marcio tadeu dos santos
O político
Amores
Os três mandamentos da lei de Deus

Deus veio me visitar ontem.
Isso mesmo. Em carne e osso, se é possível se referir a Deus dessa forma.
Eu estava na sala, sentado no sofá, tentando assistir TV.
O Senhor sentou-se ao meu lado.
– E aí, Marcião? Muita gente me chama assim, por que Ele não chamaria?
Tentei não acreditar. Me belisquei. Me dei tapa na cara. Gritei
– Não adianta, disse-me Ele. Relaxa cara! Isto é só entre nós.
– Então o que o Senhor quer? – perguntei preocupado e assustado.
– Está surpreso? Não se preocupe. Vou lhe ditar os meus mandamentos – revelou.
– Mas o Senhor já não tinha feito isso antes? – ponderei.
– Aquilo foi uma experiência. Tanto que escolhi Moisés, o mais burro dos judeus – disse o Senhor.
– Judeu burro não existe Senhor – ponderei de novo.
– Deixe de ser puxa-saco – reagiu.
– Os caminhos de Deus são retos – pensei.
– É isso mesmo. Mas nem pense em me entender. Cuide da sua vidinha que já terá feito um grande negócio – avisou.
– Vidinha! – reagi. O Senhor vem aqui e me escolhe para ditar as suas leis e chama a minha vida de vidinha! – reclamei.
– Preste atenção, idiota! Primeiro eu não vim aqui e o escolhi. Eu o escolhi e depois vim aqui. E não vim aqui ditar lei nenhuma. Vim ditar os meus mandamentos. Eu posso e Eu mando. Deu pra entender? – esbravejou.
– Tá bom, não precisa se irritar. Mas podemos conversar um pouco antes. Gostaria de saber algumas coisas – solicitei inseguro.
– Vá em frente. Tenho todo o tempo do mundo. Nunca se esqueça de que Eu sou o Senhor do tempo – esclareceu mais uma vez.
– Sim, Senhor, doutor… – brinquei provocativo.
– Olha o respeito. Na sua terra chamar alguém de doutor não é exatamente um elogio – disse, fuzilando-me com os olhos.
– Desculpe – roguei-lhe.
– Então vamos, pergunte – falou, impaciente.
– Onde o Senhor esteve estes anos todos depois que ditou as le… os mandamentos para Moises? Isso faz tempo pra cacete! – gaguejei.
– Eu não ditei coisa alguma. Eu escrevi numa pedra. Nunca se esqueça de que Eu sou o Senhor de tudo o que é sólido. Você não pensa não? – irritou-se de novo.
– E como eu iria ditar alguma coisa se o sujeito era analfabeto? – disse mais irritado ainda.
Compreendi o quanto Deus é sábio.
– E não faz tempo pra cacete coisa alguma. Foi agorinha mesmo – disse ainda bravo.
– Mas dizem que isso foi a sete mil, oito mil anos! – me admirei.
– Mas o que é o tempo para mim, Marcião? Nada! O tempo não existe. Eu sou o Senhor do tempo e posso dispor dele da forma que Eu quiser – disse mais compreensivo,
– Posso ser franco com o Senhor? – perguntei baixinho.
– Vá em frente – estimulou.
– Mas que merda é essa que o Senhor fez? Um mundo miserável. Cheio de gente pobre, doente, passando fome. Guerras. Futricas. Roubos… – açulei, destemido.
– Ah, quer dizer que sou o responsável por essa merda toda? – me interrompeu.
– Deixo dois caras pelados no Paraíso, debaixo de uma árvore cheia de frutos e uma cobra para eles brincarem, eles se enrolam todo e Eu é que sou o culpado? – esbravejou.
– Tá certo. O Senhor tem razão. Mas não poderia ter criado mais alguma coisinha. As roupas? Um automóvel? – ponderei contrito.
– Eu estava com pressa. Queria sair de férias. Fui dar uma voltinha. Uma desopilada. Uma espairecida. Ou você pensa que fazer o universo todo do nada é trabalho fácil? – reclamou, indignado.
– Concordo. Mas só não entendo porque demorou tanto tempo para voltar. Que férias longas – apontei com cautela.
– Já lhe disse que o tempo não existe. Pode até existir para você, que, aliás, nem sabe o que fazer com ele. Mas pra mim… – não concluiu acusador.
Achou que eu tivesse entendido, mas não entendi nada.
– Mais alguma coisa? – perguntou irônico.
– Depois que a gente morre… pra onde a gente vai? – perguntei, aflito e temeroso.
– Pra lugar nenhum. Vai ficar por aqui mesmo, apodrecendo em algum buraco. Isso se alguém não resolver lhe queimar o corpo e jogar suas cinzas num rio qualquer – esclareceu secamente.
– Poxa, mas isso não é justo – choraminguei.
– Quem decide o que é justo ou não sou Eu, o Todo Poderoso. Pois pra mim é justo. Justíssimo – rebateu tranquilo.
– Mas o que então a gente está fazendo na Terra?- inquiri surpreso.
– E eu sei lá! Vocês estão aqui e não sabem o que estão fazendo e querem ainda por cima que eu saiba – reagiu sem muita convicção.
– Mas não foi o Senhor que nos colocou aqui? – retruquei.
– Não coloquei vocês aqui coisa nenhuma! Coloquei apenas dois caras pelados e uma cobra no Paraíso– esbravejou retumbante.
– Tá bom. Pode ditar os seus novos 10 mandamentos – desisti.
– Obrigado por me permitir ditar meus mandamentos – aprendi que quando quer Deus sabe ser sarcástico.
– Mas não são 10, são 3 – emendou.
– Só!?!?- me surpreendi.
– Só! Pra que mais? Os mandamentos de Deus não são a constituição brasileira, com suas centenas capítulos, parágrafos, incisos… E, aliás, vocês nem sabem o que fazer com aquilo tudo – ironizou.
– É verdade – pela primeira vez eu concordava integralmente com Deus.
– Posso ditar? – perguntou inquisidor.
– Pode – respondi eufórico.
– Só uma coisa antes. Serão só três artigos, mas vão ter notas explicativas – esclareceu.
Eu estava gostando cada vez mais de Deus
– Mas eu posso acrescentar algumas observações, com a Sua anuência, naturalmente – e quando for necessário . O Senhor é quem decide se é ou não é oportuno ou não? – perguntei-lhe humilde e bajulador.
– Poder, poder, não pode. Mas como atrapalhei seu programa de TV vou lhe fazer uma concessão. Pode sim – concedeu, benevolente.
Agradeci e esperei embevecido.
– Primeiro Mandamento: trepar todos os dias.
– Trepar? – reagi. Não seria melhor fazer amor ou transar?
– NÃO! – trovejou. Amor é outra coisa. Vocês nunca entenderam isso direito. E transar é muito vulgar. Se fossem vocês e não Eu quem tivessem criado o mundo isto aqui já teria acabado numa grande esbórnia. Deixe trepar mesmo. É mais plástico – esclareceu, irritado.
– E a nota explicativa? – saí de fininho do puxão de orelhas.
– Nota Explicativa: use uma ou mais de uma das partes do corpo para trepar. Não se preocupe com o tempo, até porque o tempo não existe. Quanto mais tempo durar, melhor será – ditou, ensinando.
– Pode ser homem com homem, mulher com mulher? – perguntei, envergonhado.
– Pode ser homem com homem, mulher com mulher, homem com duas mulheres, duas mulheres com três homens… – esclareceu divinamente.
– Mas tem um problema. E se o sujeito estiver sozinho? Sem ninguém. Perdido num deserto? – tentei ser inteligente.
– Qual é o problema? Que trepe com ele mesmo. Que use as mãos. Pra que porra você acha que eu botei mãos em vocês? – lembrou com precisão.
Deus realmente é insuperável.
– Segundo Mandamento: durma depois do almoço.
– Peraí, Senhor. Tem milhões de pessoas, quiçá bilhões que nem têm o que comer; não têm emprego, não têm acesso aos direitos mais elementares… – tentei argumentar.
– PODE PARAR – reagiu, trovejante.
– Pode parar com esse seu papo de comunista. É no sentido figurado, seu ignorante. É uma licença poética – disse entre debochado e irritado.
Entendi, mas levantei outra questão – e se o sujeito tiver um trabalho daqueles que ocupam o dia todo, sem hora para nada? O patrão ou o chefe dele não vai gostar da história…
O Senhor não deu a menor confiança às minhas observações, mas esclareceu, ditando a Nota Explicativa :
– Caso seu patrão, seu chefe, seu dono, sua mulher, seu homem ou um idiota qualquer venha reclamar de sua dormidinha mande ele à merda ou à puta que o pariu e continue dormindo. Se você perder o emprego a natureza lhe proverá o sustento .
Pensei comigo que os caminhos do Senhor, às vezes, são tortuosos e intrigantes.
O Senhor olhou-me duramente.
– Posso continuar? – perguntou
– Sou o seu servo, Senhor – disse, sem saída.
– Terceiro Mandamento: Beba vinho.
– Gostei Senhor. Beber vinho realmente faz bem à saúde e alegra a vida – emendei, bajulador.
O Senhor não deu a menor confiança à minha observação e ditou a Nota Explicativa: Beba pelo menos um copo de vinho a cada hora.
– Mas, Senhor – argumentei escandalizado. No final do dia, ou até antes, um sujeito pode ficar completamente bêbado!
– E qual é o problema? O ser humano não sabe nunca quando está sóbrio ou ébrio mesmo – contra-argumentou com profunda sabedoria.
Deus é infinitamente benevolente e eu tinha mais uma questão.
– Mas Senhor, se dirigirmos bêbados podemos provocar acidente, ferir pessoas, matar. E se formos pegos numa blitz vamos ser multados, presos e podemos até ter o nosso carro apreendido pela polícia – argumentei, pesaroso.
O Senhor tem o mapa de todos os caminhos, a chave de todas as portas, a solução para todos os mistérios.
– Primeiro, seu estúpido – desta vez Ele não trovejou, só xingou – a maioria das pessoas nem carro tem. Estou admirado que um comunista como você não tenha se lembrado desse simples detalhe – espezinhou.
– Segundo, quem mais provoca acidente de automóvel é quem não sabe dirigir. E mais de 99% não pessoas não consegue distinguir a direção de um poste de luz. Então, beber ou não beber não fará a menor diferença – esclareceu.
– Terceiro, ao contrário do que dizem os idiotas dos médicos, beber faz bem à saúde. E se não fizer assim tão bem ao corpo, pelo menos faz bem ao espírito, e vai ajudá-los a enfrentar mais levemente essa existência miserável a que vocês foram condenados – sentenciou
O Senhor havia terminado. Estava resplandecente.
– Antes que o Senhor vá embora posso levantar mais duas questões? – perguntei sem temor.
– Claro. Sou todo ouvidos – disse, benevolente.
– Primeiro: se Adão e Eva tiveram apenas dois filhos homens e um, ainda, matou outro, como foi possível que o ser humano crescesse e se multiplicasse – perguntei sério.
– Boa pergunta – respondeu admirado. Não sei. Eu não estava lá. Não fiquei para ver.
– Mas o Senhor não é aquele que tudo sabe, que tudo vê, que tudo ouve? – eu estava perplexo.
– Só o que me interessa – respondeu, educado.
– Segundo: que história foi aquela de o Senhor fazer um filho numa mulher que continuou virgem depois do ato? – tirei uma casquinha.
– Não fui eu quem fez o filho e praticou o ato. Foi a pomba do Espírito Santo – defendeu-se.
– Mas por aqui pomba também tem outro sentido – insinuei.
– Então pense e tente decifrar o enigma – me desafiou.
E antes de ir, o Senhor voltou a me desafiar – você sabe o que vai fazer com isso?
– Isso o que? – me surpreendi.
– Com as leis que lhe ditei – disse quase desaparecendo.
– Não sei – confessei.
– Faça o que quiser com elas, mas não perca seu tempo enrolando as pessoas com essa conversa idiota sobre religião; não ande sobre as águas que você pode se afogar e nem tente fazer milagres que isso não funciona – e Deus desapareceu. (MTS)