O futebol passou pelas janelas e as carolinas não viram

A copa é nossa
Ilustração: Esporteemidia.com

Creio que nós todos saibamos que o futebol é o único esporte mundial.

Outros esportes tentam e continuam tentando se ombrear com este esporte, mas apenas com relativo ou pouco sucesso.

Frente a esse fato evidente não soa estranho que a copa do mundo tenha essa repercussão toda e esse prestígio todo e que o esporte seja aquele de maior rentabilidade financeira e de interesse pelo mundo todo.

Na nossa natural lentidão, muita gente não deve ter percebido (ou talvez não tenha conhecimento mesmo) as “mudanças profundas” pelas quais passou o esporte, especialmente após o advento e a democratização da televisão.

Há, obviamente, quem aponte (e com relativa razão) os “malefícios” que a televisão levou ao esporte e prefira o “futebol de antigamente” (inclusive jovens que não o testemunharam) sem se dar conta dos ganhos na preparação física, na medicina esportiva, na profissionalização de técnicos e dirigentes que necessariamente levaram os atletas a adotarem uma postura “mais responsável”, a despeito de algumas defecções que ainda encontramos por aqui e acolá.

A despeito dos escândalos que sempre cercaram a Fifa (e talvez por conta deles), a federação internacional executou um trabalho brilhante de não apenas levar o esporte-futebol a todos os recantos do planeta como, e principalmente, nesse caso, criou escolas de futebol ao redor do mundo, o que nos permite assistir às antigas “zebras” (como é o caso dos países africanos, por exemplo) “fazendo bonito” no “esporte bretão”.

Vulgarizou-se, por aqui, pelo Brasil, que a atual copa do mundo que está sendo disputada na Rússia, não está despertando o interesse dos brasileiros.

Reconheçamos que o Brasil passa por um momento delicado da sua vida política e está imerso numa crise econômica sem precedentes, o que, naturalmente, altera o humor e a condição dos nacionais frente a copa russa, especialmente pensando-se, também, no enorme vexame patrocinado pelo selecionado nacional há quatro anos, aqui mesmo no Brasil.

No entanto, o decantado desinteresse dos brasileiros pela atual copa de mundo, como assim está posto, pelo menos até agora, destoa da realidade que se vive no país com os “feriados forçados “ e a ausência do povo circulando pelas ruas em dias de jogos do Brasil, como mais uma vez estamos presenciando.

E recordemos, também, que à medida em que o selecionado nacional for avançando na copa do mundo mais crescerá o interesse por sua performance.

E não será surpresa alguma que se o selecionado nacional chegar à final e ainda vencê-la venha a ocorrer uma explosão de júbilo e alegria, inclusive entre aqueles que esperam, por qualquer motivo que seja, pelo fracasso do selecionado nacional.

Márcio Tadeu dos Santos

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“Boaventura : em busca de Outros Iluminismos”

Iluminismos
Manto funerário do Alto Peru, cultura Paracas (700 a.C a 200 d.C). Em 2014, dezenas de peças como esta foram devolvidas ao país pela Suécia, que as conservou ilegalmente por mais de cem anos

[A conhecida revista de arte norte-americana Artforum solicitou-me um curto texto sobre o tema “O que é o Iluminismo?” Este é o título do famoso texto de Immanuel Kant publicado em 1784, glosado desde então por muitos autores, inclusivamente por Michel Foucault. A editora da revista queria especificamente que eu abordasse o tema a partir da minha proposta das epistemologias do sul (Epistemologies of the South: Justice against Epistemicide. Nova Iorque, Routledge, 2014; The End of the Cognitive Empire: The Coming of Age of the Epistemologies of the South. Durham, Duke University Press, 2018.). Eis a minha resposta.

Em 1966, um dos mais inovadores intelectuais ocidentais do século XX, Pier Paolo Pasolini, escreveu que somos muitas vezes prisioneiros de palavras doentes. Referia-se a palavras que parecem plenas de sentido, mas que, de fato, estão desprovidas dele ou, talvez mais precisamente, palavras que possuem conotações vagas e misteriosas, mas nos deixam muito inquietos, dada a sua aparência de estabilidade e coerência. Pasolini refere três palavras doentes — cinema, homem e diálogo —, insistindo no fato de existirem muitas mais. Penso que uma delas é Iluminismo. Foucault mostrou já que somos prisioneiros desta palavra. Contudo, na sua obsessão com a ideia de poder, não reconheceu que os prisioneiros nunca estão totalmente aprisionados e que a resistência nunca é apenas determinada pelas condições impostas pelo opressor. Afinal, as conquistas revolucionárias dos protagonistas do Iluminismo europeu mostram-nos precisamente isso. Devemos então começar a partir do ponto em que Foucault nos deixou. Poderemos nós curar essa palavra doente? Duvido que possamos. Contudo, se houver uma cura, ela ocorrerá, sem dúvida, contra a vontade do doente.

Se perguntarmos a um budista o que é o Iluminismo, poderemos obter uma resposta como a de Matthieu Ricard, um monge que vive no Nepal. Para Ricard, Iluminismo implica:

Um estado de conhecimento ou sabedoria perfeitos, aliado a uma infinita compaixão. Neste caso, o conhecimento não significa somente a acumulação de dados ou uma descrição do mundo dos fenómenos até aos mais ínfimos pormenores. O Iluminismo é uma compreensão tanto do modo relativo da existência (a forma como as coisas se nos apresentam) como do modo último da existência (a verdadeira natureza dessas mesmas aparências). Tal inclui as nossas mentes, bem como o mundo exterior. Esse conhecimento é o antídoto básico para a ignorância e o sofrimento.

Até que ponto é que o Iluminismo de Ricard é diferente do de Kant, Locke ou Diderot? Ambas as concepções implicam uma ruptura com o mundo tal como ele nos é dado. Ambas exigem uma luta contínua pela verdade e pelo conhecimento, sendo que o seu objetivo último equivale a uma revolução — uma revolução interior, no caso do Iluminismo budista, e uma revolução social e cultural, no caso do Iluminismo europeu. Será que existem continuidades entre essas rupturas, tão distantes em termos das suas gêneses e dos seus resultados? Devemos considerar como dado adquirido que nos conhecemos a nós ao conhecermos o mundo, conforme nos promete o Iluminismo europeu, ou devemos antes partir do pressuposto de que conhecemos o mundo uma vez que nos conheçamos a nós, conforme a promessa do Iluminismo budista? Qual dos dois pressupõe a tarefa mais impossível?

Qual dos dois acarreta mais riscos para os que não acreditam nas suas promessas? E, finalmente, porque é que questionar o Iluminismo europeu é ainda hoje, mais de dois séculos depois da sua formulação, tão mais relevante e controverso do que questionar o Iluminismo budista? Será apenas porque a maioria de nós é ontológica, cultural e socialmente eurocêntrica, e não budocêntrica?

A força do Iluminismo europeu baseia-se em duas demandas incondicionais: a busca do conhecimento científico, entendido como a única forma verdadeira de conhecimento e como fonte única de racionalidade; e o empenho no sentido de vencer a “escuridão”, ou seja, de banir tudo quanto é não-científico ou irracional. A incondicionalidade dessas demandas tem como premissa a incondicionalidade das causas que as orientam. E causas incondicionais levam logicamente a consequências incondicionalmente positivas. Aqui reside a fatal debilidade dessa força tão extrema, o seu calcanhar de Aquiles. Tomar como base uma concepção única de conhecimento e de racionalidade social exige que se sacrifique tudo aquilo que não lhe é conforme. A natureza sacrificial desta confiança reside em que a tolerância e a fraternidade decorrentes da celebração da liberdade e da autonomia contêm em si a fatal incapacidade de distinguir coerção e servidão de modos alternativos de ser livre ou autônomo. Ambos são concebidos como inimigos da liberdade e da autonomia e, logicamente, tratados com desapiedada intolerância e violência. É esse o impulso atávico que subjaz à construção iluminista da humanidade “universal” e o impele a sacrificar alguns humanos, banindo-os da categoria do humano, como o antigo bode expiatório abandonado no deserto. Isso explica a razão pela qual os direitos humanos podem ser violados em nome dos direitos humanos, a democracia pode ser destruída em nome da democracia e a morte pode ser celebrada em nome da vida. Aquilo que torna o Iluminismo europeu tão fatalmente relevante e tão necessitado de constante reavaliação é o fato de, ao contrário de outros projetos iluministas (como o budista), o poder de impor as suas ideias aos outros não se reger, ele próprio, por essas ideias e sim pelo desígnio de prevalecer, se necessário através de uma imposição violenta, sobre aqueles que não acreditam em tais ideias iluminadas ou se veem fatalmente afetados pelas consequências da implementação delas na vida económica, social, cultural e política.

A natureza sacrificial do Iluminismo europeu manifesta-se na forma como raciocina sem razoabilidade, na forma como apresenta as opções que rejeita ou os caminhos que não escolhe como prova da inexistência de outras vias, na forma como justifica resultados catastróficos como danos colaterais inevitáveis. Estas operações traçam uma linha abissal entre, por um lado, a luz forte das boas causas e das formas iluminadas de organização social e, por outro, a escuridão profunda das alternativas silenciadas e das consequências destruidoras. Historicamente, o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado são as forças principais que têm sustentado a fronteira abissal entre seres totalmente humanos, que merecem a vida plena, e criaturas sub-humanas descartáveis.

Essa linha abissal é uma linha epistêmica. Por isso, a justiça social exige justiça cognitiva e a justiça cognitiva exige que se reconheça que a querela entre a ciência, por um lado, e a filosofia e a teologia, por outro, é um conflito que se enquadra confortavelmente no âmbito da epistemologia iluminista. Aquilo que precisamos de entender é o fato de estes modos de conhecimento se oporem coletivamente a formas de pensamento e sabedorias alheias ao paradigma ocidental. O colonial propriamente dito poderia definir-se em termos dessa terra incógnita epistemológica. Como observou Locke de forma bem reveladora, “No princípio o mundo todo era a América”. Longe de representar a superação universal do “estado de natureza” pela sociedade civil, o que o Iluminismo fez foi criar o estado de natureza, consignando-lhe amplas extensões de humanidade e vastos conjuntos de conhecimentos. A cartografia, enquanto disciplina, inscreveu uma demarcação precisa entre a metrópole civilizada e as distantes terras selvagens (americanas, africanas, oceânicas). Esse mundo “natural”, na lógica geo-temporal lockiana, tornou-se também uma história “natural”. A contemporaneidade e a simultaneidade dos mundos do Outro colonial tornaram-se uma espécie de passado dentro do presente.

Para se chegar ao tipo de pensamento pós-abissal capaz de transcender completamente a oposição binária metropolitano/colonial, é necessário travar uma batalha que excede parâmetros epistêmicos. Apenas se pode confrontar o poder hegemônico através das lutas daqueles grupos sociais que têm sido sistematicamente lesados e privados da possibilidade e do direito de representar o mundo como seu. Os seus conhecimentos, nascidos em lutas anticapitalistas, anticoloniais e antipatriarcais, constituem aquilo a que chamo epistemologias do sul. Tais lutas não se regem por princípios anti-iluministas (a opção conservadora, de direita), mas criam condições para que seja possível uma conversação entre diferentes projetos de Iluminismo, uma ecologia de ideais iluministas.

Os conhecimentos nascidos nas lutas apontam para a razoabilidade (troca de razões) e não para racionalidade unilateralmente imposta, e partem das consequências em vez de partirem das causas. A noção de causa enquanto objeto privilegiado de conhecimento—a ideia de que a nossa tarefa consiste em ir cada vez mais fundo até se chegar, por fim, às fundações epistemológicas ou ontológicas, a causa sui ou causa sem causa—é ela própria um artefato da modernidade ocidental. Para os oprimidos, uma epistemologia a partir das consequências torna legível a experiência e possível a justiça. Só assim podem as ruínas converter-se em sementes.]

Por  Boaventura de Sousa Santos in Outras Palavras.

“Inteligência Artificial, novo pesadelo?”

Interligencia
Ilustração: E-Commerce Brasil

[Em “Vida de Galileu”, provavelmente sua peça mais notável, Bertolt Brecht imagina a fala final do grande cientista do Renascimento a seus pares. A obra foi escrita durante o tormento da 2ª Guerra Mundial, em meio os exílios do autor – por isso, o Galileu de Brecht já não compartilha o entusiasmo automático pela Ciência presente em outras obras da tradição iluminista e mesmo marxista. Diz ele, em tom de advertência quase desesperada: “O precipício entre vocês e a humanidade pode crescer tanto que ao grito alegre de vocês, grito de quem descobriu alguma coisa nova, responda um grito universal de horror”. Há duas semanas, a revista britânica Economist publicou um longo estudo sobre os novos avanços a Inteligência Artificial – especialmente seu uso nos locais de trabalho. Diante da leitura, é impossível não sentir de novo o calafrio que assombrou o dramaturgo alemão.

Desenvolver Inteligência Artificial, explica Economist, significa dotar computadores e softwares de capacidade para processar imensos volumes de dados e – principalmente – para encontrar padrões e fazer previsões sem ter sido programados para tanto. Alguns usos podem parecer neutros, ou até benéficos. A Amazon e a Leroy Merlin (rede francesa que vende, no varejo, materiais de construção e de uso doméstico) desenvolveram sistemas que recompõem estoques com enorme precisão e economia. Podem fazê-lo porque seus computadores levam em conta, além da simples reposição do que foi comprado pelos clientes, dados como as previsões de tempo e a ocorrência de feriados (que podem alterar a frequência às lojas). Os algoritmos permitem prever a demanda por milhões de produtos, com até 18 meses de antecedência. Abstraia, por um momento, o interesse nas empresas. Pense nos enormes desperdícios – sociais, ambientais, econômicos – que poderiam ser evitados se fosse possível saber antecipadamente, por exemplo, quantos milhões de toneladas de papel, de tomates ou de alumínio será preciso produzir, num determinado período, para satisfazer às necessidades humanas.

Mas, em sociedades regidas pelo lucro, dinheiro atrai dinheiro – e a tecnologia acaba alocada para os setores em que contribuiu para concentrar riquezas. O Caesar’s, um conglomerado norte-americano de hotéis e cassinos (presente também no Brasil) usa Inteligência Artificial, por exemplo, para identificar os prováveis objetos de consumo de cada cliente e induzir à compra. Os usos mais devastadores, porém, estão no mundo do trabalho.

A Inteligência Artificial permitirá eliminar uma imensa quantidade de empregos. A substituição, nos callcenters, de humanos por sistemas crescerá cinco vezes, até 2021, em todo o mundo. O Metro, um grupo varejista alemão, planeja trocar os caixas de suas lojas por scanners que leem o código de barras dos produtos já no carrinho de compras e fazem a cobrança. A Bloomberg, uma agência global de notícias econômico-empresariais, já desenvolveu programas que, sem necessitar de qualquer auxílio humano, examinam relatórios financeiros de empresas e redigem notícias sobre eles. Convenhamos: são documentos que não requerem análises refinadas. Mas – pergunte a si mesmo – os redatores liberados de tais tarefas maçantes serão redicrecionados para outras mais nobres? Poderão, por exemplo investigar o resultado social da atuação de tais empresas? Ou terminarão ou simplesmente descartados?

Além de desempregar em massa, a Inteligência Artificial poderá estabelecer níveis inéditos de controle sobre quem mantém a ocupação. A relação de novos instrumentos é aterradora. A Amazon acaba de patentear uma pulseira que transmitirá, do pulso dos trabalhadores, informações detalhadas sobre cada passo deles nas instalações da empresa. O mesmo bracelete emitirá automaticamente pequenas vibrações, quando houver sinais de que o desempenho do funcionário não atende a todos os requisitos de produtividade.

É um entre muitos exemplos. O Workday, outro software, cruza constantemente 60 tipos de informação para prever comportamento dos empregados. O Humanyze (sim, os nomes são orwellianos) detecta cada contato dos funcionários com seus colegas e se conecta com suas agendas e e-mails. O Slack, um aplicativo de mensagens, avalia a rapidez dos trabalhadores para cumprir certas tarefas e permite identificar quem esteja divagando, ou em suposta má conduta. Slack, aliás, é acrônimo para “searchable log of all conversation and knowledge” (algo como “registro disponível de toda a conversação e conhecimento”). O Cogito escuta os diálogos telefônicos entre trabalhadores e clientes e estabelece “rankings de empatia”. O Veriato, acoplado a computadores, mede as pausas no trabalho e mesmo a velocidade dos toques no teclado…

A conjuntura favorece as empresas. Num cenário de desemprego muito elevado, lembra o estudo do Economist, os assalariados estão sendo induzidos a assinar contratos de trabalho que autorizam a invasão de sua privacidade. Este retrocesso é viabilizado por dispositivos como a “prevalência do negociado sobre a lei”, presente na contrarreforma trabalhista brasileira.

A Inteligência Artificial é necessariamente desumanizadora? Para autores como o economista norte-americano Jeremy Rifkin, a resposta é, evidentemente, não. Em Sociedade com Custo Marginal Zero: A Internet das Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e o Eclipse do Capitalismo, Rifkin imagina um cenário completamente distinto do descrito por Economist – que hoje parece prevalecer. Ele vê, na convergência de três revoluções tecnológicas (da conectividade, das novas energias e dos transportes), a chance de uma brutal economia de recursos. Ela estaria associada, porém, não à concentração de riquezas, mas à garantia do acesso de todos aos bens necessários para uma vida digna, com mínimo consumo dos bens naturais. Uma brevíssima síntese do pensamento do autor (que hoje presta consultoria ao governo chinês) pode ser vista neste vídeo [1].

Há anos, Immanuel Wallerstei não se cansa de alertar: a crise do capitalismo é profunda e provavelmente terminal. Mas isso não é, necessariamente, uma boa notícia. No lugar do sistema hoje hegemônico podem surgir tanto uma sociedade muito mais democrática e igualitária quanto outra, que aprofunde como nunca as marcas de exploração, hierarquia alienação que já vivemos. Os dilemas, esperanças e ameaças da Inteligência Artificial – algo que vale estudar em profundidade – parecem lhe dar toda razão.]

Por Antônio Martins para Outras Palavras

Nota

[1] https://youtu.be/DiNFgRm8jQI

 

‘Viveret: “Maio de 1968 ainda não terminou”’

Maio Paris
Reprodução

[Enquanto residia, como estudante, na cidade universitária de Nanterre, de onde partiu o “movimento de 22 de março”, Patrick Viveret participou dos acontecimentos de 68. O filósofo e ensaísta, que foi um dos animadores da corrente autogestionária nos anos 1970 e continua ativo nos movimentos altermundistas, aponta a pertinência das questões colocadas pela juventude em relação aos desafios de hoje.

O que o inspirava, em Maio de 1968, no plano político?

Fui muito influenciado por um livro de André Gorz, O socialismo difícil, no qual ele defendia principalmente o reformismo radical, entendendo a palavra “radical” no sentido daquilo que se relaciona à raiz. O fato de sustentar esta visão Isso me levou para longe do movimento de 22 de março, criado àquela época. Evidentemente, isso me valeu ser chamado de “direitista”. Mesmo associada ao adjetivo “radical”, a palavra “reformismo”, numa assembleia de 22 de março, era considerada inaceitável.

Mas Daniel Cohn-Bentid [um dos principais líderes de maio de 1968] me deixava falar assim mesmo, dizendo: “É evidente que estou em desacordo com a proposta direitista do camarada Viveret, mas lembro de que no seio do movimento 22 de março todo mundo tem a palavra”… Acho divertido recordar esse fato, pois mais tarde reencontrei todos os meus camaradas daquela época, inclusive Cohn-Bendit, claramente à minha direita!

Quais eram suas relações com Daniel Cohn-Bendit à época?

Sempre mantive boas relações com ele. Tive desentendimentos — e ainda tenho alguns, até hoje – porque achei na época que ele estava com uma visão muito esquerdista, e hoje que ele carece de radicalidade. Mas, como considero os desacordos uma oportunidade, desde que sejam ‘construídos’, para evitar mal-entendidos e processos de intenção, isso não me incomoda. Nesse período, Dany mantinha uma postura anarquista bastante convencional, mas tinha também a intuição de que o que fazia a força de Maio de 1968 era menos a política revolucionária do que a agitação cultural e de comportamento.

Como você analisa os acontecimentos?

Além dos livros de André Gorz, duas obras que descobriram palavras para o que era apenas intuições me marcaram fortemente à época. Para começar, o livro de Michel de Certeau, La prise de parole (Tomar a palavra). O que Michel de Certeau dizia era que a fratura induzida por Maio de 68 era tão inédita, que não havia linguagem para exprimi-la. É o que ele chama de “o inédito de 68”. De repente, “linguagens anteriores” a recuperaram, como os discursos neoleninistas ou neomaoístas, que, no entanto, eram totalmente inadequados à realidade dessa fratura cultural.

Outro livro que foi importante para mim é Mai 1968, la brèche (Maio de 1968, a brecha), de coautoria de Edgar Morin, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, e que diz um pouco a mesma coisa que Michel de Certeau: o que é importante em 68 é isso que se abre, e não o discurso de fechamento, que é essencialmente o discurso político “anterior”, da extrema esquerda, ou mesmo dos anarquistas.

Há um filme que traça essa ruptura entre a extrema esquerda e a realidade viva de 68, de Romain Goupil, Mourir à 30 ans (Morrer aos 30 anos), que conta a história de Michel Recanati, chefe do serviço de ordem da Juventude da então Liga Comunista Revolucionária. De todos os movimentos de extrema esquerda, este era um dos mais abertos, infinitamente mais que os movimentos trotsquistas ou maoístas duros – os maoístas estalinistas. Mas apesar de tudo Michel Recanati estava muito envolvido pela lógica de construção do partido revolucionário, ou pela formação do serviço de ordem para o confronto com a polícia etc. Só descobriu depois do fato, graças a sua namorada, outro lado de 68, infinitamente mais vivo, infinitamente mais interessante e mais frutífero: a vertente da intimidade. As mulheres, por exemplo, diziam aos homens: “Vocês vivem preparando a revolução, mas nós lhes dizemos que, no que diz respeito aos papéis sociais entre homens e mulheres, ela não se mexeu um centímetro!” Recanati tinha o mau pressentimento de ter passado ao largo de 68: ao invés de estar no centro dos acontecimentos, estava preparando o serviço de ordem. Acabou cometendo suicídio. É um filme absolutamente lindo e patético ao mesmo tempo, mas que diz o mesmo que Michel de Certeau ou os autores de La Brèche.

No final, essas hipóteses permitem compreender que 1968 não é somente o 68 francês, é sobretudo uma fratura cultural mundial – de leste a oeste e de norte ao sul. Ela será também a primavera de Praga, Berkeley, a luta contra a guerra do Vietnã, o movimento hippie etc. E o 68 francês, mesmo que tenha adquirido uma relativa importância em relação aos outros, deve estar sempre ligado a essa fratura mundial.

Maio de 68 é, portanto, uma vitória inacabada, que não tem linguagem para ser expresso, que não tem uma forma política verdadeira. Alguns anos depois, aquilo que vai se denominar movimento autogestionário tentará encontrar uma linguagem política. Mas em 68, mesmo, isso não existe.

Como narrar o acontecimento sem a existência dessa linguagem?

Ela só pode ser contada por fragmentos. Os grandes slogans são maravilhosamente antecipadores de alguns desses fragmentos. Por exemplo, o magnífico “Chega de perder nossa vida para ganhá-la”. Foi inscrito pela primeira vez nos muros da fábrica Sochau, como “Gilda, eu te amo. Chega de perder nossa vida para ganhá-la”. Circulou e se tornou “viral”, como diríamos hoje, abordando a mudança do trabalho e do emprego. É correlato a outro grande slogan, “Saco cheio de metrô, trabalhar, dormir” [“Ras-le-bol du métro, boulot, dodo”].

Esses temas não estão inscritos numa linguagem política – a maior parte dos atores de extrema esquerda consideram que são movidos pelo hedonismo pequeno-burguês. A grande batalha, inclusive no seio do movimento de maio, é entre aqueles que, sem saber exatamente a razão, sentem qualquer coisa da ordem do essencial (é o caso de atores como Cohn-Bendit), e aqueles que fundamentalmente não creem nisso. Eles participam, mas têm como única preocupação “a construção do partido revolucionário”. Como resultado, não estão presentes no coração de 68, que é a experiência de tomar a palavra.

O que resta de maio de 68?

A tese que defendo é que as questões colocadas por 68 estão diante de nós e não atrás de nós. Os slogans que acabo de evocar abrem debates muito atuais: a questão que Hannah Arendt colocou no plano teórico em A condição humana, sobre a passagem de uma civilização do trabalho e da labuta para uma “civilização da obra”. Essa questão hoje não é mais teórica, mas prática. Quer dizer, a possibilidade de uma nova divisão de tarefas entre os robôs e os humanos, reservando por exemplo aos humanos o que é trabalho e artesanato em vez de emprego. Levanta também a questão de novas formas de ligação entre trabalho e renda, questões como renda cidadã.

Em 1968 apareceu também, certamente, a questão do prazer (“Gozemos livremente”), a questão da revolução sexual e, de forma mais ampla, da revolução dos costumes. Contudo, essas questões continuam presentes, e um debate como o da revolução sexual exige, ainda mais, um trabalho de renovação na arte de amar que não pode ser limitado à liberação sexual.

É preciso não esquecer, enfim, que 68 intervém num momento em que no mundo inteiro se anuncia o esgotamento do grande ciclo socialdemocrata do pós-guerra. Ele se caracterizava por três elementos: um crescimento essencialmente material (cuja natureza não questionamos), mas para todos; um modo de produção industrial; e o Estado-Nação. Ao mesmo tempo, há um não pensamento sobre a questão ecológica, por meio da questão do modelo de crescimento; um outro, se poderia dizer, sobre a questão espiritual no sentido amplo; e ainda sobre a questão mundial, que começa a surgir, mas o Estado ação não leva em conta.

Sim, mas é sobretudo a revolução neoliberal que vai substituir o ciclo socialdemocratas …

De fato, considerando-se que 68 produziu somente elementos de resposta fragmentária a essa tripla agitação, é a revolução anglo-saxã que lhe dará uma resposta. Ela levará em conta a dimensão mundial, mas reduzindo-a à globalização financeira. Levará igualmente em conta a decadência dos modelos industriais, integrando a mutação informacional (termo que me parece mais adequado que revolução digital), mas de forma puramente competitiva. Por fim, levará em conta a demanda por sentido, mas de maneira regressiva, colando a uma hipermodernidade tecnológica um modelo de retorno a sistemas de crença tradicionais, principalmente os religiosos.

O grande canteiro de obras do futuro, a meu ver, são as respostas a ser dadas a estas três aspirações fundamentais, que foram instrumentalizadas de modo regressivo pela revolução neoliberal que acabou num impasse e num fim de ciclo. Não é por acaso que os dois países que mais se engajaram nessa revolução, o Reino Unido com Thatcher e os Estados Unidos com Reagan, chegaram hoje, com o Brexit e a eleição de Trump, ao esgotamento desse modelo.

Em face dessa situação devemos levar em conta a questão mundial, mas dando a ela como resposta a cidadania planetária, no sentido que Edouard Glissant chamava “a mundialidade”; a mudança tecnológica, mas mostrando que ela pode resultar na lógica cooperativa do conhecimento e da informação; e finalmente uma demanda espiritual alternativa à regressão identitária e dogmática. Em suma, as três grandes questões sobre o devir da humanidade estão diante de nós: trata-se da questão ecológica e do futuro do nosso planeta; dos desafios ligados à mutação do trabalho (o que faremos de nossas vidas?) e, enfim, da mudança informacional, que inclui agora as biotecnologias (o que faremos de nossa espécie?).

Você estabelece, então, um vínculo direto entre o que foi manifestado de modo fragmentário no curto período de tempo de maio de 68 e as alternativas a serem trabalhadas, hoje?

Isso que em sociologia chamamos de fenômeno dos “criativos culturais”, analisado a partir do ano 2000 – em especial a grande pesquisa norte-americana de Paul Rey e Sherry Anderson, que deu origem ao termo “cultural creative”  – inscreve-se, a meu ver, em continuidade direta ao trabalho subterrâneo, poderíamos dizer, do ano de 68.

Não tiro daí, contudo, nenhuma consequência linear. Não estou dizendo que é a história da velha toupeira. Nada está ganho, e já retornamos de muitas maneiras a um período regressivo que ainda pode agravar-se. Reencontramos a grande questão, evidentemente presente em 68, de Eros e Tanatos, retomada por Edgar Morin: como mobilizarmos as forças de vida diante das lógicas mortíferas?

Como dizemos com o filósofo Abdennour Bidar, existe hoje uma dupla perturbação climática: o aquecimento global, juntamente com uma glaciação emocional e relacional. Quer dizer, quanto mais gente isolada e deprimida, mais elas vão tender a consumir em excesso. Enquanto que, inversamente, com um exemplo tão simples como a carona solidária, entendemos que os laços sociais produzem também efeitos energéticos.

Mencionei o Fórum Social Mundial com o eixo Transformação Pessoal Transformação Social (TPTS). Há um outro: é o do Fórum Social Mundial de Belém, em 2009, que colocou a questão do bem-viver no centro das transformações ao mesmo tempo ecológicas, sociais e democráticas. Podemos dizer que há aí uma continuidade profunda com as questões colocadas em 68. Como na época eram perguntas, não havia respostas disponíveis, apenas fragmentos de respostas. Slogans e imagens desempenham um papel muito importante sobre a imaginação: o essencial de 68 é falado dessa forma.

Mas a possibilidade de construir elementos de visão social, de projetos que não se contentam em obter respostas fragmentárias sob a forma de slogans, apresenta-se agora, a meu ver. A humanidade tem um encontro consigo mesma. O caminho proposto pela revolução conservadora está hoje bloqueado, ecológica e espiritualmente também, porque abriu caminho para identidades e regressões fundamentalistas, cuja forma extrema é o jihadismo. Mas há também um fundamentalismo religioso católico, protestante, judeu e muçulmano, hindu e budista, bem como um fundamentalismo identitário não religioso. A questão da mobilização das forças de vida é, pois, eminentemente atual.

Quais eram os laços entre estudantes e trabalhadores?

À época, essa ligação não chegou a se estabelecer, uma vez que o movimento dos trabalhadores estava capturado pela lógica da defesa do trabalho e do salário. Além disso, o principal ator sindical da época, a CGT (Confederação Geral do Trabalho), considerava os estudantes pequenos burgueses completamente fora da realidade. O sindicato que melhor vai compreender Maio de 68 será a CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho), em especial com um personagem extraordinariamente visionário, Edmond Maire, que verá no excesso do Metrô-trabalho-sono uma questão real, inclusive para o sindicalismo, e que é possível pensar o que seria, não um movimento do trabalho, mas um movimento da força de trabalho, da “classe operária”. Isso a CFDT da época vai entender, e é por isso que a aspiração autogestionária avança bastante rápido, desde o começo dos anos 1970, para tornar-se comum a uma corrente ao mesmo tempo política, cultural, intelectual e sindical, e que irá desempenhar um papel chave na época.

Essa que chamamos a segunda esquerda…

Sim, mas esse termo é quase redutor no que diz respeito ao fenômeno. Pois esse movimento, por meio da autogestão, coloca a questão da mudança com relação ao poder. O que é interessante na segunda esquerda é que ela vai introduzir, com Pierre Rosanvallon, a ideia – que por sua vez vem diretamente de Antonio Gramsci e será retomada por Michel Rocard –, de que as questões políticas são principalmente questões culturais, através da noção de cultura política. E que devemos nos libertar do modelo de cultura social estatal, ao mesmo tempo comum ao comunismo e a boa parte da social-democracia na França.

Há alguma coisa, na tentativa de criar uma ligação entre estudantes e trabalhadores, que não chega a se produzir na época. Mas, nos anos 1970, a luta da [fábrica de relógios] Lip revelará isso: quando os trabalhadores da Lip afirmam “a fábrica é ali onde estão os trabalhadores”, eles demonstram a capacidade, através da apropriação do trabalho, de deixar a parte “labuta e dependência” para assumir a parte “trabalho”. Ou ao menos, como disse André Gorz, de fazer a distinção entre trabalho forçado e trabalho escolhido.

Existem elementos que anunciam ou preparam 68?

Sim, há algo muito interessante para relacionar, na França pelo menos, que é 1962 e 1968. Em 1962 acaba a guerra da Argélia. Pela primeira vez em séculos, as gerações de jovens não têm como horizonte partir para a guerra, diretamente, ou a preparação para ela. Não temos noção do quanto a organização das sociedades é estruturada pela questão da guerra. Uma enorme lacuna se abre então, com a pergunta: o que fazer de nossas vidas?

Se a guerra não é mais o elemento estruturante da vida social — diretamente para os homens, é claro, mas também para as mulheres e as crianças — um novo espaço se abre, que é em parte vertiginoso. Parece-me que essa ligação entre 1962 e 1968 raramente é feita. E que nós subestimamos, na sinistrose reinante, um fenômeno considerável na história da humanidade: a guerra não é mais considerada um estado normal das sociedades. No decorrer dos séculos, recusar-se a fazer a guerra era considerado um ato de traição. Esse novo fato é pois uma perturbação considerável, acrescida ao fato de que a fome e as epidemias desapareceram. A energia liberada por essas coisas, ao lado da maior duração da vida, criam novas possibilidades. Então, as três grandes questões que mencionei anteriormente – o que fazer de nossas vidas, da nossa espécie, do nosso planeta? – são questões completamente novas.

Ainda há que se trabalhar hoje, segundo vocês, “linguagens anteriores” à época?

Por exemplo, a obsessão do emprego, que desencadeia a chantagem no trabalho. Se saíssemos dessa lógica em direção ao trabalho e profissão em que nos desdobramos e nos desenvolvemos, teríamos uma liberação do imaginário. Umas das razões pelas quais o movimento sindical não chega a integrar plenamente a questão dos desempregados é que raciocina de modo que, se alguém não está mais no emprego, ele sai do campo de reflexão.

Então, se pensarmos em termos de trabalho e profissão, um pouco como a ATD Quarto Mundo faz em sua experimentação com os Territórios Zero Desempregados, em vez de falar de pessoas como candidatas a emprego, falamos delas como pessoas que oferecem suas habilidades. Começamos por lhes perguntar quais competências têm. E vamos construir o modelo de empreendimento com base nessa oferta de habilidades, e não com base na demanda por emprego.

Outro exemplo: a regressão identitária. Minha visão é bem expressa por um autor redescoberto em 68, que é Wilhem Reich. Em Psicologia de massas do fascismo ele analisa, por exemplo, isso que denomina a “peste emocional”, isto é, quando vítimas de um sistema que, num plano puramente racional, deveriam voltar-se contra o sistema, em particular o sistema capitalista, voltam-se de fato contra ouras vítimas do mesmo sistema — frequentemente aqueles que se encontram logo abaixo de si. Se pensarmos em termos puramente racionais, não conseguimos compreender. Se pensamos em termos emocionais, compreendemos bem o que acontece: trata-se de um modo de manter a diferença, de não naufragar. Sou talvez o último da classe, mas pelo menos ainda estou na classe, e rejeito o imigrante que entra ali.

O conceito de “peste emocional”, que vai permitir a Reich compreender, por exemplo, os trabalhadores que acabaram por aderir ao nazismo, ao fascismo etc., é uma chave para compreender, por exemplo, a força da Frente Nacional, na França. E não se combate um fenômeno identitário se não se compreende em profundidade os medos que o alimentam, se nos contentamos em demonizá-lo. Reich dizia que por trás da peste emocional há uma couraça do caráter. A energia de vida encontra-se esterilizada nas vítimas de um sistema, e isso bloqueia sua capacidade de resistência criativa.

É preciso que nos reapropriemos do título do programa do Conselho Nacional de Resistência (CNR), redigido em 1944, Os Dias Felizes. Pois escolher a alegria é um ato de resistência política. Conseguimos identificar o fato de que um sistema de dominação vive da depressão, seja ela econômica ou política. O primeiro ato de resistência em relação a um sistema de dominação é unir esforços para sair da depressão. Sair do atordoamento. Em estado de perturbação, até mesmo as vítimas não imaginam que seja possível fazer de outra forma. Encontramos aqui o melhor de 68, inclusive em seus elementos inacabados.]

Patrick Viveret é filósofo no Instituto de Estudos Políticos de Paris e um teórico particularmente inovador em temas como Riqueza, Moeda, Crédito, Globalização e Democracia. Publicou, entre diversas obras, “Reconsiderar a Riqueza” (Ed. UnB, 2006) em que disseca a parcialidade de cálculos como o do PIB e os interesses que há por trás deles. Participa ativamente, desde 2001, dos Fóruns Sociais Mundiais. Colabora atualmente com a revista francesa Territoires.

Tradução: Inês Castilho para o site Outras Palavras.

“’Céu é o limite’ para Lava Jato após prisão de Lula’, diz cientista político”

coxinha
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[Após a ordem de prisão contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a operação Lava Jato passa a ter “o céu como limite” se não sofrer qualquer interrupção, diz o cientista político Marco Aurélio Nogueira.

Em entrevista a BBC Brasil, Nogueira – professor titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – compara a estratégia de investigadores envolvidos na operação à dinâmica do jogo de dominó.

“É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras”, diz Nogueira. “No momento em que se consegue fechar o cerco e levar Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos”.

Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na ditadura militar, Nogueira foi detido durante um congresso da sigla e passou duas noites sob a custódia da Polícia Federal, em 1982.

Nos anos seguintes, afastou-se da vida partidária e passou a se definir como um “comunista democrático e sem partido”. Paralelamente, tornou-se um dos maiores especialistas do país na obra do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), considerado uma das maiores influências da esquerda moderna brasileira.

Na entrevista à BBC Brasil, Nogueira diz ainda que o ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro (PSL) deverá ser o maior beneficiado pela saída de Lula da eleição presidencial.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil – Qual a relevância histórica da ordem de prisão contra Lula?

Marco Aurélio Nogueira – Do ponto de vista político, ela agrava a condição de Lula se manter como o candidato a presidente nas eleições.

Outro ponto é que, na medida em que uma decisão desse tipo alcança uma figura de porte tão grande, ela acaba por emitir sinais para a sociedade de que a Justiça está sendo organizada para valer. De que não há mais limites para se pegar eventuais corruptores ou corruptos estejam onde eles estiverem, sejam de que classe social ou de partido político eles forem.

BBC Brasil – Muitos argumentam que a Justiça não tem tratado o PSDB com o mesmo rigor com que trata Lula e o PT.

Nogueira – Não há como fazer comparação entre o tamanho do esquema montado no plano federal (durante o governo do PT) e os esquemas que foram montados pelo PSDB em São Paulo e Minas Gerais. O esquema federal era muito forte, havia muito dinheiro envolvido, muitas empresas, muitas ligações internacionais. Ali se tratava de comprar uma briga de cachorro grande.

BBC Brasil – Acredita que a Lava Jato manterá sua vitalidade após a prisão de Lula?

Nogueira – A Lava Jato tem atuado até hoje como se disputasse uma partida de dominó. É preciso quebrar uma peça para desencadear a quebra de várias outras. Ela usou a estratégia de capturar o principal personagem da vida política brasileira, o Lula.

A partir daí, se a Lava Jato não sofrer uma interrupção, o céu é o limite. No momento em que se consegue fechar o cerco e levar o Lula e alguns outros personagens desse esquema para a prisão ou para a condenação judicial, o caminho acaba por ficar livre, e a operação deverá explorar outros núcleos.

Por isso, quase todos os partidos estão de alguma maneira solidários com o Lula. Pressionaram o STF (Supremo Tribunal Federal) para aliviar a pressão em cima dele antes, o que livraria a cara de um monte de gente.

Hoje (sexta-feira) foi preso o principal operador do PSDB em São Paulo, o (ex-diretor da Dersa) Paulo Preto. Pode ser o início de alguma coisa. A Lava Jato poderá alcançar, via Procuradoria Geral da República, o (presidente) Michel Temer, como a operação Skala deixou claro. Há uma série de coisas que, se acionadas, poderão recompor o modus operandi do sistema político brasileiro.

Não acho que isso vá acontecer a tempo de interferir nas eleições de 2018. É um processo de mais longo prazo, que terá de se estender com todos os obstáculos que surgirem.

BBC Brasil – Qual o significado da prisão para a trajetória de Lula? Ele está morto politicamente?

Nogueira – A rigor, a morte política nem sempre se dá nem mesmo quando o fulano morre. A força política pode subsistir até mesmo a materialidade física de uma pessoa. Basta lembrarmos o tanto que Getúlio Vargas, depois de sua morte em 1954, interferiu na política brasileira.

Preso ou solto, acho que Lula vai continuar muito vivo. Não tem como ele sumariamente ser descartado da política brasileira simplesmente por um ato da Justiça que o enviou à prisão.

Há muitos recursos que podem ser mobilizados em termos simbólicos, ideológicos, organizacionais e partidários para manter vivo esse personagem – seja como fator real de interferência na política, seja como mito, herói ou mártir.

BBC Brasil – Como Lula poderia influenciar na eleição de 2018 se estiver preso?

Nogueira – Vai depender muito de que engrenagens forem montadas entre o Lula prisioneiro e o eleitorado brasileiro. Ele poderá influenciar na escolha de um candidato que vá substituí-lo e encarná-lo no processo eleitoral. Mas isso precisaria passar por uma discussão muito grande, que leve em consideração as dificuldades que o próprio PT sempre teve de substituí-lo como liderança.

Se o Lula na cadeia puder fazer campanha para outro candidato, que outro candidato será esse? O PT se preparou para apresentar uma alternativa? Tem lideranças que possam se colocar numa via de força semelhante ou próxima à do Lula? Não tem. Então isso complica muito as possibilidades de transferência.

Também vai depender muito da capacidade que os partidos pró-Lula tiverem para levar sua mensagem, como ventríloquos do Lula. Os partidos que giram em torno do PT são muito fracos. E o próprio PT está muito desbaratado com os fatos das duas últimas semanas.

BBC Brasil – Qual o potencial de outra candidatura do PT? Quem o senhor acredita ser o nome mais provável a substituir Lula?

Nogueira – Não consigo ver como o PT vai resolver esse problema. Eles já deveriam ter feito isso alguns meses atrás. Agora vai ser muito difícil, porque os políticos que foram aventados, como Fernando Haddad e Jaques Wagner, são políticos muito fracos, que não são digeridos por inteiro até pelo próprio PT. O Haddad sempre foi hostilizado no PT como um petista tucano.

Ficou muito difícil para o PT encontrar uma saída em termos de candidatura que realmente promova um crescimento ou mantenha pelo menos a força eleitoral do partido.

BBC Brasil – O PT sobrevive à prisão do Lula?

Nogueira – Sobrevive. Não sei se com a mesma força de antes, porque o partido sofreu muitas quedas de 2016 para cá, seja em termos políticos, com o impeachment e as derrotas nas eleições municipais, seja do ponto de vista jurídico-político. A combinação desses dois percursos acidentados deverá afetar o partido no que diz respeito à sua imagem.

O PT tenderá a perder uma parte grande da classe média, que era uma parte importante do eleitorado petista, e poderá até mesmo ter sua imagem queimada ou ofuscada entre a população mais pobre, que vai ter de digerir esse processo.

No caso da classe média, o cenário é mais difícil, porque ela é muito mais moralista que as massas populares. A massa popular, os eleitores pobres do Lula, é pragmática.

Eles são lulistas porque têm uma postura de agradecimento com o Lula, e, mesmo que ele seja corrupto, eles perdoam. Estão acostumados com a corrupção, não há um veto moral ao político corrupto no seio da população mais pobre. O que há ali é o reconhecimento do político que prestou algum tipo de benfeitoria social.

BBC Brasil – Quais os impactos da prisão de Lula para outros partidos de esquerda não tão alinhados ao PT e que lançaram candidatos à Presidência, como o PDT, de Ciro Gomes e o PSOL, de Guilherme Boulos?

Nogueira – Talvez isso se aplique ao Ciro Gomes, mas não ao PSOL. O Boulos está no palanque da resistência no Sindicato dos Metalúrgicos. Ele sempre foi uma liderança sintonizada com o lulismo. Boulos faz certo tipo de crítica, mas é muito mais próximo do Lula do que qualquer outra figura do PSOL.

No caso do Ciro Gomes, ele tem uma trajetória política que só com muito esforço pode ser aproximada da esquerda. Ele não tem um partido propriamente de esquerda e já passou por tantos partidos que é difícil entendê-lo simplesmente como uma figura de esquerda. Pode-se dizer que é um progressista com uma carreira própria.

Ele terá de pensar como se aproveitar desse afastamento do Lula. Acho que Ciro agirá muito mais em função da oportunidade eleitoral do que de solidariedade a Lula. Ciro imagina ter chance eleitoral e, dentre os candidatos do progressismo, ele e a Marina Silva são os que de fato têm mais fôlego.

BBC Brasil – Ciro e Marina são os principais beneficiários da saída de Lula da disputa?

Nogueira – Não acho. Uma parte grande do voto do Lula vai para o Bolsonaro, porque ele está fazendo uma campanha que de alguma maneira copia certas práticas e procedimentos que foram típicos do Lula. Só que Bolsonaro faz isso com o sinal invertido. O Lula era bonzinho, o Bolsonaro é mauzinho.

Eles estão tentando construir por vias antagônicas uma narrativa de trajetória que se aproxima muito da ideia do salvador da pátria, daquele sujeito que assumirá o poder presidencial para varrer tudo o que há de errado no Brasil.

Se o Bolsonaro de fato ganhar, a gente sabe que não será bem assim. Tanto que o Lula de 2002 emergiu com um discurso desse tipo e foi se acomodando ao jogo político, fazendo alianças espúrias e deixando de fazer o que seu discurso de campanha anunciava, que era uma reforma social profunda no país.

O Bolsonaro que rosna para todos os lados e faz um discurso agressivo contra a esquerda, contra a proteção social, em favor de armas, se eventualmente ganhar a eleição, vai também ter de dimensionar esse discurso e negociar com as forças políticas que estão ali. Nessa operação, ele poderá ser completamente descaracterizado como um mauzinho.

BBC Brasil – Nos últimos dias nota-se um acirramento das tensões entre as instituições, como por exemplo no julgamento do habeas corpus de Lula no STF e nas declarações do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, interpretadas por muitos como uma pressão sobre o Judiciário. Como a prisão de Lula afeta o equilíbrio entre as instituições?

Nogueira – Isso vai depender muito de qual será a reação do PT, dos movimentos sociais e dos outros partidos. Se apostarem numa linha de resistência e combate, de enfrentamento, inclusive desafiando a Justiça, a gente estará num caminho de risco, no qual poderemos assistir uma maior corrosão do equilíbrio institucional do país e até mesmo uma espécie de revival da intervenção militar, que é uma coisa que funciona no Brasil como uma espécie de sombra da política.

Os militares estão sempre aí e sempre poderão ser estimulados e impulsionados a se intrometer na política.

Do ponto de vista do sistema como um todo, o grande problema hoje no país é como o sistema judiciário vai se recompor. Hoje, dentre todos os sistemas, até mesmo o sistema político, ele é o que conhece uma crise mais profunda e está todo dividido.

Não tem mais um centro de coordenação que faça valer a hierarquia do sistema. O próprio STF, que deveria o guardião desse sistema, está todo atrapalhado, porque parece estar enciumado com o protagonismo de uma corte de primeira instância, do juiz Sérgio Moro, e o sucesso que ele está tendo na relação com a sociedade.

Isso pode ser um fator de complicação, porque o sistema judiciário dividido acaba por comprometer seu serviço no que diz respeito às garantias, à liberdade etc.

BBC Brasil – Lula tem comparado o cerco judicial que enfrenta à perseguição sofrida por Getúlio Vargas. Os dois processos se equivalem? Há outros episódios na história do Brasil comparáveis ao cenário vivido por Lula hoje?

Nogueira – Já tivemos presidentes da República que foram presos ou exilados. Na Primeira República, Washington Luís foi mandado para fora do país após a Revolução de 1930. Mas o mundo era muito diferente, é difícil fazer uma comparação.

O Lula é muito diferente de todos que vieram antes dele. O que poderia ser mais próximo é o Getúlio. Mas Getúlio é um personagem do Brasil tradicional, que já desapareceu.

O curioso é que Lula se compare com Getúlio depois de fazer em sua carreira como sindicalista uma trajetória contrária ao getulismo. O sindicalismo do Lula era anti-getulista de maneira radical. Era um sindicalismo totalmente hostil ao trabalhismo getulista, tanto que comprou briga com os grandes sindicatos e parte dos partidos trabalhistas, como o PTB, o PDT e o Partido Comunista, que eram seguidores da estrutura sindical dos anos 30.

Outra diferença é que Getúlio se matou. Lula não dá nenhuma mostra de que fará isso.]

 João Fellet – @joaofelletDa BBC Brasil em Brasília – BBC Brasil

Outras leituras

Nota pública da CPT: o avanço da criminalização não vai parar nossa missão! – Pastoral Carcerária

O general falastrão e a esquerda imóvelOutras Palavras

Por uma esquerda que supere o mito do trabalhoOutras Palavras

O descaminho das humanidades – Carta Capital

Proseguir la inclusión social – Consciência Net

Sem emenda – A liberdade é melhor do que a censura – Sorumbático

O que pode acontecer com Lula por ele não ter se entregado à PF no prazo estipulado por Moro?

‘Brasil precisa do mesmo entusiasmo anti-Lula para fazer faxina em todo o sistema político’, diz biógrafo britânico

“Maio de 1968: um convite ao debate”

Rebedes
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[1968 constitui um evento de dimensão histórico-mundial (Wallerstein), assim como 1789-91, 1848, 1917, 1989-91, pois assinala um ponto de virada histórico suficientemente persuasivo para instaurar um novo world time (Eberhard). Particularmente contagiante, a expressão francesa da crise internacional, detonada em Paris no mês de maio, funcionaria como uma espécie de catalisador de outras revoltas antissistêmicas em arenas locais distantes como Varsóvia, Praga, Dublin, Berlim, Tóquio, São Paulo, Cidade do México ou Lima.

Devido a esta repercussão mundial da experiência francesa, convencionou-se nos meios jornalísticos e até mesmo acadêmicos reduzir 68 ao maio de 68, uma referência ao mês no qual a contestação de setores esquerdistas do movimento estudantil universitário explodiu nas barricadas da Rua Gay-Lussac, no entorno da Sorbonne em Paris. Já a referência a maio-junho de 68 incorpora o desfecho conclusivo da crise, quando o impacto causado pelos Acordos de Grenelle – pactuados, no fim de maio, pelo Ministério do Trabalho com a Confederação Geral do Trabalho (CGT), sob a direção do Partido Comunista Francês (PCF) –, somado à proibição das organizações revolucionárias mediante decreto governamental de 12 de junho, e a subsequente vitória eleitoral de De Gaulle, conseguiram finalmente canalizar as energias revolucionárias do movimento para saídas reformistas.

Contudo, este ano turbulento não começou nem terminou em 1968, algo que a expressão anos 68 também tenta exprimir. Na Itália, por exemplo, a contestação eclodiu um ano antes da rebelião na França, arrastando-se por mais dez anos.

A cada decênio, repõe-se uma situação de disputa pela memória e significado de 68, sempre renovada por uma série de publicações acadêmicas e editoriais jornalísticos que polemizam sobre o anacronismo ou, pelo contrário (a depender do ponto de vista), sobre a atualidade ou contemporaneidade das aspirações libertárias e energias revolucionárias liberadas naquele ano.

Não há também consenso quanto ao seu impacto sobre a vida social, se este foi subestimado ou superestimado pelos protagonistas daquela geração. Afinal, 68 foi uma revolução social derrotada, ou tudo não passou de uma intentona hedonista e iconoclasta de perturbação do status quo pela juventude revoltada? 68 resultou na vitória da heteronomia e do individualismo pós-moderno ou simboliza um importante marco temporal nos processos de descolonização e de emancipação das populações submetidas às mais diversas formas históricas de opressão (patriarcal, heteronormativa, xenofóbica, étnico-racial, política)?

Algumas interpretações mais dogmáticas chegam a reduzir a história de 1968 a um tudo ou nada maniqueísta, incapaz de perceber a sua dimensão histórica real.

É nesse sentido, nos parece, que a provocação lançada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1984), de que o Maio de 68 não aconteceu, deve ser entendida: pois, se a luta não começou nas barricadas dos dias 10 e 11 de maio, tampouco ela terminou com as eleições de 23 e 30 de junho, mas se desenvolveu posteriormente também nas trincheiras do campo simbólico, isto é, nos conflitos ideológicos pela memória do evento. De fato, as interpretações sobre 68 dividem-se mesmo no interior de campos políticos afins, principalmente à esquerda do espectro sociopolítico, sobretudo na França, país onde o evento despertou as reações mais furiosas e apaixonadas. O caso dos antigos fundadores da revista Socialismo ou Barbárie (1949-67), Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, é exemplar nesse sentido. Para o primeiro, 68 foi uma revolta bem sucedida, enquanto que para o segundo, não passou de uma revolução fracassada.

Guy Debord, fundador de uma pequena, porém influente organização, a Internacional Situacionista (IS, 1957-72), constatou em 88 que nada havia sido até ali “tão dissimulado com mentiras dirigidas” quanto a história de 68. De fato, naquele mesmo ano, surgia pela primeira vez na França um livro sobre 68 produzido pelo campo néocon (neoconservador), chamado O pensamento 68, dos ideólogos Luc Ferry e Alain Renaut.

Vinte anos depois, no livro O pensamento anti-68 (2008), o filósofo Serge Audier alertava para o que chamou de trabalho de deslegitimação de 68, realizado por três atores principais, oriundos de campos políticos e intelectuais distintos, mas que convergiram na interpretação sobre aquele episódio: os gaullistas (retórica do “complô internacional”), os comunistas (retórica das “provocações esquerdistas”) e os neoconservadores (como o ex-presidente Nicolas Sarkozy), que pretendia liquidar a herança de maio de 68.

Em 2018, o atual presidente da França, Emmanuel Macron, restaurou a polêmica sobre o legado de 68 desde um ponto de vista modernisateurque, longe de liquidar com a herança de 68, pretende instrumentalizá-la, ressaltando as supostas características liberal-modernizantes do evento, enquanto oculta seus aspectos mais selvagens (como a greve geral de 10 milhões de trabalhadores com ocupação de fábricas e universidades).

Para os situacionistas[1], “de todos os critérios parciais utilizados para acordar ou não o título de revolução a tal período de perturbação no poder estatal, o pior é seguramente aquele que considera se o regime em vigor caiu ou se manteve. Esse critério […] é o mesmo que permite à informação diária qualificar como revolução qualquer putsch militar que tenha mudado o regime do Brasil, de Gana ou do Iraque”. A “prova mais evidente” do caráter revolucionário de 68, continuam os situacionistas, “para aqueles que conhecem a história do nosso século, ainda é esta: tudo o que os stalinistas fizeram, sem recuo, em todos os estágios, para combater o movimento, prova que a revolução estava lá”[2].

Debord, por sua vez, identificaria justamente na reação a 68 a origem do novo ciclo de dominação da sociedade do espetáculo, denominado espetáculo integrado, quando países de economia capitalista mais avançada (como França e Itália) passaram a incorporar, na tentativa de frear o avanço das forças revolucionárias liberadas internamente no decurso dos anos 1960-70, algumas das técnicas de governo empregadas tanto pelos regimes concentracionários de Stalin e Hitler, como pelas ditaduras militares dos países de economia capitalista mais atrasada (como Portugal, Espanha, Grécia, Chile, Argentina e Brasil) – sem, contudo, uma correlata supressão dos arranjos institucionais do chamado Estado de direito. Ao comentar a “estratégia da tensão” aplicada pelo Estado italiano contra o movimento del ‘77, Debord notou que “só se ouviu falar com frequência de ‘Estado de direito’ a partir do momento em que o Estado moderno, chamado democrático, deixou de ser democrático” (Comentários sobre a sociedade do espetáculo, § XXVI, 1988).

Como vimos, 68 não se restringe temporalmente aos meses de maio e junho, nem espacialmente à França. No Brasil, diferentemente de países formalmente democráticos como Estados Unidos, França e Itália, em 1968 a exceção se encontrava mais à vontade para mostrar o seu próprio rosto, dado que um processo de ruptura democrática já estava em curso no país há quatro anos. Mesmo assim, o ano de 68 foi marcado pela ascensão da resistência à ditadura instaurada em 64.

A luta dos secundaristas cariocas contra o aumento no preço das refeições, no início de 1968, que resultou na morte do estudante Edson Luís e nas mobilizações subsequentes, culminariam na Passeata dos Cem Mil, em junho. A partir do segundo semestre ocorreu a contraofensiva dos militares e dos apoiadores civis do regime. Em julho, a ocupação da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), na Rua Maria Antônia, foi destruída por forças militares e paramilitares de orientação anticomunista como o Comando de Caça aos Comunistas (com saldo de mais um estudante morto). Em agosto, forças de repressão invadiram a Universidade de Brasília (UnB), prendendo e espancando estudantes e professores. Em outubro, os militares invadiram o XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, prendendo centenas de lideranças do movimento estudantil. Em dezembro, a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5) fecharia ainda mais o regime, dando início aos chamados anos de chumbo. Com a posse do general Emílio Garrastazu Médici, então chefe do SNI [3], em 30 de outubro de 1969, o regime atinge o ponto de indistinção total onde “o serviço secreto não seria apenas mais um órgão da Presidência da República; seria a própria Presidência da República”[4].

Aos ouvidos brasileiros pós 2013, esse debate (pós 68) parece assumir contornos familiares. Afinal, é inquestionável o fato de que tanto 1968 quanto 2013 marcaram, guardadas suas respectivas particularidades históricas, períodos de acirramento das lutas sociais. Parece-nos que o traço mais distintivo entre uma conjuntura e outra, mais do que nas formas e conteúdos da contestação sociopolítica e da repressão policial, consiste no fato de que a violência estatal de 2013 foi operada, desta vez, não por um regime formalmente ditatorial como em 1968, mas por um regime formalmente democrático.

Se se quiser aplicar a crítica teórica do espetáculo – crítica essa fundamentalmente nucleada pela experiência de 68 – à crise sociopolítica brasileira de 2013-18, deve-se ler com especial atenção os escritos de Guy Debord nos anos 1980. Pois a crise e o esgotamento da chamada Nova República testemunham justamente a entrada definitiva do Brasil na era do espetáculo integrado.]

Por Erick Corrêa in Outras Palavras.

Notas

[1]As críticas teórica e prática dos situacionistas, indissociáveis da crise revolucionária francesa de maio-junho, ainda são pouco lembradas por nossa historiografia sobre 68. Quando mencionadas, incorre-se em algumas imprecisões. Olgária Matos reconhece, por um lado, que “foram os situacionistas que numa mescla de marxismo, anarquismo, surrealismo, fizeram a crítica mais certeira à sociedade ‘espetacular mercantil’, onde tudo se dá sob a forma da mercadoria e esta se dá como espetáculo” (1981, p. 68). Mas erra ao afirmar que “o dia 22 de março marcou a fusão entre o leninismo, o anarquismo e o situacionismo” (Idem, p. 69). De fato, o grupo 22 de Março ao qual ela se refere (fundado em 22/03/68), resultou de uma agremiação eclética que amalgamava, de modo geral, anarquistas, trotskistas e maoístas, mas não os situacionistas. A IS também não “se formou em Strasbourg” (Idem, p. 66), como afirma a autora, mas na Itália em 1957. Os situacionistas foram os pivôs do chamado Escândalo de Strasburgo, em 1966, um dos episódios antecipadores da crise de maio. Porém, apenas um dos membros da IS, Mustapha Kayathi (autor do manifesto A miséria do meio estudantil), detinha contato com estudantes radicais de Strasbourg. Cf. Paris, 1968: As barricadas do desejo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981. Já Daniel Aarão Reis Filho alude a “um texto dos anos 60” (A sociedade do espetáculo, de Guy Debord), para se compreender “o caráter mediático que a política assume desde então” (1999, p. 67). Ocorre que o livro de Debord é de 1967, e não explica 68 a posteriori, mas o antecipa em diversos aspectos, inclusive para além da questão “mediática”. Cf. “1968, O curto ano de todos os desejos”. In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice. Rebeldes e contestadores. 1968: Brasil/França/Alemanha. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 1999.

[2]Cf. “O começo de uma época”. In: Internacional Situacionista, n° 12, 1969, p. 13 (Tradução nossa).

[3]O Serviço Nacional de Informações é o serviço secreto brasileiro, vigente entre 1964-90. A partir de 1990, mudaria de sigla outras três vezes. Foi o efêmero DI (Departamento de Inteligência) entre 1990-92, SSI (Subsecretaria de Inteligência) entre 1992-99 e, desde então, Abin (Agência Brasileira de Inteligência).

[4]Cf. FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do Silêncio. A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005). Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 186.

 

“As raízes filosóficas da destruição do mundo”

Santo Agostinho
Sandro Boticelli, Agostinho de Hippo

[Sabemos/ para onde estamos indo. Há muitos anos os cientistas avisam que estamos explodindo os limites  ecológicos da Terra. Sabemos bem que estamos no meio de uma ruptura climática e colapso ecológico. Apesar disso, parecemos fisicamente incapazes de agir a partir desse conhecimento.

Os Estados Unidos elegeram para presidi-los um homem que prometeu desencadear um gigantesco ataque ecológico, e infelizmente cumpriu a promessa. O governo do Reino Unido produziu 150 páginas de greenwash que chama de Plano Ambiental de 25 Anos: a mesma tagarelice que governos covardes vêm publicando nos últimos 25 anos. Como sempre, ele foi descrito em determinados círculos como “um bom começo”. Nenhuma política, em lugar nenhum, é proporcional à escala do desafio que temos diante de nós.

O que nos impede de responder à ameaça? Durante anos suspeitei que a causa fosse ainda mais profunda que o poder das grandes corporações e a obsessão oficial pelo crescimento econômico, apesar de serem forças tão poderosas. Agora, graças ao livro mais profundo e de amplo alcance que jamais li, sinto que começo a entender o que pode ser.

The Patterning Instinct  (O Instinto de Modelagem, em tradução livre), de Jeremy Lent, foi publicado há alguns meses mas demorei um tempo para processá-lo, já que quase cada página me fez repensar o que considerava verdadeiro. Unindo história cultural e neurociência, Lent desenvolve uma nova disciplina que denomina história cognitiva.

Desde a infância, nossas mentes são modeladas pela cultura em que crescemos – o que produz trilhas que aprendemos a seguir, como se fossem caminhos através de um campo de grama alta. Ajudam a construir esses padrões de significado poderosas metáforas de raiz encravadas em nossa linguagem. Sem conhecimento consciente, elas guiam as escolhas que fazemos.

Lent argumenta que o caráter peculiar ao pensamento religioso e científico do Ocidente, que dominou o resto do mundo, empurrou a civilização humana e todo o mundo vivo para a beira do colapso. Mas mostra também como, compreendendo suas metáforas e padrões, podemos sair de nosso caminho e desenvolver novas trilhas através do campo de grama, o que nos afastaria da beira do precipício.

Há muitas questões pelas quais poderíamos começar, mas talvez uma das mais cruciais seja entender a influência do pensamento de Platão no início da teologia cristã. Ele propôs um mundo ideal percebido pela alma, existente numa esfera apartada do mundo material vivido pelo corpo. Para alcançar o conhecimento puro que existe acima do mundo material, a alma precisa separar-se dos sentidos e dos desejos do corpo. Platão ajudou a firmar uma profunda moldura no entendimento ocidental, associando capacidade de pensamento abstrato com alma, alma com verdade, verdade com imortalidade.

Alguns dos primeiros pensadores cristãos, em particular Santo Agostinho, levaram mais longe essas metáforas, até um ponto em que não apenas o corpo humano, mas todo o mundo natural passou a ser visto como anátema, que distrai e corrompe a alma. Deveríamos odiar nossa vida neste mundo para assegurar a vida no próximo.

O cristianismo, por sua vez, exerceu influência poderosa sobre o conhecimento científico moderno. Longe de romper com padrões de pensamento anteriores, a famosa crença de René Descartes – de que este consistia em “uma substância cuja essência ou natureza inteira é pensar e cujo ser não requer lugar e não depende de coisas materiais” – foi uma extensão das cosmologias platônicas e cristãs, com uma diferença crucial: substituiu a alma pela mente.

Se nossa identidade está estabelecida somente na mente, então, como insistiam os cristãos, nosso corpo e o resto da natureza, sendo incapazes de ter razão, não têm valor intrínseco. Descartes foi explícito sobre isso: ele insistiu que não há diferença “entre as máquinas feitas por artesãos e os vários corpos criados pela própria natureza”. A mente ou alma era sagrada, enquanto o mundo natural não possuía nem valor inerente nem significado. Existia para ser dissecado e explorado sem remorso.

Essa visão de mundo sustentou a revolução científica, que nos trouxe espantosas maravilhas e benefícios que transformaram nossas vidas. Mas também incorporou em nossas mentes metáforas de raiz catastróficas, que ajudam a explicar nossa atual relação com o mundo vivo. Entre elas estão as noções do humano desconectado da natureza, do nosso domínio sobre a natureza, da natureza como máquina e, mais recentemente, da mente como software e o corpo como hardware.

Essas metáforas de raiz continuam a informar o discurso público. O biólogo britânico Richard Dawkins, por exemplo, argumentou  que “um morcego é uma máquina, cuja eletrônica interna está tão ligada que os músculos de sua asa miram automaticamente os insetos”. Se uma máquina com a complexidade, auto-organização e autoperpetuação de um morcego foi desenvolvida, o professor Dawkins deveria nos dizer onde encontrá-la.

Num mundo em que falta supostamente valor inerente, mas no qual muitos de nós perderam a crença na alma imortal ou na santidade da razão pura, estamos diante de um vazio de significado. Buscamos preenchê-lo com um consumismo desenfreado. Para mudar nosso comportamento, afirma Lent, é preciso mudar nossas metáforas de raiz.

Isso não significa que deveríamos abandonar a ciência: longe disso. O estudo de sistemas complexos revela a natureza como uma série de sistemas auto-organizados, auto regenerativos, cujos componentes estão conectados uns aos outros de maneiras até há pouco inimagináveis. Isso mostra que, como propôs o grande conservacionista John Muir, “Quando tentamos selecionar uma coisa por si só, descobrimos que está atrelada a tudo o mais no universo.” Longe de estarmos afastados da natureza ou poder dominá-la, estamos incorporados nela, intimamente conectados a processos que nunca podemos controlar completamente. Potencialmente, isso nos possibilita ver o próprio universo como uma teia de significados: uma poderosa nova metáfora de raiz que poderia, talvez, mudar a maneira como vivemos.

Há muito trabalho a fazer até traduzir esses insights em políticas práticas. Mas me parece que Lent explicou por que, a despeito de nosso conhecimento ou mesmo de nossas intenções, continuamos a seguir o caminho do precipício. Para resolver um problema, precisamos primeiro entendê-lo: “um bom começo” é assim. Não podemos mudar o destino até que mudemos o trajeto.]

Outras Palavras

Por George Monbiot  com tradução de Inês Castilho.

“Seriam os ciborgues pós-capitalistas?”

[1 – Pós-humano: cérebro ciborgue

The cyborg is not subject to Foucault’s biopolitics; the cyborg simulates politics, a much more potent field of operations.
(O ciborgue não está sujeito à biopolítica de Foucault; o ciborgue simula a política, um campo de operações muito mais potente – tradução da Redação)  – Donna Haraway

(Por Rui Matoso [1] )

Na modulação atual do Império[1], o poder é exercido mediante máquinas que organizam diretamente os cérebros e os corpos, com o objectivo de criar um estado de alienação permanente e independente do sentido da vida, ou seja, o Império como Sociedade de Controle[2].

Neste sentido, a esperança daqueles que pretendem uma política radicalmente democrática reside na expectativa de que a subjetividade política do ciborgue[3], enquanto sujeito pós-humano, possua características totalmente distintas, de modo a não poder ser reinscrito na história do humanismo e da submissão à violência imperial.

Há muito que o ciborgue deixou de ser apenas o organismo cibernético da ficção científica, entrando definitivamente na esfera da realidade social -a nossa construção política mais importante-, mas significa também uma ficção capaz de mudar o mundo (Haraway: 36). Neste enquadramento, a noção de pós-humano assume a dupla transmutação do potencial plástico da espécie: a) ao nível biotecnológico[4], o processo de replicação sintética do ciborgue está desvinculado do processo de reprodução sexual-orgânica; b)  ao nível dos fenômenos mentais, i.e., da subjetividade individual e coletiva (individuação e transindividuação) como lugar de desconstrução da categoria de “humano” proveniente do iluminismo, por exemplo através de Michel Foucault[5] e da sua crítica da racionalização/normalização das sociedades disciplinares e da biopolítica.

Através da obra de Katherine Hayles (Hayles, 1999) e da sua crítica ao individualismo humanista liberal e do livre arbítrio autoproclamado, à qual a categoria de pós-humano permite contrapor o reconhecimento da agência relacional e distribuída pelo coletivo sociotécnico, corrigindo assim a excessiva ênfase na autonomia da consciência ensimesmada com uma proposta cibernética dos processos cognitivos incorporados na carne e simultaneamente expandidos à envolvente sociocultural e tecnológica.

A  fusão carne-máquina, apesar da sua sublimação no imaginário ciborgue sci-fi, não requer obrigatoriamente o fetichismo do autômato, do androide ou sequer do homem/mulher biônico(a). O evento da conexão entre cibernética, cérebro e organismo humano já se deu há várias décadas[6], somos já ciborgues de nascença[7] sem necessariamente termos circuitos electrônicos incorporados na carne ou implantes no cérebro.

De fato, quando o meio-envolvente forma ele mesmo uma bio-electro-esfera cibernética e quando o regime de computação penetra todas as esferas da vida, social, biológica ou econômica, alterando paradigmas de governança política[8] e constituindo-se globalmente como realidade computacional ou cognisfera, o pós-humano emerge como categoria para pensar este admirável mundo novo, sob duas perspetivas políticas antagônicas: i) um mundo de ciborgues como imposição final de uma matrix de controle  hegemônico sobre o planeta – que significa a abstração final corporificada na ciberguerra preventiva travada em nome da defesa, e jogada em simuladores de realidade virtual[9]; ii) de uma outra perspectiva, um mundo de ciborgues pode significar realidades sociais e corporais vividas, nas quais as pessoas não temam sua estreita afinidade com animais e máquinas, que não temam identidades parciais, posições contraditórias e a valorização da afinidade em vez da identidade (Haraway, 1991, p. 295).

É neste trabalho de adaptação constante da rede neuronal (neuroplasticidade) que reside, de acordo com Warren Neidich a operacionalidade do neuropoder (Neidich, 2010, p. 545). Isto significa que nada pode ser completamente externo ao humano, porque a sua extensão protésica e ubíqua não pode ser fixada. Esta parece-nos ser uma das condições do pós-humano[10], já que o “ser humano” deixou de existir tal como estávamos comumente habituados a pensar que existia, como uma entidade separada e em perpétuo antagonismo com o ambiente que lhe é externo (Cf. Pepperell: 22)[11].

Retomando Foucault, parece-nos claro que as interferências psicotecnológicas na estrutura da rede neuronal (neuropoder) e nas formas de consciência (noopower/noopolítica), requerem novas formas de resistência cultural antagonistas das formas de governabilidade ancoradas no controle e submissão das subjetividades. Tornam-se cada vez mais importantes, mais até do que as resistências contra os mecanismos de dominação e exploração. Neste aspecto, das formas de governabilidade, Antoinette Rouvroy, invoca a expressão algorithmic governmentality como aquela que não permite processos de subjetivação humana, pois, a “algorithmic governmentality is without subject: it operates with infra-individual data and supra-individual patterns without, at any moment, calling the subject to account for himself.” (“a governança algorítmica é sem sujeito: ela opera com dados infra-individuais e padrões supra-individuais, sem, a qualquer momento, convocar o sujeito considerar-se a si próprio” –tradução da Redação) (Rouvroy, 2012, p. 2).

Em Neuro-Futures: The Brain, Politics, and Power  (Jake F. Dunagan), encontramos o cerne de um debate em torno da construção social da subjetividade pós-humana que nos permita lidar com as condições do pós-humano, de tal forma que possibilite ultrapassar o status quo do ator político do antropoceno. Para Rosi Braidotti, uma teoria do pós-humano seria identicamente uma “generative tool to help us re-think the basic unit of reference for the human in the bio-genetic age known as ‘anthropocene’, the historical moment when the Human has become a geological force capable of affecting all life on this planet” (“ferramenta geradora para nos ajudar a repensar a unidade básica de referência para o ser humano na era bio-genética que se conhece como ‘antropoceno’, momento histórico em que o ser humano tornou-se uma força geológica capaz de afetar toda a vida neste planeta” – tradução da Redação) (Braidotti, 2013, p. 5). Trata-se portanto da necessidade de repensar uma outra figura do humano e de imaginar uma subjetividade que expresse e incorpore um sentido forte de coletividade, do relacional e da capacidade de construção de laços comunitários localizados, mas nomádicos (nomadic subjectivity):

The posthuman subjectivity I advocate is rather materialist and vitalist, embodied and embedded, firmly located somewhere, according to the feminist ‘politics of location’ (…) Because a theory of subjectivity as both materialist and relational, ‘naturecultural’ and self-organizing is crucial in order to elaborate critical tools suited to the complexity and contradictions of our times. (A subjetividade pós-humana que defendo é bastante materialista e vital, corporificada e incorporada, localizada firmemente em algum lugar, de acordo com as ‘políticas de localização’ feminista. (…) Pois uma teoria da subjetividade simultaneamente materialista e relacional, ‘natucultural’ e auto-organizadora é crucial para elaborar ferramentas críticas adequadas à complexidade e às contradições de nossos tempos – tradução da Redação) (idem., pp. 51-52)

Na atualidade do debate neurocêntrico, as propriedades plásticas do cérebro –  neuroplasticidade[12] – que permitem ao cérebro modificar-se a si mesmo em função da sua resposta às mudanças do meio-ambiente, apresentam-se como uma das problemáticas fundamentais. A plasticidade e a multiplicidade são duas constantes da nossa engenharia cognitiva concebida para a auto-transformação face ao meio-ambiente sociocultural, daí a importância de se conjugar  com a visão neuro-construtivista de Steven Quartz[13], para reclamar a importância de envolventes culturais e tecnológicos amenos, catalisadores de desenvolvimento neuronal, de autonomia e liberdade crítica do agenciamento:

Brain plasticity or neuroplasticity refers to the capacity of the brain to modify itself in response to changes in its functioning or environment(…)  We are beings factory-tweaked and primed in order to be ready to participate in hybrid cognitive and computational regimes, able to think and learn in ways that take us, bit-by-bit, far beyond the scope and limits of our basic biological endowments. (A plasticidade cerebral ou neuroplasticidade refere-se à capacidade de o cérebro modificar-se em resposta a mudanças no seu funcionamento ou ambiente (…) Somos seres com capacidade de aperfeiçoamento e preparados para participar de sistemas cognitivos e computacionais híbridos, capazes de pensar e aprender de maneira que nos levem, pouco a pouco, muito além do alcance e dos limites de nossas dotações biológicas básicas –tradução da Redação). (Clark, 2003:  84-86)

2 – Elogio do ciborgue irreverente

The brain is a work, and we do not know it. We are its subjects -authors and products at once- and we do not know it. (O cérebro é um trabalho, e não sabemos disso. Nós somos seus sujeitos – autores e produtos ao mesmo tempo – e não sabemos disso -tradução da Redação).

Catherine Malabou

Atualizando a concepção inicial de Marx, Franco “Bifo” Berardi introduz o conceito de cognitarian subjectivation e incide a sua análise nos excessos do trabalho semiótico nas redes telemáticas em torno da linguagem e da informação, i.e., na produção daquilo que designa como info-commodity ou semiocapital: “Semiocapital puts neuro-psychic energies to work, submitting them to mechanistic speed, compelling cognitive activity to follow the rhythm of networked productivity” (“O semiocapital coloca as energias neuro-psíquicas a trabalhar, submetendo-as à velocidade mecanicista, atraindo a atividade cognitiva para acompanhar o ritmo da produtividade em rede – tradução da Redação) (Bifo, 2010). Esta viragem (cognitiva) operada pelo semiocapital e pelo capitalismo financeiro só é possível porque se operam duas descodificações em paralelo, a do capital e a da língua.

Se por um lado o capital se tornou abstrato e desterritorializado, por outro nunca como antes a língua foi tão fortemente colonizada pelo “economês” – a economia com estatuto de linguagem universal. É neste horizonte regulado pela esquizo-economia que o capitalismo esquizofreniza cada vez mais na periferia (Deleuze e Guattari, 1997, p. 241), porque a esquizofrenia é o limite exterior do próprio capitalismo.

A cognição algorítmica é hoje central a um tecnocapitalismo que se apropriou dos mecanismos psicológicos do comportamento-cognição-afecção (ciberbehaviourismo[14]) e que integra a retroalimentação implícita ao coletivo sociotécnico (feedback) enquanto parte da equação política e ideológica do neoliberalismo, que pretende anular todas as pretensões históricas do materialismo dialético, afastando assim a conflitualidade  e os antagonismos sociais do centro da esfera política.

Contudo, nem as propostas de Lazzarato acerca da construção do homem endividado[15], nem as teorias farmacológicas e tecnocapitalistas de Stiegler[16], conseguem dar conta das transformações no campo da automação algorítmica que incluem hoje elementos[17] incomputáveis, e que excedem a mera instrumentalização da razão humana para fins de controle ideológico e poder simbólico.

Apesar da prudência necessária que a perspectiva foucauldiana da governamentabilidade biopolítica[18] sugere, a de termos parcimônia na celebração da liberdade inerente à neuroplasticidade, é num contexto de neoliberalismo complexo e mutante como o atual que a filósofa Catherine Malabou entrevê possibilidades progressistas para a plasticidade cerebral, possibilidades de rebelião, criatividade e antideterminismo:

To talk about the plasticity of the brain means – to see in it not only the creator and receiver of form but also an agency of disobedience to every constituted form, a refusal to submit to a model (…) making its history, becoming the subject of its history, grasping the connection between the role of genetic nondeterminism at work in the construction of the brain and the possibility of a social and political nondeterminism, in a word, a new freedom. (Para falar sobre o que significa a plasticidade do cérebro – ver nele não apenas o criador e o receptor da forma, mas também uma agência de desobediência a todas as formas constituídas, a recusa a se submeter a um modelo (…) fazendo sua própria história, tornando-se o sujeito de sua história, aproveitando a conexão entre o papel do não determinismo genético no trabalho da construção do cérebro e a possibilidade de um não determinismo social e político, em uma palavra, uma nova liberdade – tradução da Redação).(Malabou, 2008: 5–13) .

Catherine Malabou situa a neuroplasticidade no quadro da crítica da economia política,  argumentando que muitas das descrições da plasticidade cerebral são de fato justificações para uma flexibilidade neoliberal sem limites, ou seja, sinal de que o neoliberalismo é uma economia da plasticidade coadjuvada pelo conhecimento neurocientífico[19]  (Malabou, 2008, p. 41).

No enquadramento de uma crítica à neuroplasticidade neoliberal, o Manifesto Ciborgue de Donna Haraway é um autêntico reservatório de subversão e insubmissão, desde logo porque a identidade  ciborgue não pertence ao modelo da família orgânica nem ao projeto edipiano que o configura ao longo da história, por isso, o ciborgue nunca reconhecerá o mito do Éden nem será reverente, mostrando ter uma inclinação natural para unidade política sem necessidade de partidos de vanguarda (Haraway, 1991, p. 293).

É a ontologia híbrida do ciborgue que lhe fornece uma política, uma imagem condensada da imaginação e da realidade material que evoca a possibilidade de transformação histórica: “cyborg politics is the struggle for language and the struggle against perfect communication, against the one code that translates all meaning perfectly, the central dogma of phallogocentrism” (“a política do ciborgue é a luta pela linguagem e a luta contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz perfeitamente o significado, o dogma central do falogocentrismo” – tradução da Redação) (idem, p. 304).

Diante de um contexto civilizacional paranoico, onde a vigilância ativa (24/7) sobre os cidadãos se torna ubíqua e onipresente[20], a individuação psíquica e a transindividuação colectiva requerem novos espaços onde a privacidade seja possível. Para Michel Foucault, a privacidade é essencial enquanto espaço de resistência face ao poder hegemônico dos Estados e das corporações, alertando-nos para a necessidade do reconhecimento das estruturas e dos modos através do qual o poder é disseminado pelas relações sociais, comportamentos, hábitos, estruturas de conhecimento e instituições.

Ao relacionarmos, numa perspetiva histórica, a vigilância (escuta) e o potencial de disseminação e inculcação de palavras-de-ordem geradoras de medo e pânico social, é porque concordamos com Byung-Chul Han quanto ao fato de a liberdade de comunicação ilimitada se ter convertido hoje num mecanismo de controle e vigilância total (panóptico digital). Segundo Han, dirigimo-nos da vigilância passiva para uma época da psicopolítica digital, onde o controle ativo e as novas técnicas do poder neoliberal permitem intervir na psique e condicioná-la a um nível pré-reflexivo  (Han, 2014, p. 12).

É também através da conjugação das várias crises simultâneas que Braidotti considera pertinente o desafio colocado pelo pós-humano, nomeadamente na tentativa de superação do confronto histórico entre humanismo e anti-humanismo, e na sequência da emergência das vozes pós-colonialistas e da crise de alteridade que essa voz vem provocando um pouco por todo o globo, designadamente na velha Europa:

The new mission that Europe has to embrace entails the criticism of narrow-minded self-interests, intolerance and xenophobic rejection of otherness. Symbolic of the closure of the European mind is the fate of migrants, refugees and asylum-seekers who bear the brunt of racism in contemporary Europe.

A new agenda needs to be set, which is no longer that of European or Eurocentric universal, rational subjectivity, but rather a radical transformation of it, in a break from Europe’s imperial, fascistic and undemocratic tendencies. (A nova missão que a Europa deve abraçar implica a crítica a interesses mesquinhos, intolerância e rejeição xenófoba da alteridade. O simbolo do fechamento da mente europeia é o destino dos migrantes, dos refugiados e dos que pedem asilo, que enfrentam o racismo na Europa contemporânea. Uma nova agenda precisa ser definida, que não é mais a europeia ou eurocêntrica, a subjetividade racional, mas sim a sua transformação radical com uma ruptura com as tendências de uma Europa imperial, fascista e antidemocrática. – tradução da Redação) (Braidotti, 2013: 52)]

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Referências

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Bibliografia

[1]Hardt, Michael e Negri, Antonio (2000). Empire. Harvard University Press.

[2]Cf. Gilles Deleuze,  Postscript on the Societies of Control.

[3]«Cyborg subjectivity is refigured in accordance to the ontology of the code, “We become the codes we punch,”and cyborgs could be masters of the code.» (Dunagan, 2004: 7).  Cf. Geoff Cox (2013).Speaking Code: Coding as Aesthetic and Political Expression. The MIT Press.

[4]Matoso, Rui (2015). Biotransduções. http://bit.ly/2955T8j

[5]Entre outros textos, Cf. Foucault, Michel (1982). The Subject and Power. In Critical Inquiry, Vol. 8, No. 4, (Summer, 1982),The University of Chicago Press. Pp. 777-795.

[6]Segundo Katherine Hayles existem três fases de expansão da cibernética: a de primeira ordem (1945-1960); a de segunda ordem também por si denominada como autopoiética (1960-1985); a de terceira ordem ou da virtualidade (1985-1995); e a fase atual um quarto nível nomeado como regime da computação (Hayles, 2007: 161).

[7]Clark, Andy (2003). Natural-born cyborgs: Minds, Technologies, and the Future of Human Intelligence.  Oxford University Press.

[8]A este novo regime de governamentabilidade e controlo das subjectividades, capaz de instaurar simultaneamente uma realidade virtual, a codificação digital da vida e a redução das incertezas pelo tratamento algorítmico da informação acumulada, Antoinette Rouvroy caracteriza-o por se fundamentar em dois processos complementares: o data-behaviourism e a governação algoritmíca (Rouvroy, 2012).

[9]The Military-Entertainment Complex. Vide Serious Games, Harun Farocki (https://youtu.be/TcKL-_RtU5Y )

[10]Nota: O debate público em Portugal teve início em 2004, com o  Ciclo de Conferências ‘A Condição Pós-Humana. Técnica, Ciência e Cultura no século XXI’ http://www.cecl.com.pt/redes/cph/cph-home.html

[11]Para além do manifesto elaborado pelo próprio Robert Pepperell, The Posthuman Manifesto(http://www.robertpepperell.com/Posthum/cont.htm), identificámos ainda o A Metahumanist Manifesto de Jaime del Val e Stefan Lorenz Sorgner (http://www.metahumanism.eu/ ); a Transhumanist Declaration do colectivo Humanity+ (http://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-declaration/ ); as posições  tecnoprogressivas do Institute for Ethics and Emerging Technologies (http://www.ieet.org/); o Manifesto Transhumanista The Singularity is Near, de Ray Kurzweil  (http://www.kurzweilai.net/ ).

[12]«Plasticity refers to multiple processes of brain function and structure. The brain can make new cells (neurogenesis) and new synaptic connections between neurons (synaptogenesis), and see established connections strengthened and weakened (synaptic modulation) (…) Plasticity has been correlated not only with early learning, but also with shifts in stress levels and hormones, with recovery from trauma and injury, and with learning new skills in adolescence and adulthood.» (Pitts-Taylor, 2012: 636)

[13]Quartz, Steven R. (1999). The constructivist brain. Trends in Cognitive Sciences 3 (2):48-57.  Elsevier Science.

[14]“Ciberbehaviourismo” é um neologismo criado pelo autor para se referir à inclusão da racionalidade instrumental promovida pelos dispositivos actuais da tecnociência (vigilância, bigdata, biopolíticas, algoritmos..) no percurso histórico do behavorismo e da sua relação com outras correntes de pensamento próximas: mecanicismo, positivismo, determinismo e darwinismo.

[15]Lazzarato, Maurizio. (2012). The Making of the Indebted Man. Los Angeles: Semiotext(e).

[16]Stiegler, Bernard. (2014). States of Shock: Stupidity and Knowledge in the 21st Century. Cambridge:

Polity Press.

[17]Chaitin, Gregory. 2006. “The Limits of Reason.” Scientific American 294 (3): 74–81.; Chaitin, Gregory. 2007. “The Halting Probability Omega: Irreducible Complexity in Pure Mathematics.” Milan Journal of Mathematics 75 (1): 291–304.

[18]« As many have argued recently, pressures around our personal abilities to improve our wellness and prevent disease and even aging are suggestive of a form of power Michel Foucault identified as governmentality, where the notions of risk and empowerment play crucial roles (…) the commercialization of bodies and biological materials in biocapitalism. Biological vitality, from the levels of surface flesh all the way to molecule, neuron and gene, has become a prime resource for ‘marketization’ in biocaptialist economies (…) Neoliberalism cannot be, as some descriptions might suggest, utterly totalizing and hegemonic. Brenda Weber (2009), following Wendy Brown (2006) and Aihwa Ong (1999), emphasizes how neoliberalism is a complex ideological apparatus that is inconsistent and ever-changing. Rather than creating wholly ‘passive and complacent’ citizens, Weber (2009: 52) argues that it instead mutates and is mutating, and is incomplete in its ability to shape the citizenry. » (Pitts-Taylor, 2012:641).

[19]«The intimacy between neoliberal capitalist models of organization and neuroscientific models of the plastic brain that Malabou recognizes is two-directional. Malabou finds global capitalism saturated with neurosciencebased language, so that neuroscience serves ideologically to naturalize global capitalism.» (Pitts-Taylor, 2012: 648).

[20]Para uma análise, redigida por N. Katherine Hayles, do relatório «Surveillance: Citizens and the State.», do Reino Unido, Cf. Hayles (2009).

Publicado no site Outras Palavras.

Nota sobre o autor

[1] Rui Matoso é especialista da European Network Expert on Culture e investigador da European Communication Research and Education Association. Gestor e Programador Cultural. Professor na ECATI – Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa), no Mestrado em Gestão e Programação Cultural e na Licenciatura em Ciências da Comunicação e da Cultura/Ramo de Gestão das Artes. É investigador no CICANT e doutorando em Ciências da Comunicação. Mestre em Práticas Culturais para Municípios – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (2008), tendo anteriormente realizado uma Pós-Graduação em Gestão Cultural na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias(2006). É formador certificado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (CAP) e pelo Centro Científico-Pedagógico da Formação Continua (reg nº CCPF/RFO-32391/12).

“A Oxfam avisa: a desigualdade pode ser vencida”

Caicai
Mídia não enxerga a principal novidade do mais novo relatório sobre injustiça social. Há inúmeros caminhos para superar o problema – basta vontade e força política para adotá-los.

[O trabalho perigoso e mal remunerado de muitos garante a riqueza extrema de poucos. As mulheres estão nos piores postos de trabalho e quase todos os bilionários do planeta são homens. Aumenta o abismo da desigualdade. Para reduzi-lo, empresas devem valorizar o trabalho e os sindicatos, eliminar as diferenças salariais por gênero, repartir lucros e não pagar dividendos milionários a executivos e acionistas. Já governos devem priorizar trabalhadores e pequenos produtores de alimentos, e não os super-ricos – que precisam pagar uma “cota justa” de impostos para que se aumentem os gastos públicos com saúde e educação.

Esse é o recado da Oxfam Internacional à elite empresarial e política planetária reunida a partir de hoje na cidade gelada de Davos, na Suíça, no 48º Fórum Econômico Mundial. Entre os 3 mil hipers da plateia encontram-se Trump e Temer, este tentando vender o país ao lado de Doria, Meirelles e a maior comitiva dos últimos tempos. O programa prevê a palestra “Moldando a nova narrativa do Brasil” justo pra amanhã, 24 de janeiro, quando Porto Alegre estará fervendo com o julgamento do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Capital versus Trabalho

O estudo “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, da Oxfam, revela uma concentração de riquezas sem limites. O ano de 2017 registrou o maior aumento de super-ricos da história – um a cada dois dias, somando 2043 pessoas pelo mundo, 90% deles homens, com riqueza superior ao PIB de 159 dos 193 países que habitamos. Só as riquezas criadas em 2017 seriam suficientes para acabar sete vezes com a pobreza extrema no globo, mas 82% delas foram para as mãos do 1% mais rico. Já a metade mais pobre da população mundial, 3,7 bilhões de pessoas, está de mãos vazias.

Toda essa riqueza não vem do trabalho, diz a Oxfam. Dois terços dessas fortunas resultam de heranças, monopólios (que “alimentam retornos excessivos para proprietários e acionistas à custa do restante da economia”) e clientelismo, ou seja, “a capacidade de interesses privados poderosos manipular políticas públicas para consolidar monopólios existentes e criar outros”.

Tudo isso compõe “uma ‘tempestade perfeita’” em que sindicatos perdem poder de negociação e “empresas usam a mobilidade dos seus investimentos para promover uma ‘corrida para trás’ entre países em termos de tributação e direitos trabalhistas”, afirma o relatório, que mostra o movimento regressivo dos direitos trabalhistas em vários países do mundo. Os dados são de instituições como a OIT (Organização Internacional do Trabalho), Banco Mundial, o banco Credit Suisse e a revista “Forbes”.

Mulheres, jovens, negros

Por aqui, onde é nossa a taça de campeões da desigualdade e o fantasma da fome volta a nos assombrar, cinco bilionários acumulam o mesmo valor que a metade mais pobre da população. O Brasil tem 12 bilionários a mais: eram 31 e agora são 43, no segundo maior aumento de sua história. E o patrimônio deles cresceu 13%: já alcança R$ 549 bilhões, mais de meio trilhão de reais. Já os 50% mais pobres tiveram sua fatia reduzida de 2,7% para 2% do bolo. A brasileira ou brasileiro que ganha um salário mínimo precisaria trabalhar 19 anos para conseguir o que ganha num mês alguém do 0,1% mais rico. Já os dividendos pagos em 2016 ao quarto homem mais rico do mundo, Amancio Ortega, pela matriz da rede de moda Zara, que distraidamente podemos frequentar, somaram aproximadamente 1,3 bilhão de euros [5,16 bilhões de reais].

Mulheres, jovens e negros são os mais impactados pelo desemprego, baixos salários e precarização do trabalho, afirma Kátia Maia, diretora da Oxfam Brasil. “As mulheres fazem jornada dupla, tripla de trabalho, um trabalho que não é remunerado. E esse trabalho não remunerado, quando contabilizado, chega a somar 10 trilhões de dólares anuais – se fosse computado teríamos outro desenho econômico. Vale ressaltar que o trabalho do cuidado é fundamental para a reprodução da própria sociedade”, diz ela. “Pensar soluções é pensar a liderança das mulheres.”

Além do que as mulheres sofrem assédio. “Em países da América Latina e do Caribe 94% das mulheres do setor hoteleiro são assediadas por hóspedes. Na Ásia mulheres não conseguem ver os filhos porque trabalham 12 horas por dia, 6 dias por semana, e o salário é tão baixo que não dá para pagar o transporte. Mulheres negras sofrem a desigualdade da desigualdade.” Mulheres estão em luta permanente, pela conquista da educação, por participação política. Assistimos a suas demonstrações no mundo todo, e no Brasil o movimento feminista tem sido um dos mais resistentes contra a volta do conservadorismo – diz ela.

Também os jovens estão entre os que recebem os salários mais baixos e recebem os maiores impactos do desemprego, mostra o estudo. Mas estão entre os que oferecem maior resistência, com mobilizações no mundo todo, lembra Kátia.  “No Brasil há muitos movimentos de jovens, o terreno é fértil para mudanças a partir da juventude.”

A desigualdade se reflete mais nos subalternizados, novamente, quando se pensa nas mudanças climáticas e desastres ambientais, pelo impacto na capacidade de recuperação e nas condições de vida e moradia nas áreas atingidas, lembra a diretora da Oxfam Brasil. “A questão ambiental é fundamental para a busca de soluções para a desigualdade. Ela nos ajuda a trazer para o debate outros elementos, o desafio e a responsabilidade de olhar para o futuro. Venho do movimento ambientalista, em 83 a gente ainda imaginava um futuro comum – o relatório ‘Nosso Futuro Comum’, de Gro Harlem Brundtland, mestre em saúde pública e ex-primeira ministra da Noruega – lembra?  E agora essa intensificação dos lucros nos distancia cada vez mais desse futuro.”

Se pretendemos incluir o conjunto dos 7 bilhões de habitantes do planeta, o padrão não pode ser o das elites, ressalta Kátia Maia. “Essa pressão sobre o clima, os rios, a terra, a água, os diversos elementos que formam o ambiente, é insustentável. Enfrentar as desigualdades passa necessariamente por rever o padrão de vida, que é altamente consumista.” E rever o padrão de vida passa necessariamente pela consideração do bem comum diante do bem individual. “Temos ainda uma grande reserva de práticas voltadas para a coletividade”, diz Kátia.

Depende de nós

Sustentar o otimismo, apesar de tudo. Kátia ressalta a importância da mobilização da sociedade “num mundo volátil, em que é um grande desafio enfrentar questões estruturais, que não acontecem num estalar de dedos, mas mais no longo prazo. A desigualdade foi construída por nossa sociedade, e pode ser modificada por nós. Se como sociedade a gente quiser, tem poder pra mudar.”

Mesmo porque a maioria quer igualdade. Ano passado a Oxfam fez uma pesquisa com 120 mil pessoas, de 10 países, que representam um quarto da população mundial, e o estudo mostrou que mais de três quartos dos entrevistados concordam em que o fosso entre ricos e pobres, em seu país, é muito grande. Os percentuais variam de 58% na Holanda a 89% na Nigéria; 60% concordam que é responsabilidade dos governos reduzir a lacuna. É urgente eliminar essa diferença, opinam quase dois terços dos entrevistados.

“No Brasil, a pesquisa de opinião ‘Nós e as Desigualdades’, feita pela Oxfam e o Datafolha em dezembro passado, mostrou que a população é contra essa desigualdade extrema, esse buraco que separa pessoas com e sem direito, de primeira e segunda categoria. Os brasileiros consideram que emprego é problema, falta de educação é problema, saúde é problema. As pessoas concordam quanto às soluções, mas não têm noção do tamanho da desigualdade. Estão preocupadas, e quanto mais a gente mostrar o tamanho da desigualdade, mais vão se preocupar.”

Daí os relatórios que a Oxfam, insistentemente, apresenta ano após ano em Davos. “Eles aumentam o debate, para que esse poder sinta a pressão, porque quando a gente pressiona tem passo atrás”. Ela dá exemplos recentes do poder que a gente tem.

“A Islândia acaba de aprovar lei afirmando que até 2022 não poderá mais existir diferença salarial entre homens e mulheres. Nós mesmas aqui no Brasil tivemos num certo período políticas públicas que davam aumento real no salário mínimo, que é muito importante no combate à desigualdade, além de outras políticas sociais inclusivas. Políticas que privilegiaram setores sociais que são maioria, mas são tratados como minoria, no quadro da desigualdade de gênero e raça.”

Katia aponta também as boas práticas de algumas empresas. “Há empresas que fazem maior repartição de lucros para seus trabalhadores, incentivam a organização sindical, empresas criadas por cooperativas de trabalhadores e que estão bem economicamente.” Lembra, contudo, que a grande maioria das corporações está operando com o máximo lucro, precarizando ainda mais o trabalho, empurrando as organizações sindicais para fora, pagando salários menores. “É uma corrida para aumentar os lucros, uma visão de curto prazo, um saque dos recursos naturais.”

No Brasil acontece um movimento contrário ao que a Oxfam indica como melhores práticas para a redução da desigualdade, reconhece a representante da organização no Brasil. “Nos últimos 15 anos houve ganhos, mas estes ganhos, apesar de positivos, não eram estruturais e estão sendo desmontados.”

Fórum de Davos

Este ano a elite mundial, ou operadores do Capital, brinca de democracia representativa e igualdade de gênero deixando a presidência do Fórum nas mãos unicamente de mulheres (que são 21% dos participantes).

Lá estarão, sob o mesmo teto que 70 chefes de Estado e governo, “900 representantes de ONGs, 1.900 executivos de empresas, 40 líderes culturais, 35 empreendedores, 80 jovens destacados, 32 pioneiros tecnológicos, 70 responsáveis de sindicatos, organizações religiosas e da sociedade civil.”

O espaço aéreo de Davos é fechado durante a cúpula e cerca de 5 mil soldados e chefes do exército e da polícia farão a segurança local.

Na pauta, a discussão de “formas de crescimento mais igualitário, questões climáticas, o impacto de novas tecnologias no mercado de trabalho, o combate às ameaças cibernéticas e assédio sexual”.

De olhos bem abertos para a América Latina. “O Brasil é um dos seis países latino-americanos que realizam eleições presidenciais em 2018”, lembra o programa do Fórum, ao pontuar o debate “Quais são os principais conquistas atuais e qual visão têm líderes regionais e globais para o Brasil no futuro?”. O título do evento regional do Fórum, que será sediado em São Paulo, em março, é “A América Latina em um momento de virada”.]

Por Inês Castilho para o site Outras Palavras.

Esquerda agoniza

“Todas as proclamações grandiloquentes dos líderes políticos e sindicais das esquerdas fracassaram. Aconteceu tudo o que se disse que não aconteceria. Não se viram trincheiras, nem exércitos e nem grandes paralisações, capazes de bloquear reformas nefastas. Parece ser necessário aterrissar e lidar com o senso de realidade. O ufanismo e o triunfalismo são os alimentos da indolência e da irresponsabilidade, coveiros das vitórias.”

Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).