A feiura não assusta, o que assusta é a estupidez

Feia
Reprodução: YouTube

Hoje uma jovem blogueira estava reclamando na Folha de São Paulo/UOL que pelas razões mais banais do mundo as pessoas se referem às mulheres chamando-as de “feias”.

Ela anotou ainda que a prática se disseminou muito pelas redes sociais.

Aos homens normalmente nos referimos chamando-os de filhos-da-puta, veados e de outras delicadezas do gênero.

Mas se você quer saber: dói mais chamar uma mulher de “feia” do que um homem de filho-da-puta ou veado.

Isso é bastante estranho, mas é assim mesmo.

Qual mulher aceita de bom grado ser chamada de feia? Nem as notoriamente feias (e mulher feia é que não nos faltam).

A esperança da jovem blogueira reside no fato (notório) de ainda estarmos na puberdade das redes sociais o que nos levaria a saber que quando chegarmos à maturidade (das redes) seremos, com quase absoluta certeza, civilizados, e não mais venhamos a chamar as mulheres de feias e nem os homens de filhos-da-puta e de veados.

Pode até ser que isso aconteça, mas com isso eu não me preocuparia tanto.

Acho que em tempos de redes sociais há uma outra bizarrice bastante pior e, creio, de resolução impossível.

Estou falando daquela prática corriqueira de “seguir” gente famosa nas redes sociais.

A cantora Annita, por exemplo, deve ter alguns milhões de seguidores.

Um jogador de futebol que disputou ou ainda está disputando a copa da Rússia tem mais seguidores do que a população de seu país (somando-se aí gente que no país do craque sequer tem acesso à internet).

O que explica isso?

Para mim é um fenômeno sui generis, irracional – portanto sem explicação.

Mas há ainda algo pior nesse descalabro todo.

As redes sociais foram criadas para unir as pessoas, juntá-las, seja em diálogos difusos e à distância, seja nas trocas de ideias e de informações, mesmo que essas trocas não passem de receitas de bolos.

Pois então, as redes sociais realmente nos unem, certo!

Errado! Elas nos separam, como todos nós já estamos carecas de saber, mesmo quem não é careca!

Mas espere que tem mais ainda!

Ok! Eu e você seguimos a Annita e o tal jogador de futebol.

E daí?

Eles sabem ao menos que nós existimos?

Em algum momento de suas carreiras, quando a decadência chegar (e vai chegar!), eles vão manter contato com você e comigo?

Márcio Tadeu dos Santos

Neymar Júnior é o cara – o resto é despeito, rancor e ódio

Neymar
Foto: REUTERS/Damir Sagolj

Neymar Júnior, ex-jogador de futebol do Santos, com passagem pelo Barcelona e (agora) atuando no PSG (França) não sai da mídia, pelo menos por daqui, mas não só, reconheçamos, seja por conta de seu cabelo, seja por sua namoradinha insossa e atriz de capacidade duvidosa, seja pelo seu futebol exuberante, futebol no qual a maioria dos nacionais leva fé para o país ganhar mais uma copa do mundo; fé que todos parecem ter, mesmo aqueles que dizem detestá-lo, odiá-lo, despreza-lo (ou perto disso).

Igualmente, então, “botam a maior fé” em Neymar Júnior aqueles que o identificam como o cara (favor não confundir o cara do Lula, na infelicidade precipitada de Osama, depois da enxurrada de denúncias que o cercam).

Todos, em uníssono, esperam ansiosamente pela redenção do futebol brasileiro, mesmo aqueles que teimam em menosprezar o esporte e o jogador nacional.

Neymar Júnior não é apenas o cara (pelo menos para nós, brasileiros) como teve a cara e a coragem (minha mãe diria “a pachorra”) de desprezar o Barcelona em meio a um contrato e se mandar para o França.

Os argumentos dos sem-argumentos são variados: Neymar Júnior foi pela grana do PSG; Neymar Júnior não queria permanecer à sombra do argentino Messi.

Pode ser qualquer uma dessa coisas juntas ou separadas, como igualmente pode ser pura birra de moleque (“muleke”) ou as três coisas juntas ou nenhuma dela.

Vai saber o que passa pela cabeça e pelas vontades do “muleke”?

A única coisa com concreta para se dizer a respeito é que há muito despeito e mágoa nessa parada, especialmente recordando-se que Neymar Júnior apoiou, na eleição presidencial de há quatro anos, um candidato preterindo a outra candidata.

Esse barril de pólvora no qual o Brasil foi lançado explode continuamente e antecipa a grande explosão (o nosso big bang) e nos jogou num denso lamaçal de banalidades, ignorâncias, intolerâncias capaz de destilar um liquido fedido, uma mistura nauseabunda e horrenda de política com futebol.

Vivemos tempos obscuros.

Márcio Tadeu dos Santos

“Só a humanidade pode libertar-se a si própria”

Berardi
Foto: Filosomídia – “Franco Berardi, mais conhecido por Bifo (Bolonha/Itália, 1949) é um filósofo e agitador cultural italiano”

[Abaixo, extractos de uma entrevista recente ao filósofo italiano Franco Berardi, realizada por Ana Pina e publicada num jornal de economia online (aqui). Tomámos a liberdade de mudar o título [“O pensamento crítico morreu”], usando na mesma palavras do entrevistado.

O acrónimo inglês TINA – There Is No Alternative [não há alternativa] – é usado recorrentemente para justificar a necessidade de trabalhar mais e de aumentar a produtividade. Na sua opinião, não há mesmo alternativa?  

Esse tem sido o discurso dos líderes políticos nos últimos 40 anos, desde que Margaret Thatcher declarou que “a sociedade não existe”. Existem apenas indivíduos, empresas e países competindo e lutando pelo lucro. É este o objetivo do capitalismo financeiro. E com esta declaração foi proclamado o fim da sociedade e o início de uma guerra infinita: a competição é a dimensão económica da guerra. Quando a competição é a única relação que existe entre as pessoas, a guerra passa a ser o ‘ponto de chegada’, o culminar do processo. Penso que, em breve, acabaremos por assistir a algo que está para além da nossa imaginação…

O que pode pôr em causa o capitalismo financeiro? Enfrenta alguma ameaça?  

A solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro. Mas atenção, não acredito numa vontade maléfica. O que me parece é que os processos tecnológico e económico geraram, simultaneamente, o capitalismo financeiro e a aniquilação tecnológica digital da presença do outro. Nós desaparecemos do campo da comunicação porque quanto mais comunicamos menos presentes estamos – física, erótica e socialmente falando – na esfera da comunicação. No fundo, o capitalismo financeiro assenta no fim da amizade. Ora, a tecnologia digital é o substituto da amizade física, erótica e social através do Facebook, que representa a permanente virtualização da amizade. Agora diz-se que é preciso “consertar o Facebook”. O problema não está em “consertar” o Facebook, mas sim em ‘consertarmo-nos’ a nós. Precisamos de regressar a algo que o Facebook apagou.

O pensamento crítico pode ajudar a “consertarmo-nos”?

Não há pensamento crítico sem amizade. O pensamento crítico só é possível através de uma relação lenta com a ciência e com as palavras. O antropólogo britânico Jack Goody explica na sua obra “Domesticação do Pensamento Selvagem” que o pensamento crítico só é possível quando conseguimos ler um texto duas vezes e repensar o que lemos para podermos distinguir entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Quando o processo de comunicação se torna vertiginoso, assente em multicamadas e extremamente agressivo, deixamos de ter tempo material para pensarmos de uma forma emocional e racional. Ou seja, o pensamento crítico morreu! É algo que não existe nos dias de hoje, salvo em algumas áreas minoritárias, onde as pessoas podem dar-se ao luxo de ter tempo e de pensar.

No seu livro “Futurability – The Age of Impotence and the Horizon of Possibility” (2017) escreve que o paradoxo da automação sob o capitalismo reside no facto de “chantagear os trabalhadores a trabalharem mais e mais depressa em troca de cada vez menos dinheiro, numa luta impossível contra os robôs”.  

Há pelo menos 20 anos que isso acontece um pouco por todo o lado, Europa incluída. Importa dizer que a União Europeia (UE) não existe ao nível político, apenas ao nível financeiro. Aliás, a função da UE tem sido, e continua a ser, a de obrigar as pessoas a trabalhar mais em troca de salários cada vez mais baixos. Estamos a falar num empobrecimento sistemático. Mas o desenvolvimento tecnológico, em si mesmo, não é uma coisa má, pelo contrário. O problema está na forma como o capitalismo organiza as possibilidades tecnológicas de maneira a cairmos numa armadilha. O que quero eu dizer com isto? Que somos levados a pensar que a liberdade advém do trabalho e do salário. Que somos obrigados a pensar que a tecnologia é uma ferramenta para a acumulação, o lucro. Ora, é difícil sair de ‘armadilhas mentais’ como esta.

(…)

Como vê o papel dos media e das redes sociais nos tempos que correm? 

Devo dizer que, nos dias de hoje, a expressão “media” não é muito óbvia. Remete para quê exatamente? Remete para o The New York Times (NYT) ou para o Facebook? Digamos que, neste último ano, houve uma disputa cerrada entre o NYT e o Facebook e foi este que acabou por vencer, porque o pensamento crítico morreu. E o pensamento imersivo está fora do alcance da crítica. A imersividade é, pois, a única possibilidade. Esta é outra questão relevante. Acredita que o Facebook pode ser ‘consertado’? Pessoalmente não acredito. Em tempos, eu e muitas outras pessoas acreditávamos que a Internet ia libertar a humanidade. Errado. As ferramentas tecnológicas não vão libertar-nos. Só a humanidade pode libertar-se a si própria. Voltando ao Facebook, como podemos defini-lo? O Facebook é uma máquina de aceleração infinita. E esta aceleração, intensificação, obriga a distrair-nos daquilo que é a genuína amizade.

Considera que as redes sociais padronizam formas de estar?  

Sem dúvida. A nossa energia emocional foi absorvida pelo mundo digital, por isso as pessoas esperam que os outros “gostem” do que dizemos [nas redes sociais] e muita gente sente-se infeliz quando os seus posts não produzem esse efeito. Uma das consequências desse investimento emocional é o chamado ‘efeito da câmara de eco’, ou seja, tendemos a comunicar, a trocar informações e opiniões com pessoas que pensam como nós, ou que reforçam as nossas expetativas, e reagimos mal à diferença. Podemos chamar-lhe psicopatologia da comunicação. O futuro só é imaginável quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na amizade, na solidariedade e, claro, no amor. Mas se não formos capazes de sentir empatia, o futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos conferem humanidade.

Um estudo da OMS refere o suicídio como a segunda causa de morte entre crianças e jovens com idades entre 10 e 24 anos; e estima que, em 2020, a depressão será a segunda forma de incapacidade mais recorrente em todo o mundo. Que leitura faz deste retrato alarmante? 

Entre finais da década de 1970 e 2013, a taxa de suicídio aumentou 60% em todo o mundo, segundo dados da OMS. Como podemos explicar este aumento brutal?! O que aconteceu há 40 anos atrás? Como referi antes, Margaret Thatcher declarou que a sociedade não existe; paralelamente, o neoliberalismo eliminou a empatia da esfera social. Depois, a tecnologia digital começou a destruir a possibilidade do real, da relação física entre humanos; a emergência de Tony Blair é a prova de que a Esquerda morreu – refiro Blair por ser mais fácil de identificar, mas juntamente com ele estão muitos outros líderes. A Esquerda (…) embarcou no discurso neoliberal: pleno emprego, oito horas por dia, cinco dias por semana durante uma vida inteira. Isto é cada vez menos viável. O pleno emprego é algo impossível, o que temos é mais precariedade para todos, cortes nos salários para todos, mais trabalho para todos, em suma, uma nova escravatura. A isto somam-se dois aspetos importantes. Primeiro, a obrigação passou a ser parte integrante da nossa formação psicológica e a competição tornou-se no princípio moral universal. Segundo, passámos a julgar-nos em função do critério da produtividade. Existe apenas um modelo, um padrão, que é o da competição e sentimo-nos culpados de todos os nossos “fracassos”, seja ele o desemprego ou a pobreza. Há quem lhe chame auto exploração.

Refere num artigo que o ser humano tem de abandonar o desejo de controlar… 

Hoje em dia, o grau de imprevisibilidade aumentou de tal forma que pôs fim à potência masculina. O ponto de vista feminino, por seu turno, representa a complexidade, a imprevisibilidade da infinita riqueza da natureza e da tecnologia – não no sentido de algo oposto à natureza, mas como uma forma de evolução natural. Atualmente, só o ponto de vista feminino é que pode salvar a raça humana. O ponto de vista masculino já não é capaz de fazer o tipo de ‘trabalho’ de que fala Maquiavel: dominar a natureza. Isso já não é possível, por isso temos de libertar a produtividade da natureza e da mente humana, isto é, o conhecimento. Hoje em dia, o problema não está no excesso de tecnologia, mas sim na nossa incapacidade de lidar com a tecnologia sem ficarmos reféns do preconceito do poder, do controlo, da dominação. Temos de abandonar essa pretensão: a de controlar.

(…)

Como vê a Europa de hoje? 

De momento, exceto Portugal e Espanha, o racismo é o único ponto de entendimento entre os europeus. Nem mais nem menos: racismo. E não tem a ver com o medo do outro, da diferença. Tem a ver com a incapacidade de lidar com o passado colonial. A ideia que prevalece na Europa é que se ganha quando se é mais racista do que o outro. A Europa está fraturada e o discurso mantém-se: o Norte contra o Sul, [o grupo de] Visegrado contra Paris e Berlim… Enfim, apenas confluem num aspeto: rejeitar a imigração. Mesmo que isso signifique a morte de milhares de pessoas e o encarceramento de milhões de pessoas na Líbia, no Níger, nos Camarões, na Nigéria e por aí diante (…). ]

Maria Helena Damião e Isaltina Martinsm in O Jornal Económico publicado também em  De Rerum Natura 

Política, futebol e as nossas cascas de bananas

Maradona
Blog Vinicius de Santana: Maradona beija Pelé ao lado de Putim, em cerimônia da copa da Rússia.

Alguém estava-se referindo a uma fábula, da qual eu já ouvira falar, mas nunca lhe dei muita importância, sobre um sujeito que jogava cascas de banana para que ele mesmo escorregasse.

Não sei exatamente por que se proliferou a ideia de que apenas cascas de bananas possam provocar tombos. A rigor, boa parte das frutas (tropicais) tem essa capacidade e destaco aqui a casca da manga.

Mas, enfim, a história não é sobre cascas, mas sim sobre as armadilhas que criamos para nós mesmo e que no futuro nos parecerão ridículas e de difícil sustentação e alvo de escárnio de outras pessoas.

Não posso esquecer aqui (embora já esteja parcialmente esquecida) a história inverossímil do terço do papa “destinado a Lula” e uma historieta mais recente dando conta de que Maradona puxou, na estreia da Argentina na copa de Rússia, um coro de “olé, olá, Lula, Lula”.

Fôssemos um pouco mais atentos estaríamos nos perguntando que razões levariam o papa Francisco a se indispor com a justiça brasileira e com o próprio Estado nacional, Francisco que é chefe de Estado (Vaticano), a menos que ele quisesse mandar seus exército de cruzados invadir o Brasil e libertar o Lula.

Raciocínio semelhante deveria também nos levar a perguntar as razões que moveriam Maradona, por que “todos” os argentinos o seguiram nesse “olê, olá” e, ambos, acabariam por contaminar “todo o estádio” nessa gritaria pró-Lula.

Ver alguma lógica nesses dois acontecimentos é como buscar agulha em palheiro.

Futebol, a caixinha

Quando a seleção brasileira foi ao México para ganhar a terceira copa do Mundo saiu daqui debaixo de pedradas (não literal, mas irada e irônica).

As críticas eram ferozes e previam que o selecionado nacional dificilmente passaria pela fase de grupos.

Tratava-se de uma mistura de provincianismo/bairrismo com um ódio visceral à ditadura militar, aliás, ódio bastante justificado.

O que resultou da jornada brasileira no México é história bastante conhecida.

O Brasil chegou à Rússia, em 2018, segundo nós mesmos (ou pelo menos a maioria de nós), com um técnico inteligente e moderno e com o melhor elenco (quiçá o melhor de todos os tempo), prontos para, num piscar de olhos, “trazer mais um caneco para casa”.

Um empate na primeira rodada fez desmoronar o sonho e trouxe sérias dúvidas a respeito da inteligência do treinador e da capacidade do elenco.

Claro que tudo isso pode mudar na segunda partida ou pode aprofundar a desconfiança, desmentindo, porém, o clima de euforia que cercou o selecionado antes do embarque.

Ou seja, mais uma vez estamos nos precipitando, reféns que somos, nós, brasileiros, das aparências apressadas, precipitadas e quase sempre enganosas.

Leia também:

Genética dos Contos de Fadas – Hipérkubic

O privilégio da servidão – Blog da Boitempo

Cientistas fazem o primeiro entrelaçamento quântico “sob demanda” –  Hipescience

Márcio Tadeu dos Santos

Alguns exemplos de como o respeito e a solidariedade costumam andar ausentes no Brasil

Desert
Deserto / Reprodução

Apesar da baixa temperatura e de um chuvisco fui pela manhã a uma padaria próxima de casa.

É uma boa descida e depois, voltando, uma subida razoavelmente íngreme, frente à qual muita gente encontra dificuldades, inclusive eu.

Sei que não posso abusar do “menu”, mas vez ou outra vou à padaria tomar café com leite e comer “pão (francês) com ovo”.

Aqui em São Paulo se fala “pão francês”. Em outras regiões brasileiras se dão outros nomes ao pão, e o mais comum deles é “pão de sal”.

“Pão de sal” é um nome tão impróprio para identificar o produto quanto “pão francês”, que não existe e nunca existiu na França.

No portal Vila Mariana diz-se que : “A receita desse pão, branquinho e fofo, que cabe na palma da mão, surgiu no Brasil no começo do século XX e antes de 1914, data de início da Primeira Guerra Mundial… O nosso pão francês não tem muito a ver com os pães da França. Sua receita foi criada na tentativa de reproduzir um pão popular na cidade de Paris da época, curto, cilíndrico, com miolo branco e casca dourada, mas acabou por tornar-se bem diferente dele por conter um pouco de açúcar e gordura na massa”.

Só não está claro onde exatamente “nasceu” o “pão francês” brasileiro

O pão com ovo me reservou um incômodo: na hora de a atendente de balcão entregar  o pedido ela me deu um pão com manteiga na chapa e o “como ovo”, que era meu, a um sujeito que estava ao lado.

Reclamei imediatamente da troca mas não deu tempo para que a moça reagisse, pois o sujeito ao lado já tinha abocanhado a metade do “sanduba”

Ao lado da desatenção nada profissional da atendente, é de se perguntar como o sujeito ao lado não percebeu que o “sanduba”  era de ovo e não o que ele havia pedido?

Talvez, por que não, ele estivesse tentando aplicar aquela velha malandragem de “levar vantagem em tudo” – afinal “pão com ovo” custa mais que o pão com manteiga na chapa.

Resolvida a questão sanduíche saí e encontrei um jovem morador de rua que fica nas proximidades.

A história que conta é que seria de Sorocaba (interior de São Paulo) e fora cabeleireiro, mas que, ao longo da jornada de sua vida, que não é das maiores, passou a usar droga e foi parar nas ruas, provavelmente expulso pela família – o que, aliás, é uma história bem  recorrente.

Apesar dos percalços que a vida lhe impôs ele se mostrou muito preocupado comigo, que estava com uma alpercata e de bermuda “com esse frio”.

Não sei se o glutão  do “sanduba”, além de se apropriar do sanduíche alheio, teria um olhar condescendente para com o morador de rua.

Acho pouco provável.

Marcio Tadeu dos Santos

“A história na visão de anarquistas”

anarch

[Objetiva-se analisar como foi abordada a História por alguns pensadores e “teóricos” do anarquismo.[1] Para atingir este objetivo, foi feita uma revisão de alguns textos de anarquistas “clássicos”, que se destacaram como pensadores e filósofos do movimento anarquista internacional: Proudhon, Bakunin, Kropótkine e o historiador Rudolf Rocker. Parte-se do princípio de que uma das funções da História é servir de instrumento para a transformação da sociedade, e que é utilizada pelos mais variados “agentes sociais” como “guia para ação”. O trabalho inicia com uma definição de passado ontológico e epistemologia do passado. Logo se apresentam as discussões atualizadas sobre a produção do conhecimento histórico, sua “evolução”. Em seguida, constrói-se o cenário, como os historiadores vinham pensando e discutiam sobre seu oficio, ou seja, o cenário em que se inserem os escritos anarquistas sobre a história. Faz-se uma “analise de conteúdo” destacando trechos em que os autores citados acima dedicaram algumas linhas para escrever sobre a História. Para concluir, compara-se a analise com o contexto histórico e as discussões atualizadas.

  1. Introdução

É difícil saber se este trabalho é uma história da História a partir do pensamento anarquista ou se é uma história do pensamento anarquista e suas concepções de História. Talvez seja um pouco de cada. O que se pretende saber é como os anarquistas entendiam a História, tanto no sentido ontológico quanto no epistemológico. É importante destacar como e por que se faz o estudo da História no pensamento anarquista.

A história ontológica é o passado real e concreto, a História epistemológica significa a construção de um saber, uma disciplina, uma ciência (teoria e método) compreendendo também seu discurso (historiografia). Os procedimentos da analise seguirão a técnica da “comparação” dos modelos, e a relação ao contexto da produção literária.

Rodrigo Quesada Monge diz que, com o fim do projeto do Capitalismo de Estado (monopoliza), ocorre, principalmente após 1989, um crescente descrédito na teoria marxista para interpretação da história. Muitos historiadores utopistas e sonhadores ficam, assim, órfãos de um projeto teórico de uma filosofia da história. O historiador afirma que, se forem revisados os trabalhos investigativos dos grandes historiadores anarquistas como Nettlau, Paul Avrich, Rudolf Rocker, Murria Bookchin y Howard Zinn, somente para recordar alguns exemplos, aparece um exaustivo levantamento documental unido a um desmedido compromisso político e social com as implicações morais e políticas do seu ofício. (MONGE, 2006) Para saber no aspecto teórico e metodológico a prática historiográfica dos anarquistas, correto seria analisar as produções historiográficas destes. Escolher um período e conjuntura e estudar esta produção. Porém esta tarefa não é obra para nenhum pesquisador solitário. A intenção deste artigo é bem mais modesta e limitada ao discurso, ao que se afirma sobre “como deve ser” e não necessariamente ao que realmente é.

José Carlos Reis escreve que a história, assim como toda cultura ocidental, passou por uma transição entre o século XVIII e o século XX. Esta transição caracteriza-se pelo iluminismo (racionalista, globalizante e moderno), o estruturalismo e o pós-estruturalismo.

O projeto iluminista vê a história como “espírito universal”, que progressivamente vai “tomando consciência de si”. O projeto moderno e iluminista é extremamente otimista, crê no poder da razão. A hipótese iluminista é hegeliana, não pode não ter sentido. A história seria então governada pela razão. A história, segundo Carlos Reis, é a busca de sentido e não vontade de potência. O projeto iluminista legitima toda violência contra o passado-presente, que é considerado um entrave para o progresso e evolução. (REIS, 2000:178s)

No século XX, o movimento estruturalista veio desconfiar deste sujeito consciente em busca da liberdade. A convicção de que a razão governa o mundo foi posta sob suspeita. Passou-se a duvidar do progresso, do evolucionismo, do eurocentrismo, da razão racionalista. O homem não é totalmente sujeito e livre, e a sociedade não é guiada por uma teleologia. De acordo com José Carlos Reis, a história deveria dedicar-se mais ao repetitivo, cíclico, resistente, inerte e estrutural. Deveria dedicar-se à realidade empírica, produzindo um saber objetivo e conceitual. O estruturalismo ainda se diz racionalista, porém procura a razão a contrapelo, onde ela se esconde, acaba adotando um determinismo inconsciente. Os estruturalistas são contrários às utopias, pois discordam do fato de misturar a filosofia com a ciência. A utopia só faz sentido dentro de um raciocínio típico-ideal, uma abstração que permite conhecer a realidade. (Ibidem:182)

A segunda fase do estruturalismo, o pós-estruturalismo, não duvida da razão, isto é, não acredita na própria existência da razão. Não procuram mais verdades históricas, nem essenciais, nem aparentes, nem manifestas e nem ocultas. O universal não é pensável, a unificação é impossível. O conhecimento histórico pós-estrutural é antiestrutural, parcial, limitado, individual, em migalhas. Não se quer neutralidade, passividade, serenidade e universalidade. Não existe uma razão, moral, verdade universal. A partir dos anos 80, o homem não é mais o horizonte do historiador, a história deixou de ser análise do passado para produzir mudanças no presente etc.(Ibidem:183)

Acima foi transcrito como Carlos Reis descreve a relação e influencia da cultura ocidental na concepção de história e na prática historiográfica. Esta trajetória que ocorreu aproximadamente entre os anos 30 e 80 do século XX. Carlos Reis diz que uma bandeira que vem ganhando adeptos entre os historiadores é a proposta defendida pelo historiador francês F. Dosse. Este autor defende um retorno ao projeto inicial da Escola dos Annales, que se pode destacar: a mesma relação interdisciplinar com as ciências sociais, a mesma referencia à história problema, a mesma resistência e substituição do marxismo. (Ibidem: 187) A compreensão e o aprimoramento do saber histórico, absorvendo todo o avanço possível das ciências humanas e sociais, esta em gestação. Para Dosse:

A lógica mesma da ação mantém aberto o campo dos possíveis, em uma reabertura das potencialidades do presente alimentada pelos possíveis não averiguados do passado. A função da história continua, portanto, viva, e o luto das visões teleológicas pode se tornar uma chance para se repensar o mundo do amanhã. (DOSSE, 2003:16)

Enfim, procura-se entender como os anarquistas viam a história, enquanto o que ficou para trás, em que medida e como esta história influencia o presente e o futuro dos indivíduos e da sociedade. Também se procura saber em que medida a História, enquanto saber, se constitui em ciência e, se para os anarquistas, é possível uma previsibilidade e o estabelecimento de leis históricas.

  1. Historia e historiografia (de 1840 a 1940)

A delimitação temporal para trabalhar deveu-se ao fato de ser o período que abrange a produção dos “teóricos” que serão analisados. As produções de Proudhon que iniciam por volta de 1840 e a de Rudolf Rocker, em 1937. As discussões sobre filosofia e teoria da história da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX, serão o contraponto para análise e comparação da produção dos teóricos anarquistas. Cenário habitado por discussões de historiadores historicistas e a Escola Metódica como Leopold von Ranke, Taine e Fustel de Coulanges, Gabriel Monod, Charles Seignobos, Charles Langlois. Aparece a concepção de história enquanto ciência social com a transição entre Henri Berr e o movimento dos Annales com Lucien Febvre e Bloch.

Os principais historiadores antes de 1840 eram conhecidos como românticos. Produziam uma história com comprometimento político, como Michelet e Tocqueville. São eles que estão publicando suas histórias neste período, em defesa das experiências republicanas e democráticas liberais. Até aproximadamente 1860 vai a hegemonia dos historiadores românticos com forte ligação com a filosofia. O historicismo, ou a “Escola Metódica” e positiva, pretende elevar a história à categoria de ciência. Leopold von Rank defende a separação da filosofia da história, ele critica a metafísica hegeliana e acredita que a história constitui um saber cientifico na medida em que se detém no empírico, nos fatos e na individualidade histórica.(COLLIOT-THÉLENE, 1995:20) Emana um espírito positivo que abrange a história, e passa a predominar entre os historiadores, inicia-se uma luta contra a influência da filosofia da história na ciência da história. A ciência histórica quer ser objetiva, quer formular enunciados adequados ao seu objeto e que sejam válidos para todo tempo e lugar, como estimavam que faziam as ciências naturais. (REIS, 1996:07) A história procura encontrar fatos e descobrir verdades, a história é a ciência da observação. No final da década de 70 do século XIX, Gabriel Monod inicia uma produção voltada para o método histórico, empreitada levada adiante também por Charles Langlois e Seignobos. No final do século XIX, este esforço de criar uma história cientifica, dividiu-se em três proposições: A proposição rankiana, que aproxima a história das ciências naturais; a orientação de Dithey, que quer descobrir o que há de especifico no conhecimento histórico e cria a concepção de ciência social, lugar onde se destaca a história; e o marxismo.

Ao iniciar o século XX, ocorre um período transitório entre a “Escola Metódica” e a “Escola dos Annales”, onde Charles Péguy, F. Simiand, Dithey e Henrii Berr constroem uma concepção de história relacionada às ciências sociais. A história esta, então, entre as ciências sociais e não entre as ciências naturais. O objeto de estudo do historiador é o próprio homem, a sociedade humana. Dosse escreve que o projeto da Escola dos Annales é um projeto de espírito de “Frente Popular”, e para demonstrar isto ele traça o itinerário de alguns membros fundadores da Escola. No inicio da vida intelectual, Lucien Febvre era socialista fervoroso; segundo Dosse, ele escreve, entre 1907 e 1909, no Lê Socialiste Comtois, órgão semanal da federação do Doubs da SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária). No dia 21 de março de 1909, redige mais da metade da primeira página do jornal com quatro artigos: “Viva a vida! Abaixo a autoridade”. Em 1909, ele escreve em um artigo: “Ah querido velho Proudhon¹ E há pessoas que dizem que você está morto! Vai, esteja tranquilo: a personalidade humana se empertigará, enfim, ela que há tantos séculos vinha se corrompendo, imutável nessa degradação. Ela solta com uma voz ainda fraca, mas que não é mais tímida, o grito libertador que você mesmo soltava: nenhuma autoridade!” (DOSSE, 2003:92) François Dosse diz que Lucien Febvre vê no discurso marxista ao mesmo tempo uma concepção tão voluntarista e factual quanto à da história tradicional e também sua forma de espiritualismo econômico. (Ibidem:98) Portanto, a Escola dos Annales procura se constituir, por seus fundadores em 1929, numa alternativa à história tradicional e à história marxista, com a emergência do econômico e do social na História. Lucien Febvre e Marc Bloch veem na teoria das probabilidades, na teoria da relatividade da medida temporal e espacial, a possibilidade de a história aspirar, ao estatuto de ciência, contanto que critique os testemunhos do passado, elabore fichas de leitura, teste as hipóteses, passe do dado ao criado. Segundo Dosse, eles acreditam que a pesquisa histórica pode tomar emprestada a via das pesquisas causais a partir da crítica dos documentos, mesmo se aos olhos dos promotores dos Annales ela deva se precaver contra toda metafísica, contra todo monismo de causalidade. (Ibidem:55) Dosse escreve que o projeto dos Annales é indissociável de sua dimensão estratégica: Todo projeto cientifico é inseparável de um projeto de poder /…/. Vontade de convencer e vontade de poder estão unidas como a luz e a sombra. (Ibidem: 71)

  1. Anarquismo

O anarquismo pode ser entendido como uma ideologia, matriz de pensamento e teoria revolucionária. Como movimento político e social, com propósitos revolucionários aparece entre os operários na Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T), também conhecida como “Primeira Internancional” (1864) e nos grupos de conspiradores revolucionários organizados por Bakunin, que seguiam as ideias federalistas e mutualistas de Proudhon.

Os anarquistas são também conhecidos como socialistas libertários, para distinguir-se dos marxistas, que são denominados de socialistas autoritários. Durante a Primeira Internacional, as teses anarquistas revolucionárias defendiam a proposta de uma revolução social, com a construção do socialismo a partir de bases federalistas, e com autogestão socioeconômica. Acreditavam que o socialismo só é possível com liberdade, e por isso defendiam a abolição do “Estado Moderno”. Os socialistas autoritários (marxistas) eram reformistas, defendiam a conquista do Estado para, através de reformas, irem transformando a sociedade. Enfim, os anarquistas defendem a ideia de uma sociedade sem classes, sem domínio, opressão e exploração. É importante destacar que as concepções de história dos anarquistas, carregam também este componente de disputa, tanto com as concepções conservadoras, quanto com as ideias marxistas. (WOODCOCK, 2002)

3.1. Proudhon: “O movimento da história”

Pierre-Joseph Proudhon, francês, nascido em 1809 e falecido em 1865, foi um dos grandes mestres do pensamento socialista do século XIX. Filho de camponeses, tornou-se gráfico e “livre pensador”; em 1837, conquista uma bolsa na Academia de Besançon para cursar letras ou ciência. O conjunto de sua obra se encontra num horizonte de afirmação da sociedade como realidade plural, dotada de forças coletivas, resultantes da união, da harmonia e da convergência de esforços. Este raciocínio é a arma que esgrime contra o capital e o Estado. (RESENDE, 1986) Para abordar aspectos do pensamento de Proudhon sobre a História, serão utilizados como fontes dois livros: “Proudhon”, de Paulo-Edgar Resende e “Proudhon e Marx”, de Georges Guvitch. Proudhon foi também como o “homem dos paradoxos”, e suas proposições, realmente, muitas vezes eram contraditórias. Para compreender melhor seu pensamento, seria interessante analisá-lo à luz do contexto de produção e encará-los como construção, o que não seria possível nas pretensões deste modesto trabalho.

Na seleção de textos organizada por Paulo Resende e Edson Passeti, a principal referência feita à História, na obra de Proudhon, foi quando Resende e Passeti escrevem: Proudhon afirma não ter um projeto de sociedade, postulando antes um método de análise que possibilite detectar o movimento da história. (Ibidem: 21) Não ficou claro, onde, quando e em que obra Proudhon teria feito esta afirmação, porém se buscou identificar nos textos publicados este “método que detecta o movimento da história”. Segundo os organizadores da obra, o “movimento da história” aponta na seguinte direção: anarquia industrial, feudalismo industrial (referência ao jacobinismo estatizante), império industrial e, finalmente, a república industrial (referente ao mutualismo). (Ibidem: 18) O “movimento da história’ vai na direção da afirmação econômica da autonomia do trabalho, da negação da apropriação do Capital e da “democracia operária”.(Ibidem: 21)

Proudhon escreve que, diante da complexidade do real, o pensamento humano, no início, apela para um principio de unidade transcendente. Aí, surge o dogma, que é a afirmação estática, por cima da diversidade histórica, em que a fé religiosa transparece como passividade. (Ibidem: 14) Segundo o pensamento de Proudhon, a metafísica significa a mesma coisa que Deus para as religiões e a procura por um “motor da história” em certas concepções “científicas”. Ao fazer a crítica a toda tentativa totalizadora, e de unidade dogmática, Proudhon opta por chamar sua busca por uma explicação do “movimento da história” de método e não de teoria (para fugir das Leis da metafísica científica). Ele faz questão de afirmar que sua proposta não é exterior, não é transcendente à pratica social, e que a “teoria da lei serial” é um método de conhecimento assentado no terreno movediço da realidade plural. Segundo o filosofo, este método estabelece-se na relação de revezamento com a prática.

Segundo Proudhon, este método é um processo bem-determinado de conhecimento, que acompanha o movimento da prática. No pensamento dele, quem diz movimento diz série, unidade diversificada. A série é a condição fundamental da ciência, na medida em que a divisão, e não a unidade, é a primeira condição do que existe. (Ibidem:15s) Para o anarquista, o conhecimento serial é um tipo de saber que se processa em decorrência de uma relação prática dos homens com o mundo e suas criações, ensejando o desenvolvimento integrado entre teoria e prática.” (RESENDE, 1986:16) Proudhon escreve que, na teoria serial, não existe continuidade, pois continuidade é sinônimo de identidade absoluta e é análoga à ideia de substância e de causa. Quem diz substância, fala de algo particular, limitado; portanto, não contínuo nem absoluto. Também ocorre que, se é contínuo, não tem início. Se não inicia, não tem causa. Proudhon diz que a continuidade apresenta-se de fato para nós, mas ela é uma ideia verdadeira somente no momento em que ela apresenta-se anterior à diferenciação dos seres e anterior a nós. A ideia de continuidade é legitima porque a hipótese que ela exprime é em virtude das leis de nosso entendimento, que é obtida da própria observação da série, que é sua contraditória. Assim, a coesão dos corpos e a sucessão dos fenômenos nos dão a ideia de continuidade, mas na verdade esta continuidade não existe em parte alguma.(Ibidem:43)

Pierre-Joseph Proudhon escreve que a natureza não faz nada bruscamente e nem procede por saltos, mas opera de maneira sucessiva e progressiva. Essa ideia de continuidade é, na verdade, “progresso seriado”.

As ideias de continuidade e de progressão parecem realmente se excluir: quem diz progresso diz necessariamente sucessão, transporte, crescimento, passagem, adição, multiplicação, diferença, série, enfim; de maneira que a expressão movimento continuo não é mais que uma metáfora. (Idem)

O autor diz que cada série encerra em si mesmo seu princípio, sua lei, sua certeza. Cada uma das séries é independente, e o conhecimento de uma não supõe nem engloba o conhecimento da outra. (RESENDE, 1986:45) O que produz nas ciências a diversidade da série é a diversidade do objeto. Ainda que se possa, por abstração de todo objeto, construir uma teoria geral da seriação, as diversas formas de séries não se explicam umas pelas outras. Não existe ciência universal, porque não há objeto universal. (Idem)

De todas essas considerações, resulta que a metafísica, ou teoria da lei serial, não é ciência, mas método; não é um método especial e objetivo, mas um método sumário e ideal; que ela não prejulga e não exclui nada, acolhe todos os fatos e os nomeia sem temor de ser desmentida por nenhum; que ela não pretende de modo algum produzir por si mesma o conhecimento e não se antecipa à observação: bem diferente dos pretensos sistemas universais, construídos com base na atração, expansão, causação, deificação e outros sistemas ontológicos, monumentos da preguiça e da impotência. (Idem)

Proudhon diz que a série é a antítese da unidade, que se forma pela repetição das combinações diversas da unidade. (Ibidem: 46) A unidade, por sua vez, é considerada elemento da série, se reveste de todas as formas possíveis: (…) Numa roda de engrenagem, a unidade de série é o dente; num tabuleiro de xadrez, essa unidade é a casa; num poliedro, ela é a pirâmide, tendo seu cume no centro do sólido e sua base na superfície. (Idem) Proudhon defende a ideia do “sistema”, que configura o conjunto. O sistema é a roda de engrenagem, o tabuleiro etc. Este sistema deve ser compreendido de maneira progressiva, nos termos que o próprio Proudhon define: Sem unidade, nada de verdade, nada de beleza, nem mesmo de moralidade. Um sistema sem unidade é uma contradição; uma dupla justiça é a própria iniquidade. (Ibidem: 83)

Para Proudhon : (…) a história nos apresenta, numa sucessão lógica e cronológica, os dois princípios – Autoridade e Liberdade –, os mesmos de onde procede todo mal “(Ibidem:70) Ele escreve que, durante todos os tempos e em todas as sociedades, quanto mais um organismo ganha em unidade perde em massa. E que, em toda coletividade, a potência orgânica perde em intensidade o que ganha em extensão e reciprocamente. (Ibidem:83) Acrescenta ele: Essa lei é universal, rege o mundo do espírito tanto quanto o dos corpos; ela se encontra na filosofia, na ciência, no direito, na literatura, na arte, na poesia, na história etc. (Idem) O escritor opõe-se a toda filosofia da história, seja a de Bossuet, de Condercet, de Saint-Simon, de Hegel ou de Herder. Para ele, a filosofia da história nega a responsabilidade do homem coletivo ou individual, na orientação do esforço voluntário, seja no sentido do progresso ou do regresso. (GURVITCH:89)

Para Georges Gurvitch, na obra de Proudhon está presente a concepção de saber instrumental. No livro “La Célebration du Dimache”, ele escreve que deve existir uma ciência social (sociologia) que guie a revolução social. (Ibidem:25) Para o anarquista, a ciência deve ser um instrumento para a transformação da sociedade. No livro La Création de l’Ordre, Proudhon escreve: As leis da economia política são as leis da história. (Ibidem:44) Nesta passagem, Proudhon acredita na existência de Leis na “ciência social”, e que, no caso da história, as leis seriam encontradas na economia política. Para Proudhon, a História não é uma ciência, mas matéria de uma ciência. (Idem) Ele recusa confiar na ciência histórica do seu presente, que, segundo ele, é uma reconstrução guiada por ideologias da sociedade existente. (Idem) Em poucas palavras, pode-se perceber que Proudhon acreditava ser possível um ciência social, e que a História não é uma ciência, mas se utiliza das ciências auxiliares e que, na metade do século XIX, a História era utilizada para fins políticos e ideológicos.

Para Proudhon, o progresso é esforço criador e revolução sempre renovada, é visto como a negativa do absoluto. O progresso é a permanente mudança, transformação. (Ibidem:87) Ele defende uma dialética realista e empírica por um lado, e da liberdade coletiva criadora por outro. Os resultados não são previsíveis, no sentido de não serem determinados. (Ibidem:43) A dialética proudhoniana prova que, na realidade social, a liberdade e o determinismo social se interpenetram, se completam, se implicam e se polarizam de diversas maneiras. (Ibidem:142)

A análise sobre a ideia de História no discurso de Proudhon ficou prejudicada na medida em que não se teve acesso às obras de Proudhon, mas a interpretações das mesmas. Boa parte das informações apresentadas aqui são frutos de leituras indiretas. Não é necessariamente o que ele disse, mas o que se disse sobre ele. Pelo exposto no texto, é possível afirmar que Joseph Proudhon não quer construir uma teoria absoluta que explique “toda” a história, mas procura compreender a “Conjuntura” capitalista, a partir da “Revolução Industrial” onde ele fala em quatro tipos de períodos ou estágios da sociedade industrial. Ele procura construir um “método que detecta o movimento da história”. Sua concepção é “progressista” e parte da economia política. O progresso para ele representa a continuidade da ruptura. Os fenômenos desenvolvem-se em unidades arranjadas de forma sistêmica, onde cada parte mantém relativa ou total autonomia em relação ao todo. A base da sociedade, para ele, é a “oficina”, por isso ele defende a economia política. Defende as particularidades na história, o empírico, e que não há determinismo na história. Do que foi escrito acima, fica nítido que Proudhon não reconhecia, na História, uma ciência, que a explicação só é possível a partir da economia política (ciência auxiliar). Para ele, a história é uma narrativa lógica, cronológica e que é utilizada de forma político-ideológica.

3.2. Bakunin: a história é a negação do passado.

Michael Alexandtovich Bakunin nasceu em 1814 e faleceu em 1876. Pertenceu a uma rica família proprietária de terras na Rússia. Foi na Europa que se converteu ao radicalismo político. Participou das rebeliões que ocorreram em Paris em 1848 e 1849. Era um conspirador nato, viveu a maior parte do tempo de sua vida organizando insurreições, rebeliões, organizações políticas revolucionárias e preso. Nos curtos espaços de tempo que possuía, quando não estava em “barricadas” e organizando revoltas, escrevia principalmente artigos para a imprensa revolucionária e operária. (BAKUNIN, 1999:05s)

Dos vários escritos de Bakunin, neste manuscrito, que, mais tarde, torna-se conhecido como Deus e o Estado, ele dedica algumas linhas ao estudo da História. A primeira edição de Deus e o Estado foi, em 1882, publicada em Genebra, o titulo da obra não é de autoria de Bakunin, mas dos organizadores dos textos: Carlo Cafiero e Eliseé Reclus. O texto original foi recolhido de trechos do manuscrito denominado “Império Knouto-germânico” de 1871. Bakunin inicia seus escritos afirmando que três elementos constituem na história, as condições essenciais de todo desenvolvimento humano: 1º) a animalidade humana; 2º) o pensamento; 3º) a revolta. À primeira corresponde propriamente a economia social e privada; à segunda, a ciência; à terceira, a liberdade. (Ibidem: 03)

Bakunin escreve que o homem, com toda sua inteligência, ideias sublimes e aspirações infinitas “é produto da vil matéria”. (Idem) O revolucionário russo define-se materialista e escreve: Sim, os fatos têm primazia sobre as ideias; sim, o ideal, como disse Proudhon, nada mais é do que uma flor, cujas condições materiais de existência constituem a raiz. Sim, toda a história intelectual e moral, política e social da humanidade é um reflexo da sua história econômica. (Ibidem: 04) Para Bakunin, a condição animal no homem é nata, o pensamento é uma faculdade e capacidade, a revolta uma necessidade. (Idem) A ação progressiva da história se constituiu em combinar a faculdade de pensar e de se revoltar. É a potência negativa no desenvolvimento positivo da animalidade humana e que constitui tudo o que há de humanidade nos homens. (Idem) Para Bakunin, a humanidade é um ato de revolta; assim escreve: O homem se emancipou, separou-se da animalidade e se constituiu homem; ele começou sua história e seu desenvolvimento especificamente humano por um ato de desobediência e de ciência, isto é, pela revolta e pelo pensamento. (BAKUNIN, 2008:06)

Para exemplificar a animalidade humana, Bakunin cita como exemplo a invasão da França pela Alemanha. No momento em que se aceita esta origem animal do homem, tudo se explica. A história consiste na negação progressiva da animalidade primitiva do homem pelo desenvolvimento de sua humanidade. Progredir é negar o passado. O autor acredita na “evolução” humana, ele é um evolucionista:

O homem, animal feroz, primo do gorila, partiu da noite profunda do instinto para chegar à luz do espírito, o que explica de uma maneira completamente natural todas as suas divagações passadas e nos consola em parte de seus erros presentes. Ele partiu da escravidão animal, e atravessou a escravidão divina, termo transitório entre sua animalidade e humanidade, caminha hoje rumo à conquista e a realização da liberdade humana. (Ibidem:10)

A antiguidade de uma crença ou ideia, longe de provar alguma coisa, deve, pelo contrário, torná-la suspeita entre nós. Justo porque, atrás de nós, está nossa animalidade, e, diante de nós, nossa humanidade; a luz humana, a única que pode nos aquecer e nos iluminar, a única que pode nos emancipar, tornar-nos dignos, livres, felizes, e realizar a fraternidade entre nós, jamais esta no princípio, mas, relativamente, na época em que se vive, e sempre no fim da história.(Idem)

Depois de afirmar que jamais devemos olhar para trás, que é necessário olhar sempre pra frente, aonde o autor chega falar em “salvação”, ele assim se refere ao estudo do passado:

(…) se nos é permitido, se é mesmo útil, necessário, nos viramos para o estudo de nosso passado, é apenas para constatar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos, e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que fizemos e o que nunca mais devemos fazer. (Idem)

A História, também pode servir como “lição”, e como testemunho e recurso argumentativo, como nestes exemplos: (…) não faltam as provas da história (Ibidem:23); ou Numa palavra, não é difícil provar, com a história na mão (…) (Ibidem:25)

A contradição de Bakunin está no fato de que ele quer combater a “metafísica”, com outra “metafísica”, fazendo crer que existe um destino histórico. Esta contradição é expressa na passagem a seguir:

Ela sabe, enfim, quando não está viciada pelo doutrinarismo teológico ou metafísico, político ou jurídico, ou mesmo por um estrito orgulho, quando ela não é surda aos institutos e às aspirações da vida, e que o grande, o verdadeiro objetivo da história, o único legítimo, é a humanização e a emancipação, é a liberdade real, a prosperidade de cada indivíduo vivo na sociedade. (Ibidem:31)

Para tratar do estudo científico dos fenômenos sociais, Bakunin escreve que não são individualidades abstratas, mas indivíduos, agindo e vivendo, que fazem a história. Segundo ele, as abstrações só existem quando conduzidas por homens reais, e acrescenta: Para esses seres formados, não somente em ideias, mas em realidade, de carne e de sangue, a ciência não tem coração. (Ibidem: 32)

Bakunin escreve que a ciência jamais abdicaria de suas teorias eternas; para ele, isso é a “ciência”. Para ele, a ciência não se ocupa do concreto, ela só pode mover-se em abstrações:

Sua missão é ocupar-se da situação e das condições gerais da existência e do desenvolvimento, seja da espécie humana em geral, seja de tal raça, de tal povo, de tal classe ou categorias de indivíduos, das causas gerais de sua prosperidade, de sua decadência e dos meios gerais bons, para fazê-los progredir de todas as maneiras. Desde que ela realize ampla e racionalmente esta tarefa, ela terá feito todo seu dever e seria realmente injusto pedir-lhe mais. (Idem)

A crítica de Bakunin é posta no momento em que ele afirma que, até o presente momento, toda a história humana foi uma imolação perpétua e sangrenta de milhões de pobres seres humanos em nome de uma abstração impiedosa qualquer: Deus, Pátria, poder do Estado, honra Nacional, direitos históricos, liberdade política, bem-público. (Idem)

Bakunin discute a possibilidade da constituição de uma ciência histórica, e faz alguns questionamentos no sentido de saber o seu alcance: A verdadeira ciência da história ainda não existe; quando muito, começam-se a entrever, hoje, as condições extremamente complicadas. Mas suponhamo-la definitivamente feita, o que ela poderá nos dar?(Ibidem: 33) Ele escreve que esta História científica estabelecerá o quadro fiel do desenvolvimento das sociedades que tiveram história. Se ele diz: das sociedades que tiveram história, deixa implícito que em sua concepção existiram sociedades sem história. O ideólogo anarquista escreve: Mas este quadro universal da civilização humana, por mais detalhado que seja, jamais poderá conter, senão, apreciações gerais e, por consequência, abstratas. (Idem)

Sobre os bilhões de indivíduos que forneceram a matéria-prima viva e sofredora desta história, Bakunin diz que eles não encontrarão sequer o mínimo lugar nos anais. Desta forma, eles viveram e foram sacrificados pelo bem da humanidade abstrata, eis tudo! (Idem) Ele pergunta: Será preciso censurar a ciência da história? E responde: Seria injusto e ridículo. (Idem) A ciência é incapaz de abordar os indivíduos, pois estes são inapreensíveis pelo pensamento, pela reflexão, até mesmo pela palavra, que só é capaz de exprimir abstrações. Esta incapacidade, diz Bakunin, ocorre tanto no presente, quanto no passado. A ciência social, a ciência do futuro, continuará forçosamente a ignorá-los. No que podem contribuir as ciências sociais e a História:

Tudo o que temos direito de exigir dela é que nos indique, com mão fiel e segura, as causas gerais dos sofrimentos individuais, e, entre estas causas, ela sem dúvida não esquecerá a imolação e a subordinação ainda muito frequente, infelizmente, dos indivíduos vivos às generalidades abstratas; e, ao mesmo tempo, nos mostrará às condições gerais necessárias à emancipação real dos indivíduos vivendo na sociedade. Eis sua missão, eis também seus limites (…)” (Ibidem:33s)

Fica evidente que Bakunin é adepto da metafísica, chegando a afirmar: Todos os sistemas de metafísica nada mais são do que a psicologia humana se desenvolvendo na história. (Ibidem: 39) Ele escreve que a história é feita pelos homens, condicionados pelas condições históricas. Para fecundar os elementos históricos, para fazê-los percorrer uma série de transformações, é necessário um fato vivo, espontâneo, sem o qual podem permanecer muitos séculos ainda em estado de elementos improdutivos. (Ibidem: 40)

Neste texto de Bakunin, datado de 1871, Deus e o Estado é uma produção que possui como fundo o processo histórico. O autor inicia a exposição escrevendo sobre “estágios” ou “etapas” da história da humanidade. Bakunin proclama-se materialista, e escreve sobre as crenças e concepções ideológicas e filosóficas dos seres humanos na história. Trabalha com a ideia de progresso e evolução. Possui uma concepção metafísica da história, deixando transparecer que existe um “objetivo” na história, uma lei suprema etc. Para ele, o último estágio da evolução humana é a necessidade de revolta, que potencializa para a construção da sociedade mais humana. Michael Bakunin diz que não devemos estudar o passado, a História, para procurar exemplos positivos, mas sim exemplos negativos, de como não fazer. Justifica dizendo que atrás está nossa animalidade e é na frente que encontramos nossa humanidade. Fica evidente que, para ele, a humanidade não regride, que só existe progresso. Ele acredita que seria possível uma História ciência com suas leis correspondentes. Esta História científica não estudaria os indivíduos, pois somente trataria de generalidades. Teria como tarefa iluminar o caminho para libertação da sociedade e dos seres humanos. Para este anarquista, os indivíduos não apareceriam na História, somente os grandes conjuntos, grupos e classes. Bakunin afirma que existe algo exterior aos homens que condiciona o rumo da história, porém ele acrescenta que a história é feita pelos homens, condicionados, que fecundam os elementos latentes do devir histórico. Assim, percebe-se que Bakunin concorda com a criação de teorias científicas que expliquem o desenvolvimento da história. Ele possui uma concepção metafísica, hipotético-dedutiva e teórica para o estabelecimento da “ciência social” e da História.

3.3. Peter Kropótkine: A história no comportamento do homem.

Pedro Alekesyvich Kropotkine nasceu em 1842, na Rússia, e faleceu em 1921, no mesmo país. Era de família rica, descendia de nobres russos. Filho de um oficial de alta patente, Kropótkine não quis seguir a carreira militar e preferiu os estudos científicos. Tornou-se geógrafo, publicando várias obras importantíssimas, é ainda lembrado pelos geógrafos como o cientista que muito contribuiu para o conhecimento da história da terra. Vai para a Europa, onde se dedica ao estudo e produção intelectual, do que ele chama de “idealismo social”. A ciência passou a ser a serva de seus objetivos revolucionários. Na Suíça, participa ativamente de grupos de revolucionários e conspiradores, identificando-se com os anarquistas. Passou a produzir e publicar estudos de sociologia, procurando dar ao anarquismo o caráter de ciência. Para ele, a sociedade evolui no sentido da concretização da sociedade sem classes e sem o Estado. (WOODCOCK, 2002:212s) A obra escolhida para analisar-se, aqui, foi “A Questão Social”. No prefácio da edição francesa, de fevereiro de 1913, Peter Kropótkine agradece ao historiador (anarquista) “Dr. Max Nettlau”, pela ajuda na elaboração das Notas com o grande conhecimento deste último sobre a literatura socialista. (KROPÓTKINE, s/d:09)

Ao referir-se aos avanços da ciência, e a contribuição desta para a melhoria, reforma ou revolução da sociedade, Kropótkine cita, entre esses avanços, a “interpretação antropológica da história”. (Ibidem: 26) Depois de fazer uma avaliação da contribuição de Darwin para a interpretação dos fenômenos, Kropótkine escreve que a ideia de um contínuo desenvolvimento, da progressiva evolução e gradual adaptação dos indivíduos e sociedades às novas condições, a partir do momento em que estas se modificam, encontrou aplicação muito mais larga que a que, até então, pretendia explicar a origem das espécies. Assim escreve que, se fundamentando nesse principio, tão rico de consequência, foi possível reconstituir, não somente a história dos organismos, mas a própria das instituições humanas. (Ibidem: 40s)

Kropótkine afirma que os estudos de Darwin são os primeiros fundamentos sólidos e científicos da História. O evolucionismo fundamenta a história dos hábitos, dos costumes, das crenças e das instituições humanas. Essa fundamentação científica faltava para os cientistas sociais do século XVIII, e que, para ele, é um golpe contra a metafísica do século XIX:

Essa história – a das sociedades humanas, das várias instituições sociais e das religiões – podemos agora escrevê-la, norteando-nos pelo fecundo princípio da evolução, sem necessidade de recorrermos às formulas metafísicas de Hegel, sem ser preciso apelar para ideias inatas, para uma revelação exterior e superior ou ainda para a substância de Kant. (Ibidem:41)

Pedro Kropótkine diz que, graças aos trabalhos de naturalistas, que souberam aplicar o mesmo método científico aos estudos das instituições primitivas e das leis que delas derivam a sua origem, foi possível estabelecer a história do desenvolvimento das instituições humanas em bases tão firmes como hoje está a história do desenvolvimento de qualquer espécie vegetal ou animal. (Idem) Só foi possível obter resultados exatos, científicos, depois que os homens de ciência começaram a considerar os fatos históricos do mesmo modo por que um naturalista considera o desenvolvimento gradual dos órgãos de uma planta ou de uma nova espécie. (Ibidem: 42)

O cientista anarquista defende o método empírico para o estudo da história, relacionando a História à antropologia e não à economia política. Para ele, o estudo da antropologia, que o é o estudo da evolução fisiológica do homem e do desenvolvimento das suas instituições sociais e religiosas, auxilia e possibilita a compreensão da História. Só assim foi, enfim, possível traçar as linhas essenciais da história da humanidade, abandonando para sempre a metafísica, que, até então, só havia obstruído o estudo da História tal como a tradição bíblica obstruíra outrora o estudo científico e o progresso da geologia. (Ibidem:43)

Apresenta críticas aos marxistas, escrevendo: Em consequência da sua predileção pelo método dialético e pela metafísica econômica, em vez de se aplicarem aos estudos dos fatos concretos da vida econômica dos povos, bastaria referir os numerosos e crassos erros econômicos em que os marxistas incidiram. (Ibidem:43) Kopótkine diz que a metafísica só obstruiu o desenvolvimento e o estudo científico da história. Após criticar a metodologia dos economistas políticos, em relação ao que ele chama de metafísica (deduções) e elucubrações teóricas, Peter Kropótkine escreve: A questão unicamente pode ser resolvida estudando os fatos econômicos pelo mesmo método por que se estudam as ciências naturais. (Ibidem:152) Neste caso, o método empírico.

O cientista escreve que a estrutura da sociedade humana é algo que nunca está definitivamente constituído. As estruturas estão sempre transbordando de vida e vivem em continua mutação conforme as necessidades e aspirações de cada momento histórico. (Ibidem: 162) A história é feita pelos indivíduos, e acrescenta: (…) a nossa concepção de progresso está em uma ininterrupta aproximação do princípio do desenvolvimento da livre iniciativa individual e coletiva.(Idem)

Apresenta o papel político e ideológico do cientista e historiador, que, para ele, apresenta-se também na escolha dos temas de pesquisa: Pois que partido revolucionário somos, procuremos averiguar exatamente a gênese e a evolução das revoluções passadas, desembaraçando a sua história das falsas interpretações estatistas que os historiadores lhe têm atribuído até hoje. (Ibidem:163)

Kropótkine diz que, nas Histórias escritas até aquele tempo, das várias revoluções ocorridas, o que menos vemos nelas é a ação do povo. Afirma que, nestas Histórias, nada ficamos sabendo acerca de sua gênese. Ele afirma que as frases que se habituou ler na introdução dessas Histórias sobre o estado de desespero do povo, nas vésperas das sublevações, não nos elucidam em coisa alguma. Não sabemos como, no meio desse desespero, surgiu no espírito popular, e como se elaborou e desenvolveu a esperança de uma melhoria possível de situação, de uma aurora nova, que o redimisse da condição sofredora em que se achava. (Idem) O escritor incentiva a pesquisa história, ao escrever:

E assim é que, depois de havermos lido essas histórias, que nada esclarecem, se, porventura, quisermos encontrar alguma informação útil sobre a marcha das ideias e do seu despertar no seio do povo, a parte efetiva que este tomou nos acontecimentos, temos de recorrer às fontes históricas de primeira mão, sem o que ficaremos na mesma, como antes. (Idem)

Na conclusão do livro, Kropótkine afirma que os anarquistas optam pelo método indutivo-dedutivo para a apreciação das instituições humanas. (Ibidem: 170) Para ele, os anarquistas, usando do método indutivo-dedutivo da ciência, para reconstruir as instituições sociais e culturais, baseando-se nas modernas investigações etnológicas e antropológicas e utilizando-se dos documentos históricos que a ciência moderna tem vindo arquivando, oferece-se um caminho para uma interpretação da história. (Ibidem:171) A escolha pelo método indutivo-dedutivo é justificada por Kropótkine na medida em que previne e possibilita ao investigador corrigir possíveis erros nas descobertas e nos próprios métodos. Ele não concorda com a “metafísica alemã” e as “leis científicas”, pois, para ele, estas leis são tomadas como “verdades absolutas”; conforme Kropótkine, em primeiro lugar vêm os fatos, as realidades e a constituição de verdades provisórias, sempre críticas. (Ibidem:172)

Kropótkine diz que, entre os avanços da ciência, está a interpretação antropológica da história. Ele acredita que o evolucionismo confere cientificidade à História. Defende a utilização do método indutivo-dedutivo, que, para ele, é o verdadeiro método científico, partindo do empírico e confrontando com as teorias e generalizações. Defende que os fatos econômicos devem ser estudados com os mesmos métodos das ciências naturais, ou seja, caso a caso. Segundo Kropótkine, o historiador deve ser um agente político. Conforme o “cientista”, nas Histórias das revoluções escritas até aquele tempo, o que menos se vê é a participação do povo. Se por algum motivo, queira-se saber da participação do povo, seus projetos, suas ações, suas formas de organização e suas ideias, é necessário procurar nos documentos históricos.

3.4. Rudolf Rocker: a história como “vontade de potência”.

Rudolf Rocker nasceu em 1873 na Alemanha, e faleceu em 1958 nos E.U.A.; é reconhecido como historiador e ativista anarquista. Contribuiu muito para o pensamento anarquista do século XX, publicando mais de 30 obras. Sua principal obra é, sem dúvida, “Nacionalismo e Cultura”, obra em que assinala que o nacionalismo moderno é uma ruptura no processo geral da cultural. O primeiro capítulo desta obra, que será analisada a seguir, chama-se “La insuficiência del materialismo econômico” ou “A insuficiência de todas as interpretações históricas”, em algumas traduções. Rudolf Rocker acredita que seja impossível analisar a história com métodos científicos. (ROCKER, 2007)

Rocker escreve que o reconhecimento da significação das condições econômicas na conformação da sociedade é a essência do socialismo. (Idem) Para abordar as interpretações Históricas do marxismo, Rudolff Rocker diz que o erro fundamental da teoria marxista é equiparar as causas dos fenômenos sociais às causas dos fenômenos físicos. (Ibidem:02) Para ele, quanto mais profundamente se examina as influências políticas na história, mais se chega à convicção de que a “vontade de poder” tem sido, até agora, um dos estímulos no desenvolvimento das formas de sociedade humana. (Ibidem:01)

O historiador anarquista escreve que a ciência se ocupa exclusivamente dos fenômenos naturais, que está ligada ao tempo e espaço, sendo acessíveis aos cálculos do intelecto humano. (Ibidem: 02) Ele diz que grande parte das interpretações históricas se baseiam nesta noção errada das leis da existência e que estão na base de todo acontecimento social. Em outras palavras: porque confundieron las necesidades mecánicas del desarrollo natural con las intenciones y los propósitos de los hombres, que han de valorarse simplemente como resultados de sus pensamientos y de su voluntad. (Idem)

O historiador afirma que não nega a existência na História de relações internas que se pode atribuir à noção de causa e efeito, mas se trata de processos sociais, sempre de uma causalidade de fins humanos. As causalidades de natureza físicas se desenvolvem independentes do nosso consentimento; as causalidades históricas são manifestações de nossa vontade. (ROCKER, 2007) Toda finalidade humana preestabelecida é uma questão de fé, e escapa ao calculo cientifico. Assim, Rudolf Rocker diz que: En el reino de los hechos físicos sólo rige el debe ocurrir, en el reino de la fe, de la creencia, existe sólo la probabilidad: puede ser, pero no es forzoso que ocurra. (Idem)

Para ele, toda tentativa de previsão humana, de uma finalidade, é para a existência social de grande importância, porém deve deixar de considerar os acontecimentos sociais como manifestações forçosas de uma evolução naturalmente necessária. Semelhante interpretação tem levado aos piores sofismas e levado à perda total de todo verdadeiro entendimento da história. (Idem) Rudolf Rocker escreve sobre a incapacidade de prever os acontecimentos na história, a partir dos motivos e das causas:

Para el cálculo de motivos y propósitos humanos no hay ninguna medida exacta, porque no son accesibles, de ninguna manera al cálculo. Es imposible calcular y predecir el destino de pueblos, razas, naciones y otras agrupaciones sociales; ni siquiera nos es dado encontrar una explicación completa de todo lo acontecido. (Ibidem:04)

A definição de história, pelo historiador anarquista Rudolff Rocker, é a seguinte: La historia no es otra cosa que el gran dominio de los propósitos humanos; por eso toda interpretación histórica es sólo una cuestión de creencia, lo que, en el mejor de los casos, puede basarse en probabilidades, pero nunca tiene de su parte la seguridad inconmovible. (Idem) O escritor diz que toda interpretação da História pode conter ideias importantes para a explicação dos fatos históricos, isto é inquestionável, porém afirma que só não concorda com a afirmação de que a “marcha” da história esteja sujeita às mesmas e idênticas leis dos conhecimentos mecânicos e físicos da natureza. (Idem) Para ele, não existem leis na História, esta é sua afirmação categórica: No hay ninguna ley en la Historia que muestre el camino de cualquier actuación social del hombre. (Idem) As causas que originam os processos da vida social não têm nada de comum com as leis do devir natural físico e mecânico, pois estas causas são resultado das tendências finalistas dos homens, e que não se deixam explicar de modo puramente científico. (ROCKER, 2007)

Qualquer pessoa que pense de forma mediana sabe que é impossível conhecer um período histórico sem levar em consideração suas condições econômicas. Porém, é completamente equivocado querer que toda a história seja unicamente resultado das condições econômicas. (Idem) Sendo contrário ao monocausalismo econômico, Rudolf Rocker defende uma concepção pluricausal, ou multicausal:

Todos os fenómenos sociales se producen por una serie de motivos diversos que, en la mayoría de los casos, están entrelazados de tal modo, que no es posible delimitarlos concretamente. Se trata siempre de efectos de múltiples causas, que pueden reconocerse claramente, pero que no se pueden calcular de acuerdo con métodos científicos. (Ibidem:06)

O historiador anarquista destaca que a “vontade de poder”, que parte sempre de indivíduos ou de pequenas minorias da sociedade, é uma das forças motriz mais importante da história, porém que tem importância decisiva na formação da vida econômica e social inteira. (Idem) É um erro muito grave para os historiadores, quando os diversos estratos sociais de uma determinada época, são reduzidos a uma relação econômica, e completa: Una interpretación tal no sólo empequeñece el campo general de visión del investigador, sino que hace de la Historia entera una caricatura que ha de conducir siempre a nuevos sofismas. (Ibidem: 09)

Rudolf Rocker diz que as condições econômicas, por si só, não podem modificar toda uma estrutura social, se não existirem nos homens as condições psicológicas e espirituais que deem sentido e agrupem as forças sociais dispersas para uma obra comum. (Ibidem: 10) Segundo ele, todos sabem que as questões econômicas têm muita influência na transformação das condições sociais, mas é muito mais importante saber o modo como os seres humanos reagem, em seu pensamento e ação, sobre a influência e os passos que dão no sentido de implantar uma transformação na vida social considerada necessária. (Ibidem: 13) Para destacar o estudo dos fatores subjetivos na história, ele escreve: El valor y la cobardía no son determinados por las formas eventuales de la producción, sino que arraigan en los estratos psíquicos del hombre. (ROCKER, 2007)

Ao estudar as relações de poder, Rudolf Rocker destaca que é necessário analisar a “política de domínio”, sem se importar por quem esta seja movida e nem a que finalidade imediata sirva. (Ibidem: 16) Para o historiador, que escreveu este texto em 1937, o estudo da “vontade de poder” ou “política de domínio”, pode ser um instrumento para a interpretação da história, e assim completa: El triunfo o el fracaso de los planes de dominio capitalista-monopolistas determinará la nueva estructuración de la vida social en el próximo futuro. (Ibidem: 18)

Portanto, para Rudolf Rocker, o reconhecimento da importância do fator econômico é a essência do socialismo, porém não justifica o reducionismo e o determinismo econômico. Diz que não existe possibilidade do uso do método científico das ciências naturais para a interpretação da história. Para ele, não existem leis históricas, mas acredita no regime de causalidade. As causas em história são manifestações das vontades humanas. Acredita que seja interessante a busca por “previsão” na história. Escreve que, no máximo, pode-se falar em probabilidades em História, nunca em certezas. Defende a ideia de que, em história, não existe um mecanismo monocausal, mas sim pluricausal. O historiador acredita que a “vontade de poder” é um grande estimulador do desenvolvimento das formações sociais. Para ele, minorias, muitas vezes organizadas, possuem importância decisiva na formação da vida econômica e social de dadas sociedades. A “vontade de poder” ou a “política do domínio” deveriam ser mais bem estudadas na História, pois estas forças é que disputam e são deveras responsáveis pelas representações e construções sociais que existem. Rudolf Rocker, fazendo alusão às atividades políticas revolucionárias, diz que não são as condições econômicas que produzem o covarde.

  1. Conclusão

As discussões propostas por Proudhon em relação à história estão de acordo com o historicismo e o empirismo positivista e da Escola Metódica, na medida em que ele não pretende criar uma teoria que explique toda a história, mas um “método que detecta o movimento da história”. Pretende deixar de lado toda metafísica, a filosofia da história, porém o que mais vemos em suas obras são citações de historiadores românticos, como Michelet. As contradições aparecem, e o autor não as nega, uma vez que ele afirma o movimento teleológico da história, representado na continuidade da ruptura. Para ele, os fenômenos desenvolvem-se em unidades arranjadas de forma sistêmica, onde cada parte mantém relativa ou total autonomia em relação ao todo. Defende as particularidades na história, o empírico, e que não há determinismo na história. Para Proudhon, a História é uma narrativa lógica, cronológica e que é utilizada de forma político-ideológica, funcionando com o auxílio de “ciências auxiliares”, que, para ele, seria a economia política. O modelo de ciência, segundo ele, era a ciência natural; por isso, Proudhon não admitia que a História produzisse leis, portanto a História não seria ciência. Proudhon discutia com Marx a questão da constituição de “Ciências Sociais”. Marx buscava a construção de uma teoria, não pelo método empírico, mas pelo dedutivo. Proudhon acreditava que a constituição de teorias, principalmente se não fossem fundamentadas em experiências, seria a intromissão da filosofia e da ideologia na ciência. Em uma carta em resposta a Marx, Proudhon escreve: (…) faço profissão pública de um antidogmatismo econômico quase absoluto. Se o senhor quiser, investiguemos juntos as leis da sociedade. (…) Mas, por Deus! Depois de demolir todos os dogmatismos a priori, não sonhemos, de nossa parte, com a doutrinação do povo. (RESENDE, 1986: 20) Proudhon dizia que não é o econômico que determina a sociedade, mas a sociedade (conjunto de vários fatores) que produz a economia. Ele morreu dois anos antes da publicação de O Capital.

Bakunin tenta “desvendar” o processo histórico, descrevendo sobre “estágios” ou “etapas” da história da humanidade. Proclama-se materialista, e escreve sobre as crenças, as concepções ideológicas e filosóficas dos seres humanos na história. É um iluminista, acreditando na razão e na ideia de progresso e evolução. Possui uma concepção metafísica da história, deixando transparecer que existe um “objetivo”, um destino já traçado na história. Michael Bakunin desconfia do passado e possui fé no futuro. Defende uma ruptura com o passado, que o devir histórico é contra a história. Ele acredita que seria possível uma História ciência com suas leis correspondentes. A História científica, para Bakunin, não estudaria os indivíduos, mas somente os grandes grupos e classes. Teria como tarefa iluminar o caminho para libertação da sociedade e dos seres humanos. Bakunin afirma que existe algo exterior aos homens que condiciona o rumo da história; porém, ele acrescenta que a história é feita pelos homens, condicionados, que fecundam os elementos latentes do devir histórico. Ele possui uma concepção metafísica, hipotético-dedutiva e teórica para o estabelecimento da História ciência. Não se pode deixar de considerar que o texto de Bakunin é incompleto, foi interrompido. Sua análise histórica é muito fraca, metafísica, filosófica e muito idealista. Destaca-se que, no período em que ele escreveu seu texto, alguns historiadores já estavam procurando a constituição da história como ciência social, com suas teorias próprias e independentes. Ele procurou fazer o contraponto ideológico à produção de Marx, que escreveu sua tese fundamentando-se na economia política, enquanto Bakunin, embora se afirmando materialista, produziu o que hoje se chama “história das mentalidades”.

No inicio do século XX, antes da Primeira Guerra e da Revolução Russa, Kropótkine, também em oposição ao marxismo, diz que, entre os avanços da ciência, está a interpretação antropológica da história. Ele acredita que o evolucionismo confere cientificidade à História. Defende a utilização do método indutivo-dedutivo no estudo da História, que, para ele, é o verdadeiro método científico, partindo do empírico e confrontando com as teorias e generalizações antropológicas. Defende que os fatos econômicos devem ser estudados com os mesmos métodos das ciências naturais, ou seja, caso a caso. Defende também que o historiador deve ter compromisso político. Na historiografia das revoluções escritas, até aquele momento o que menos se vê é a participação do povo. Para saber da participação do povo na história, seus projetos, suas ações, suas formas de organização, lutas e ideias, é necessário procurar nos documentos históricos. Kropótkine pensava de acordo com os historiadores de seu tempo – procuravam uma história social, onde aparecesse a participação do povo. Defende uma concepção de história científica aliada às ciências sociais, principalmente a antropologia. Buscava provar que a “ajuda mútua” era o fator determinante no processo histórico, que conduzia a sociedade para o “reino” da igualdade e da liberdade. Apesar disso, no caso da História especificamente, foi bem coerente em termos teóricos e metodológicos.

O historiador Rudolf Rocker afirma que reconhecer a importância do fator econômico é a essência do socialismo, mas isso não justifica o reducionismo nem o determinismo econômico. Para ele, não existe possibilidade do uso do método científico das ciências naturais para a interpretação da história. Ele escreve que não existem leis históricas, todavia acredita no regime de causalidade. As causas em história são manifestações das vontades humanas. Não acredita em leis históricas, embora considere que, no máximo, seja possível falar em probabilidades em História, nunca em certezas. É contra a tese de um mecanismo monocausal, defendendo, sim, o pluricausal. Para Rudolf Rocker, a “vontade de poder” é um grande estimulador do desenvolvimento das formações sociais. As minorias, muitas vezes organizadas, possuem importância decisiva na formação da vida econômica e social de dadas sociedades. Os historiadores deveriam estudar mais a “vontade de poder” ou a “política do domínio”. Rudolf Rocker parece não estar acompanhando as transformações historiográficas que passam a surgir a partir da Escola dos Annales. O modelo de ciência que os historiadores vêm tomando desde o início do século não é o das ciências naturais e nomotéticas, mas as ciências sociais que vêm se desenvolvendo. Sua crítica ao determinismo econômico propõe uma historiografia contraria ao marxismo-leninismo. Em sua principal obra, denominada “Nacionalismo e Cultural”, aborda questões caras ao socialismo, como o Estado e o nacionalismo. O estudo de sua prática historiográfica merece mais dedicação nos termos da metodologia e da historiografia. A princípio, o que pôde ser observado é que, neste capítulo sobre metodologia da história escrito por ele, não exclui o político da história como faz a Escola dos Annales.

Resumindo: o único que apresenta um pensamento destoante é Bakunin. Ele se difere dos outros anarquistas por acreditar em um “destino na história”, na razão iluminista e na ciência. Defende que o principal fator determinante na história é o fator econômico, aposta na constituição da “Ciência histórica” e que sejam criadas leis históricas. O método de Bakunin é hipotético-dedutivo (metafísico). Proudhon, querendo criar um método e defendendo o empirismo, criou uma teoria. Kropótine misturou “ciência” e ideologia (filosofia), contudo foi capaz de formular orientação mais coerente para a prática historiográfica, para a construção do saber histórico ao relacionar a história com a antropologia. O único problema nas discussões de Rudolf Rocker é o fato de ele considerar somente o modelo das ciências naturais como sendo o verdadeiro método científico.

Considerando as observações acima, o pensamento anarquista em relação à história apresenta algumas características: a aposta na concepção de que os homens possuem autonomia relativa perante o devir; que a história é uma construção a partir da disputa de vários projetos e de diversos agentes sociais; que não existe determinismo; que existe uma continuidade de rupturas; que as causas em história são de caráter humano e social; que não existe um mecanismo monocausal, mas sim pluricausal e que não existem leis, em história. A história existe em diálogo com as ciências sociais. Os anarquistas defendem em primeiro lugar o estudo do empírico, as particularidades, individualidades e especificidades, articulando, estas, ao global e geral, à unidade e à teoria. No campo temático, os anarquistas em estudo apostam na história das ideias e mentalidades, uma história social da cultural.

A questão fundamental, para os tempos atuais, é que os projetos sociais de igualdade e liberdade não dependem da vontade da ciência. A ciência não tem vontade. As ideologias sim, estas podem construir, de acordo com as condições reais, seus projetos de socialismo e liberdade. A História pode contribuir, na construção dos discursos de identidade, nas memórias de lutas, no estudo dos processos reais, para a construção dos programas revolucionários. A busca do sentido que defende Dosse pode estar na possibilidade de trabalhar com a pluralidade serial, respeitando as particularidades e articulando de forma federativa e libertária os saberes e poderes em “combates pela história”.]

Anderson Romário Pereira Corrêa, em Anarkismo.net

  1. Bibliografia

BAKUNIN, Michael Alexandrovich. 1814 – 1876. Textos Anarquistas. Seleção e notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 1999.

BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. http://www.culturabrasil.org/deuseoestado.html.26/06/20…10:25

COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber e a história. São Paulo: Brasiliense, 1995.

DOSSE, François. A História em migalhas: dos Annales à Nova História. Tradução Dulce Oliveira Amarante dos Santos; revisão técnica José Leonardo do Nascimento. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
GURVITCH, Georges. Proudhon e Marx. Biblioteca de textos universitários. 2ª Edição. Editorial Presença/Martins Fontes.s.d.

KROPÓTKINE, Peter. A Questão Social: O humanismo libertário em face da ciência. Rio de Janeiro, Ed. Mundo Livre. s/d.

MONGE, Rodrigo Quesada. Utopia y anarquia em el discurso historiográfico contemporâneo. Escaner Cultural. Santiago de Chile. Revista Virtual. Ano 8. Número 82, Abril de 2006. http://www.escaner.cl/escaner82/perfiles.html. 25/06/2008. 11:05.

REIS, José Carlos. Da “história global” à “história em migalhas”: o que se ganha, o que se perde? In: Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 2000.

REIS, José Carlos. A história entre a filosofia e a ciência. São Paulo. Ática, 1996
RESENDE, Paulo-Edgar e Edson Passeti. Pierre-Joseph Proudhon:Política. São Paulo. Ed. Ática, 1986.

ROCKER, Rudolff. La insuficiência de todas las interpretaciones históricas. In: Nacionalismo e Cultara.1ªEd.Londres, 1937. 1ª Ed. Cibernética, março de 2007. http://es.wikipedia.org/wiki/Rudolf_Rocker

WOODCOCK, George. História das idéias e movimentos anarquistas –v.2, O movimento. Porto Alegre, L&PM, 2002.

Obs.:Artigo integrante dos instrumentos avaliativos utilizados pelo Prof. Dr. Arno Alvarez Kern durante o Seminário: “Debates teóricos do tempo presente sobre a epistemologia do passado: teorias da história e da arqueologia.”. Mestrado em História – PUCRS.2008.

Publicado primeiramente no:

http://www.estrategiaeanalise.com.br/ler02.php?idsecao=…b2308

http://andersonpereiracorrea.blogspot.com/

Related Link: http://andersonpereiracorrea.blogspot.com/search?update…ts=19

Nota

[1] Durante as programações da I Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre, foi lançado o livro “A História por Anarquistas”. Com apresentação de Felipe Corrêa, que escreveu sobre o anarquismo contemporâneo/ a história para os anarquistas/ teoria e método de análise; O primeiro capitulo foi escrito por Bruno Lima Rocha, com o capitulo “organização política Anarquista e Democracia de Base Libertária. Bruno desenvolve seus argumentos “com exemplos e debates de fundo histórico e sob a perspectiva do anarquismo de matriz especifista.” O texto a seguir é o segundo capitulo “A História na Visão de Anarquistas”, de autoria de Anderson Romário Pereira Corrêa.

“Mais Séneca e menos ansiolíticos”

Seneca
Reprodução

O título acima abre o texto de Juan Arnau, para o El País, texto que segue praticamente na integra abaixo, “Vaidade sem controle, obsessão pela segurança, aceleração tecnológica … Por que tantas pessoas procuram na filosofia da Antiguidade respostas para o mundo em que vivemos?”

Antes, segue parte do verbete da Wikipédia a respeito do advogado, escritor e intelectual do Império Romano,

[Lúcio Aneu Séneca (português europeu) ou Sêneca (português brasileiro) (em latim: Lucius Annaeus Seneca; Corduba4 a.C. — Roma65) foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano. Conhecido também como Séneca (ou Sêneca), o Moço, o Filósofo, ou ainda, o Jovem, sua obra literária e filosófica, tida como modelo do pensador estoico durante o Renascimento, inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia europeia renascentista.

Sêneca foi simultaneamente dramaturgo de sucesso, uma das pessoas mais ricas de Roma, estadista famoso e conselheiro do imperador. Sêneca teve que negociar, persuadir e planejar seu caminho pela vida. Ao invés de filosofar da segurança da cátedra de uma universidade, ele teve que lidar constantemente com pessoas não cooperativas e poderosas e enfrentar o desastre, o exílio, a saúde frágil e a condenação à morte. Sêneca correu riscos e teve grandes feitos.]

. . . . . . . . . .

[Logo após a morte de Cláudio, ocorrida em 54, o escritor vingou-se com um escrito que foi considerado obra-prima das sátiras romanas, Apocolocyntosis divi Claudii (“Transformação em abóbora do divino Cláudio”).[4] Nessa obra, Séneca critica o autoritarismo do imperador e narra como ele é recusado pelos deuses. Seu irmão, Lúcio Júnio Gálio,[5] também ridicularizou Cláudio, fazendo uma analogia com as pessoas executadas, que eram levadas ao Fórum Romano puxadas por ganchos: ele disse que Cláudio havia sido elevado aos céus puxado por um gancho.[6]

Quando Nero, aos dezessete anos, tornou-se imperador, Séneca continuou a seu lado, porém não mais como pedagogo e sim como seu principal conselheiro (ajudado por Afrânio Burro, prefeito do Pretório). Sêneca procurou orientar para uma política justa e humanitária. Se, durante os primeiros sete anos, o governo de Nero lembra o de Augusto, o mérito exclusivo é desses dois homens que, na realidade, governaram ao lado do jovem príncipe. A índole de Nero foi mitigada, corrigida, freada. Mais tarde, porém, a malvadez de Nero teve o predomínio. Séneca, durante algum tempo, exerceu influência benéfica sobre o jovem, mas, aos poucos, foi forçado a adotar atitudes de complacência. Chegou mesmo a redigir uma carta ao senado na qual se alega que tentou justificar a execução de Agripina em 59. Séneca sabia que a maior culpa por sua morte havia sido da própria Agripina, que pretendia imperar e que se tornara hostil por ambição, capricho e corrupção; sua raiva crescente só fez aumentar a vingança matricida de Nero, que não deu mais ouvidos às palavras severas de seus dois conselheiros. Séneca foi, então, muito criticado pela fraca oposição à tirania e à acumulação de riquezas de Nero, incompatíveis com as concepções estoicas. Conforme concluiu o emérito professor Giulio Davide Leoni, o destino foi, em parte, malvado para com Séneca, fazendo chegar até nós as acusações e perdendo as defesas. Da leitura atenta de suas páginas, do modo como aceitou e caminhou para a morte, como Sócrates, surge um juízo sincero que as reticências dos historiadores e estudiosos, muitas vezes, acabam por ofuscar.

Em De Beneficiis (II,18), Séneca lembra que “às vezes, mesmo contra a nossa vontade, devemos aceitar um benefício, quando é dado por um tirano cruel e iracundo, que reputaria injúria que tu desdenhasses seu presente. Não deverei aceitar?” Assim, mais importante do que saber que Séneca era rico, é saber se ele era ávido de riquezas, se viveu no fausto e na opulência.

Conforme suas Epistulae Morales ad Lucilium, 18, seu pensamento era este: é lícito ser rico, contudo é preciso viver de tal modo que se possa, em cada contingência, bastar a si próprio e renunciar a qualquer bem que a sorte pode dar, mas também tirar. Rico, Séneca viveu com um certo conforto, mas, conforme acreditava e pregava, sempre de maneira modesta.

O professor G.D. Leoni, da Sedes Sapientiae, afirma, em seu estudo introdutivo ao volume XLIV da Biblioteca Clássica da Atena Editora, São Paulo, 1957, que a posteridade foi injusta, recolhendo contra Sêneca somente as invejosas acusações dos seus inimigos. Mas a perfeita intuição dos poetas define aquilo que os críticos se esforçam por esclarecer mas amiúde ofuscam. Dante, no limbo, vê, entre os sumos escritores e heróis antigos – SócratesPlatãoDemócritoDiógenes de SinopeAnaxágoraTales de MiletoEmpédoclesHeráclitoZenão de CítioDioscóridesOrfeuCíceroLino e “Séneca morale”. Séneca, diferente de um filósofo, é um entusiasta da filosofia, estudioso apaixonado, informado de todas as correntes filosóficas do seu tempo, mas contrário a encerrar-se em qualquer sistema ou fórmula. Nele, a filosofia era viva, era a própria vida. “A prosa adere ao pensamento, uniformiza-se, adapta-se a ele; e muitas vezes um subentendido produz um jogo de luzes e sombras cheios de profunda beleza, amiúde a frase breve produz inesperadas imagens pictóricas, outras vezes antíteses, ou as anedotas enriquecem as sentenças austeras, a argúcia atenua a trágica solenidade do assunto”. Poeta, humanista, mais que filósofo, o elemento preponderante em suas obras são os sentimentos, mais do que as ideias, com as quais, na origem, pouco contribuiu. Entretanto, na história do pensamento, nunca ninguém foi tão compenetrado do sentimento da nobreza do espírito humano, e soube tão bem e poderosamente transmitir esse sentimento em palavras.” Sua prosa é vivaz, variada, alegre, moderna, eterna; como quando procura mostrar como as desventuras pelas quais passam os bons, devem ser encaradas como provas para melhor evidenciar suas virtudes, ajudar o próximo: “Os deuses põem à prova a virtude e exercitam a força de espírito dos bons, que devem seguir seu destino preestabelecido: o sábio, por isso, nunca será infeliz.”

Séneca retirou-se da vida pública em 62. Entre seus últimos textos, estão a compilação científica Naturales quaestiones (“Problemas naturais”); os tratados De tranquillitate animi (Sobre a tranquilidade da alma), De vita beata (Sobre a vida beata) e, talvez sua obra mais profunda, as Epistolae morales, dirigidas a Lucílio, em que reúne conselhos estoicos e elementos epicuristas na pregação de uma fraternidade universal mais tarde considerada próxima ao cristianismo.]

Segue o texto de Juan Arnau

[Cultive o espírito porque obstáculos não faltarão. O conselho de Confúcio poderia  ter sido assinado por qualquer um dos filósofos estoicos. Devemos a Woody Allen uma versão moderna dessa máxima: “Se quer fazer Deus rir, conte a ele seus planos”. Um poeta espanhol a finalizou com um verso lapidar sobre o inexorável julgamento do tempo: “A pessoa só compreende depois que a vida era algo sério”.

Esses são, em termos gerais, os três vértices do estoicismo antigo, que parece ressurgir em nossos dias. É uma miragem? As sociedades modernas se encontram dominadas pela rentabilidade tecnocrática da selfie, a autoindulgência (todos nós merecemos, especialmente se pagarmos) e o capricho. Significa fabricar um ego frágil e injustificadamente vaidoso. Uma situação que pode ser supostamente remediada com uma boa dose de estoicismo. Uma vez que não podemos controlar o que nos acontece e vivemos totalmente voltados para fora, atemorizados e estressados, uma vez que somos mais circunstância do que nunca, talvez essa antiga filosofia possa nos ajudar, ela que inspirou Marco Aurélio, imperador de Roma, um homem que, por sua posição, conheceu o estresse melhor do que ninguém.

Mas nesse deslocamento, nessa busca de inspiração no passado greco-latino, corre-se o risco de confundir, e isso de fato ocorre, estoicismo com voluntarismo, tão vigente e puritano. A cultura do esforço e a busca do sucesso dominam as sessões de coaching, que é, segundo seus proponentes, a arte de ajudar outras pessoas a cumprir seus objetivos e a “preencher o vazio entre o que se é e o que se deseja ser”. Não existe maior traição ao legado estoico. O voluntarismo resseca a alma e uma das finalidades do estoicismo é recriá-la. O que chamamos “desafios” e “metas” não são outra coisa a não ser viseiras que não nos permitem ver mais do que um único aspecto da realidade e a pessoa acaba batendo o avião contra a montanha, como aquele piloto da companhia Germanwings. fez nos Alpes da Suíça em 2015.

Essas metas nos trabalham por dentro e parecem projetadas para excluir a contemplação e a observação atenta e desinteressada. Contra a tirania da meta, os estoicos pretendiam se livrar de paixões muito urgentes e monopolizadoras. De fato, um dos sinais distintivos foi considerar a poesia como meio legítimo de conhecimento. A lírica nos mantém em uma atitude aberta e nada sabe de metas e objetivos. A poesia era aos estoicos, especialmente a de Homero, genuína paideia. Entender isso significa ganhar uma liberdade interior, não estar eternamente abduzidos pelo circo e as telas, uma independência moral, não a opinião geral e a gritaria do Twitter e transcender a dependência da pessoa em relação a sua parte animal (a suposição de que o homem é esse ser singular que, como dizia Novalis, vive ao mesmo tempo dentro e fora da natureza). Com esse “cuidado de si”, que Marco Aurélio chamava meditações, era possível conseguir uma autarquia ética que teria uma importância decisiva no pensamento político grego.

Alguns exemplos de estoicismo moderno não estão muito longe. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein conta que quando jovem experimentou essa sensação de que “nada poderia acontecer com ele”. Era uma forma de dizer que, não importa o que acontecesse (uma bala perdida, um câncer), saberia aproveitar a experiência. Uma atitude que lhe permitiu assumir o posto de vigia em meio ao fogo cruzado durante a Primeira Guerra Mundial. Encontramos algo parecido na francesa Simone Weil, sempre se arriscando, seja na fábrica da Renault ou nos hospitais de Londres, com a humildade como valor supremo, que faz com que a chama do divino não se apague.

Curiosamente, a atitude desses dois grandes filósofos, nos quais revivem os velhos ideais greco-latinos, contrasta com algumas obsessões atuais. Do medo ao próprio corpo, que requer um exame contínuo, à obsessão pela segurança (to feel safe, to feel at home). Como se um scanner e um refúgio pudessem outorgar essa tranquilidade, como se fosse preciso se trancar para sentir-se seguro. Enquanto um mandatário recente se perguntava quanto dinheiro precisava para sentir-se seguro e, ao não encontrar o número, passou a acumular capital, Wittgenstein se expunha na trincheira e Weil na coluna de Durruti, o anarquista que combateu na guerra civil da Espanha.

O estoicismo implica, como disse a espanhola María Zambrano, a recapitulação fundamental da filosofia grega. Nesse sentido foi e é tanto um modo de vida como um modo de se estar no mundo. Zenão de Cítio, natural da colônia grega do Chipre, figura como fundador da escola. Tinham algo em comum com os cínicos, especialmente a vida frugal e o desprezo pelos bens mundanos, e refletiram sobre o destino e a relação entre natureza e espírito. Existiu um estoicismo médio (platônico, pitagórico e cético), mas os que deram fama à escola foram seus representantes romanos: um imperador, um senador e um escavo. Todos eles surgiram, como agora, sob a sombra do Império. Aquele império era militar, o de hoje é tecnológico. Imaginem Zuckerberg abraçando o estoicismo; pois bem, foi isso que fez o imperador Marco Aurélio. Sêneca nasceu na periferia do Império, na  Hispânia, mas foi uma figura fundamental da política em Roma, senador com Calígula e tutor de Nero. Epíteto chegou à cidade sendo um escravo. Quando foi libertado fundou uma escola e apesar de, seguindo o exemplo de Sócrates, não ter escrito nada, seus discípulos se encarregaram de transmitir seu legado.

Moralistas e contemplativos, todos eles defenderam a vida virtuosa, a imperturbabilidade e o desapaixonamento, sentimentos todos eles bem pouco rentáveis a uma sociedade do entretenimento. O estoicismo conquistou grande parte do mundo político-intelectual romano, se tornou uma regra de ação e sua influência chegaria a grandes filósofos como Plotino e Boécio. Não descreveremos sua lógica refinada, mas vale a pena lembrar que a subordinavam à ética. Ao contrário de hoje, pelo menos no mundo financeiro, onde o algoritmo domina a moral. Nela se destaca sua doutrina dos indemonstráveis, provavelmente de origem indiana.

Concebiam a alma como uma lousa onde as impressões eram gravadas. Delas surgem as certezas (se a alma aceitar a impressão) e os interrogantes (se for incapaz de localizá-la). Para os estoicos, o mundo era, como para nós, substancialmente corporal, mas sua física não nega o imaterial. Concebe a natureza como um contínuo dinâmico, coeso pelo pneuma, um sopro frio e quente, composto de ar e fogo. Herdaram de Heráclito o fogo como princípio ativo e primordial, de onde surgiu o restante dos elementos e para onde retornaram. Como o humor e o pranto, o pneuma não se movimenta e sim se “propaga”, contagiando com alegria e doença.

Hoje não seria exagerado colocar em prática alguns de seus princípios. O imperativo ético de viver conforme a natureza, que nosso planeta agradeceria. O exercício constante da virtude, ou eudemonia, que permite o desprendimento. E, por fim, o que Nietzsche chamou o amor fati, a aceitação e querença do próprio destino, remédio eficaz para tudo aquilo que produz desassossego. Não dá para dizer que esses princípios proliferam em nossos dias. Se um velho estoico pudesse vir ao nosso tempo, veria, nas grandes desigualdades propiciadas pela economia financeira, um descuido de si, um esquecimento dessa autonomia moral que evita que surjam emoções como o medo e a vaidade, que criam a cobiça. Emoções contrárias à razão do mundo que, em nosso caso, é a razão do planeta.]

“Entrevista especial com Paul Singer”

[Para a revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda. Conduzida por Luiz Bernardo Pericás e Paulo Barsotti, a entrevista foi realizada em São Paulo, no dia 5 de março de 2016, e contou com a transcrição e o apoio técnico de Silvia Letícia Marques. Abaixo, o texto integral; o leitor também tem a opção de baixar a entrevista completa diagramada em PDF clicando aqui.]

Leia na integra no Blog da Boimtempo.

Paul

“Sem emenda – Ódios do tempo presente”

Politicamente correto
Tribuna da Internet

[Chamam-lhes movimentos tribais. Reflexos ou populismo de tribo. Também há quem diga fanatismo e respectivas hordas ou mesmo fanatismo nacionalista. Os mais específicos falarão de supremacia branca, de racismo e de xenofobia. Eis umas tantas designações correntes para estes fenómenos actuais ou ódios contemporâneos. Estes termos parecem estranhamente empenhados em denunciar comportamentos brancos, de preferência europeus e americanos. Todos eles com inimigos declarados: negros, árabes, indianos e chineses e ainda uns acrescentos de muçulmanos, ciganos, romenos e outros imigrantes.

Acontece que estes comportamentos e estes valores, reais e detestáveis, não são únicos e são exactamente iguais a outros, simétricos e também detestáveis, de negros, árabes e indianos, contra os brancos e mesmo uns contra os outros. E todos se parecem com outros, não menos tribais, não menos fanáticos e também totalmente detestáveis: os das claques desportivas, das ideologias partidárias e dos ódios de classe…

Lamentavelmente, há sempre duas medidas. Se o racismo for dos brancos, dos cristãos e dos europeus, não tem perdão. Se for dos negros, dos muçulmanos e dos africanos, tem desculpas.

Se a xenofobia for prática corrente de brancos, europeus e cristãos, trata-se de odiosa forma de estar no mundo, de despotismo de exploradores e de intolerável egoísmo. Se for a rotina de negros, índios, Indianos, chineses, árabes e ciganos, são as reacções naturais de defesa e da dignidade.

Se o tribalismo for de partidos políticos ou de classes sociais, é forma superior de consciência de classes e de empenho cívico. Mas se for de nação ou região, é a deriva fascista e o populismo soberanista opressor.

Verdade é que os ódios do tempo presente têm estas formas de se exprimir. Umas são desculpadas pelas modas, outras não, mas todas igualmente destruidoras da razão. No Parlamento, a ira, a falta de cortesia e a agressividade são semelhantes às que se exprimem no estádio de futebol. Está em vigor o princípio segundo o qual o radicalismo adversário é fonte de orgulho e de razão. Quando é exactamente o contrário. A agressividade e a hostilidade adversária são estéreis, destinadas a regimentar e não a fundamentar. Diz-se que a ruptura entre esquerda e direita salva a democracia e clarifica argumentos. Nada mais enganador. Em todos os momentos difíceis da vida de um país, foi necessário fazer convergir esforços e razões. Na vida política e social da democracia, a ruptura não é saudável. Quando acontece, vencem a revolução, o caos, a ditadura e a corrupção.

São os reflexos condicionados que fazem com que se julgue a corrupção com dois pesos. Se for da direita, da banca, das grandes famílias, das empresas e dos patrões, é excelente ou inexistente para a direita, mas péssima e condenável para a esquerda. Mas, se for da esquerda, dos socialistas, dos comunistas e aparentados, ou não existe ou tem perdão por ser popular, mas péssima e pecaminosa para a direita. Ambas, esquerda e direita, consideram que a única corrupção com direito à existência é a sua própria. Ambas só têm olhos para a corrupção da outra.

Diz-se hoje que a corrupção é de classe e o terrorismo é político. Ora, cada vez mais se percebe que não têm cor nem ideologia, que a esquerda é tão corrupta quanto a direita, que a esquerda recorre tanto ao terrorismo quanto a direita. O terrorismo e a corrupção já não têm ideologia, nem classe, nem política, nem filosofia, nem desculpa! São os ódios do tempo presente. São os inimigos das liberdades e dos direitos dos cidadãos.

Certos estilos de governo e alguns géneros de liderança são também objectos destes dois pesos. Putin, Trump, Fujimori, Chavez, Maduro, Lula, Berlusconi ou Sócrates: bons exemplos do modo como gestos iguais, estilos semelhantes e métodos afins têm uma valoração moral e uma classificação política muito diferentes. Na política, como na guerra. Ou como na banca e nos estádios. O princípio é simples: os meus favoritos podem mentir e roubar; podem enganar e trair; podem matar e destruir: o que lhes peço é que sejam eficientes e destruam os adversários. E que o árbitro não veja.]

Publicada por António Barreto para o site Jacarandá – (DN, 15 de abril de 2018)

Os índios bem que insistiram, mas nós não aprendemos nada com eles

Luta_indigena
Xingu (peuple) – Wikiwand- wikiwand.com

O jornalista Washington Novaes conta uma história interessante de quando de sua primeira ida a uma aldeia indígena.

Novaes é hoje um jornalista ambientalista, com ligações com o indigenismo, o que quer dizer mais ou menos a mesma coisa – indigenismo = ambientalismo.

Conta Novaes que quis tomar um banho nessa sua primeira visita, e buscou se dispor que toda parafernália que costumamos usar nessas ocasiões, apenas não abrindo mão da toalha, do sabonete, do calção e do chinelo.

Vale ressaltar aqui que normalmente as “casas de banho” (como se diz em Portugal) indígenas são rios ou lagos e normalmente ficam em áreas mais baixas que os aldeamentos.

Ao descer para o “banho”, o jornalista deparou-se com um indígena que estava subindo, já banhado, todo nu, sem sabonete, toalha, chinelo e calção.

Trata-se de uma cena extraordinária, uma lição sem palavras, sem discursos e sem afetações.

Uma lição dada por quem vive sem pudor, sem os filtros sociais e religiosos que costumamos carregar por nossas vidas.

Numa de minhas primeiras idas a aldeias indígenas (quando ainda atuava no Cimi – Conselho Indigenista Missionário), neófito, portanto, busquei igualmente um lugar para me banhar.

Um dos índios indicou-me o lugar, um lago, mas para minha surpresa banhavam-se no mesmo local meninos e meninas e algumas mulheres.

Meu filtro moral indicou-me que voltasse para a aldeia sem me banhar.

Os indígenas, principalmente os homens, se divertiram um bocado com a história.

A questão indígena e a nossa incapacidade de compreendê-los, no entanto, não se resumem a simples banhos ou festas, como se vê na foto acima.

No link que pode ser acessado aqui (https://www.youtube.com/watch?v=XKxO1Px4F5s&t=495s) o professor Sergio Lessa mostra como o Capitalismo se apropria do conhecimento e das práticas das sociedades primitivas, transformando-as em valor e marginalizando homens e mulheres, pois no sistema capitalista não há lugar para todos.

Abusadamente acrescento um remendo ao que diz o professor Lessa, lembrando que as experiências socialistas, como por exemplo, a soviética e a chinesa, foram pródigas no desrespeito e na violência contra as sociedades primitivas, como foram os casos da violenta repressão à religiosidade xamânica, na URSS, e a invasão do Tibet pela China.

A questão, portanto, parece ser de outra ordem, não de sistema (capitalista ou socialista) mas de modelo (desenvolvimentista).

O que choca, sejam capitalistas, sejam socialistas, é a capacidade que as sociedades primitivas têm de partilhar, de tornar tudo (cultura e bens) “coisas comuns”, a serem comungadas, comunistas, de todos para todos, indistintamente.

Daí ser possível entender a razão dos massacres perpetrados pelos europeus nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania.