandas tinham de improvisar e de ser muito criativas na forma como produziam as sua música, o que lhes conferia um som único e muito específico.

O filme mostra um excerto de um noticiário soviético onde denunciavam os hippies por roubo de fios de cabines telefónicas para usarem nas guitarras, mas não são apresentados mais detalhes. Esta parece ser uma queixa comum e oficial em relação aos hippies na URSS. Que se passava?

Isso era porque na União Soviética muitas pessoas construíam as suas próprias guitarras, enquanto a maioria dos instrumentos disponíveis na URSS eram fabricados na antiga Checoslováquia. Os miúdos hippies da era soviética no final dos anos de 1960 usavam as bobines eletromagnéticas dos telefones nas guitarras elétricas, algo que, quando colocado debaixo das cordas da guitarra, transformava uma guitarra acústica numa elétrica. Como os materiais de captação não estavam acessíveis através dos canais oficiais, os miúdos faziam os seus próprios destruindo cabines telefónicas.

Muitas das pessoas que participam no documentário relatam terem sido enviadas para hospitais psiquiátricos pelos seus pais ou por outras figuras de autoridade, como retaliação pelo seu envolvimento na cena hippie. Era algo comum?

Um dos hippies do filme conta ter sido enviado pela sua mãe para uma ala psiquiátrica pois a sua resposta entusiástica a uma versão contrabandeada do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles fez com que ela pensasse que ele tinha enlouquecido. Este caso ilustra o poder das normas sociais na sociedade soviética da época, na qual, não apenas as autoridades, mas também grande parte da população, impunha uma cultura muito antiquada e conformista. Além do assédio policial, os hippies também se deparavam com o policiamento moral dos cidadãos comuns, que se referiram a estes de forma pejorativa como “os tipos de cabelo comprido”, os denunciavam à polícia ou os assediavam nas ruas.

É por isso que os hippies que eram vistos como líderes ou considerados demasiado visíveis para o gosto do Estado eram muitas vezes enviados para hospitais psiquiátricos ao invés de prisões. Um dos maiores receios dos hippies era o de serem enviados para os hospitais por doenças da pele ou infeções sexualmente transmissíveis, pois estes eram particularmente rígidos. Muitas vezes as autoridades identificavam ou simplesmente inventavam a presença de piolhos nos detidos, e usavam isso como argumento para forçá-los a cortar os cabelos. Isto era muito difícil para muitos deles a nível psicológico, pois os cabelos longos eram considerados como sendo “a bandeira da liberdade”, um grande símbolo de não conformismo na URSS à época.

Contudo, um aspeto interessante na dinâmica com os hospitais psiquiátricos era o facto de muitos hippies e outros dissidentes se internarem voluntariamente em alas psiquiátricas de forma a evitarem o serviço militar obrigatório. Cruzavam-se muitas vezes com outros artistas, músicos e pessoas “boémias” em geral, todos eles procurando evitar o serviço militar. Os funcionários do hospital foram percebendo gradualmente que esta era uma estratégia dos objetores de consciência, e então lhes era dado um diagnóstico e eram mandados embora. É importante notar que, embora muitos hippies tenham tido experiências horríveis e traumatizantes em alas psiquiátricas, estas também tiveram um aspeto positivo para muitos.

Em retrospectiva, como é que os hippies soviéticos que entrevistou refletiam sobre a sua experiência trinta ou quarenta anos depois? Estavam orgulhosos do que tinham feito? Tinham saudades?

Há mais de seis anos que trabalho neste projeto – organizámos há uns anos uma exposição num museu na Estónia e o filme foi exibido em cinemas do país durante vários meses. Foi uma importante contribuição para a revitalização de velhas amizades e ligações entre hippies, e de alguma forma trouxe o movimento de volta – ou pelo menos as memórias. Muitos dos hippies soviéticos que ainda são vivos esperam que o filme e a experiência que este documenta ajudem a inspirar a juventude dos dias de hoje – afinal, mesmo que o sistema sociopolítico dos países da antiga URSS tenham mudado muito desde os anos de 1970, a luta antimilitarista e o conformismo social permanecem iguais.]

Tradução: Érica Almeida Postiço. Artigo publicado na revista Jacobin (link is external).

In Esquerda Net

“Neoliberalismo, ordem contestada”

Revolta

[O termo “movimentos anti-sistêmicos” era comumente usado, há 25 anos, para caracterizar forças de esquerda, em revolta contra o capitalismo. Hoje, ele não perdeu relevância no Ocidente, mas seu sentido mudou. Os movimentos de revolta que se multiplicaram na última década não se rebelam mais contra o capitalismo, mas contra o neoliberalismo – os fluxos financeiros desregulados, os serviços privatizados e a desigualdade social crescente, uma variante específica do domínio do capital adotada na Europa e América desde aos anos 1980. A ordem econômica e política resultante foi aceita indistintamente por governos de centro-direita e centro-esquerda, de acordo com o princípio central do pensamento único e do dito de Margareth Thatcher, segundo o qual “não há alternativa”. Dois tipos de movimento agora se mobilizam contra este sistema; e a ordem estabelecida estigmatiza-os – sejam de direita ou de esquerda – como a “ameaça populista”.

Não por acaso, estes movimentos emergiram antes na Europa que nos Estados Unidos. Sessenta anos após o Tratado de Roma, a razão é clara. O mercado comum europeu de 1957, um desdobramento da comunidade de carvão e aço do Plano Schuman – concebido tanto para prevenir o retrocesso a um século de hostilidades franco-alemãs quanto para consolidar o crescimento econômico pós-guerra na Europa Ocidental – foi produto de um período de pleno emprego e aumento dos rendimentos populares, a consolidação da democracia representativa e dos sistemas de Bem-estar Social. Seus arranjos comerciais pesavam muito pouco na soberania dos Estados-Nações que o compunham – e à época, foram fortalecidos, não enfraquecidos. Os orçamentos e as taxas de câmbio eram determinadas internamente, por parlamentos que prestavam contas a seu eleitorado nacional, e nos quais políticas contrastantes eram debatidas com vigor. Tentativas da Comissão de Bruxelas para tornar-se mais poderosa foram notoriamente rechaçadas em Paris. Não apenas a França de Charles de Gaulle mas também a Alemanha Ocidental de Konrad Adenauer, ainda que de forma mais discreta, perseguia políticas externas independente dos Estados Unidos e capazes de desafiá-los.]

Leia a integra do texto de Perry Anderson no site Outras Palavras.

Por Perry Anderson, no Le Monde Diplomatique, tradução: Antonio Martins.

“O comunismo e o PT”

Crédito da foto: www.novaimprensa.inf.br
Crédito da foto: http://www.novaimprensa.inf.br

[O ex-presidente Lula pode até dizer, como já disse, que seu PT e o Partido Comunista da China são os dois maiores partidos de esquerda hoje existentes no planeta. Em tom parecido, o atual presidente do PT também pôde encerrar o discurso no recente congresso partidário, em Salvador, citando Guevara, ícone de um caminho armado para o socialismo que logo se perdeu em algum momento do século passado, depois de ser a causa de sucessivas derrotas em países minimamente articulados, refratários à tática dos focos insurrecionais — entre eles, o Brasil da ditadura militar.

Nenhuma destas alusões, ou qualquer outra desse tipo, tem o poder de anular a irrecuperável distância entre a experiência (encerrada) do comunismo histórico, com seus partidos “totais”, fundidos à máquina do Estado e propugnadores de uma ruptura integral com o capital, e a modesta experiência reformista de um partido como o PT e seus governos nos últimos doze anos. Não há filiação possível, a não ser aquela produzida pela má retórica que diferentes esquerdas, a de antes e a de agora, muitas vezes insistiram, e insistem, em produzir, danificando paradoxalmente sua efetiva capacidade de incidir produtivamente no mundo real.

Em política, conta muito a linguagem que os partidos utilizam, os termos e os modos de pensar que introduzem no uso comum. Para ficar estritamente neste plano e estabelecer algum paralelo, partimos do ritual da “autocrítica” bolchevique, tantas vezes exercido hipocritamente na falta de mecanismos formalmente democráticos, como alguns “hereges” da própria esquerda a seu tempo apontaram.

Desse mal importantes dirigentes petistas também parecem não ter escapado, e os sinais estão em torno de nós. Em Salvador, a intervenção congressual de Lula não se preocupou em explicar, com um mínimo de argumentação racional, o desarranjo econômico que obrigou a uma guinada radical de orientação no segundo governo Dilma. Para o dirigente máximo do petismo, a única verificação possível de erros e acertos jamais virá do debate com os demais atores da vida institucional, mas de um movimento interno próprio do PT e de seus próprios seguidores supostamente cativos: “Quem pode nos ensinar, quem sempre nos ensinou o caminho a seguir, são os trabalhadores e o povo mais pobre deste país”.

Na visão do ex-presidente, a imprensa oligopolizada, que demite jornalistas, não pode perturbar o círculo virtuoso entre partido e povo mais pobre. Muito menos podem fazê-lo os personagens da oposição, pintados, todos, em cores tenebrosas. Se pudessem, tais personagens reduziriam a maioridade penal, “mandando para a cadeia quem deveria estar na escola” — como se os governos petistas tivessem tido uma política de segurança corajosa, que pelo menos atenuasse a devastação causada pelos crimes contra a vida. Não só: os opositores do PT mandariam “pobres e negros” de volta ao lugar de origem, sem oportunidade de ascensão; sancionariam “o preconceito contra a população LGBT”; e, evidentemente, fariam o Brasil “voltar à idade média social” em que vegetava antes da redenção acontecida a partir de 2003. Sem falar que iriam querer até destruir a Petrobras…

Este mundo em branco e preto, avesso a distinções e a nuances, era também o mundo visto da perspectiva do stalinismo. A revolução russa, resposta ao desastre da grande guerra em um país atrasado, muito cedo perdeu seu impulso transformador e sua energia criativa. Com Stalin viria a produzir uma singular espécie de fanatismo burocrático, que, salvo em ocasiões críticas, como por ocasião da frente antifascista na segunda guerra, enxergava o mundo povoado de traidores e inimigos: os socialdemocratas foram por muito tempo “social-fascistas”, mais perigosos do que os fascistas. Na URSS, enquanto isso, nascia o “homem novo”, na marcha batida da coletivização forçada e da ditadura de partido único.

Certamente, aquele era um mundo radicalmente diverso do Brasil de agora. E, no entanto, apesar da distância incomensurável, há algo comum entre categorias do velho comunismo e de setores de nossa esquerda. O homem novo do realismo socialista, por exemplo, empenhado como estava na construção do socialismo (de Estado), não podia ter defeitos graves. Decretava-se, na edulcorada versão oficial, que às vezes se irritaria com atrasos na realização do plano ou esqueceria uma tarefa. Pois existe algum traço deste personagem fantasioso na alma do presidente do PT, quando declara — ainda por cima com terminologia militar — que o partido se vê submetido a campanha de “cerco e aniquilamento” não “por nossos erros”, mas por “nossas virtudes”. Para Rui Falcão, na pior hipótese o petista médio poderá se enraivecer ou esquecer alguma missão — mas sempre será mais virtuoso do que qualquer adversário e, por isso, perseguido.

O velho comunismo, com seus feitos e malfeitos, foi também uma tentativa de conduzir a inevitável e potente irrupção das massas no século XX. Era portador de um desafio global, que, no entanto, já na virada dos anos 1930 se mostrava com capacidade de expansão política atrofiada, entre outras dificuldades, por operar com categorias acanhadas e jamais superar a mentalidade de “cidadela sitiada”.

O PT, nem é preciso dizer, atua em registro infinitamente mais modesto, o que, aliás, está longe de ser desvantagem. Seu grupo dirigente e os representantes mais expressivos de sua “sociedade civil” talvez ainda não tenham percebido a necessidade de assumir plenamente as responsabilidades decorrentes de viver e atuar em sociedade afortunadamente democrática e pluralista. O partido parece querer operar sob o paradigma da revolução, ainda que esta seja a rota segura para o gueto e a subalternidade. A democracia brasileira nada ganha com isso. ]

Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.

Fonte: O Estado de S. Paulo, 21 jun. 2015.