Movimentos sociais serão capazes de gerar um novo mundo possível (?)

MantraUm velho problema das chamadas “esquerdas” e dos movimentos sociais é a unificação da pauta reivindicatória, visando à superação do capitalismo, e, por consequência, das ideias comunistas-marxistas que ainda persistem, embora em guetos.

A história demonstra que sim, que há.

Sempre existe uma boa/má desculpa para isso, no caso, o respeito às singularidades, às especificidades de cada grupo, transportadas para o campo das especulações filosóficas e, como não poderia deixar de ser, para a análise econômica – economia da qual poucos entendem, mas sobre ela quase todo mundo tem alguma coisa a dizer.

Seja o que for, as rupturas vêm de longe: das 3ª e 4ª internacional socialista e, antes, por ocasião da fundação (no século 19) da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

O surgimento, no início desde século/milênio, do Fórum Social Mundial não alterou o quadro de ruptura.

Persistem, como se vai ver em texto abaixo, algumas questões aparentemente insuperáveis: ‘Qual a aparência desse “outro mundo possível”?”/‘E o que devemos fazer para chegar lá?’.

Nos tempos atuais, uma outra questão se mostra fundamental: as diferenças de expectativas entre o Norte (desenvolvido) e o Sul (subdesenvolvido).

De resto, isso também se viu nas duas décadas que compreendem os meados dos anos 50 até os meados dos 70, entre as razões que levaram às ruas milhares de jovens nos EUA e na Europa, e aqueles que se insurgiram contra as ditaduras militares na América Latina, por exemplo.

No mais, para reflexão, seguem dois textos abaixo (com os seus respectivos link), ambos do blog Boimtempo.

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“Insurgência precária: o Fórum Social Mundial”

Por Ruy Braga.

[Antes da crise econômica iniciada em 2008 e, portanto, antes da Primavera Árabe, dos Indignados em Portugal e na Espanha, dos protestos na Praça Sintagma e do Movimento Occupy Wall Street, a última grande onda de mobilização em escala internacional começou com a chamada Batalha de Seattle em 1999. A passagem de um momento defensivo para um momento ofensivo aconteceu quando da criação do Fórum Social Mundial (FSM) e da emergência de um internacionalismo embrionário que buscou articular diferentes sujeitos políticos e movimentos críticos ao neoliberalismo.

No início do século XXI, esse “movimento dos movimentos” foi considerado o paradigma da globalização contra-hegemônica, isto é, uma articulação de múltiplos movimentos globais em um “espaço aberto de debates” não hierárquico e permeável a participação de sindicatos e ONGs. Tendo por alvo comum o neoliberalismo entranhado nas estruturas organizativas econômicas globais, tais como o FMI e o Banco Mundial, além das próprias corporações transnacionais, o fórum pareceu encarnar o projeto estratégico necessário à fusão de grupos de interesses diversos por meio da combinação pragmática de seus objetivos comuns.

Uma perspectiva alimentada pelo “otimismo neopolanyiano” diria que a reinvenção dessas múltiplas identidades em luta contra a globalização neoliberal constitui a base do atual contra movimento de proteção social. Em suma, a regulação social do neoliberalismo dependeria da capacidade desses múltiplos atores políticos assumirem democraticamente o controle da economia de mercado. E, de fato, desde que surgiu em 2001, o fórum transformou-se num caso exemplar de construção democrática de alianças entre diferentes movimentos sociais críticos da globalização neoliberal. Nesse sentido, não há dúvidas de que o FSM encarnou as aspirações dos que defendem a necessidade de um contra movimento nos moldes polanyianos.

Ao sintetizar as grandes questões estratégicas que desafiam contemporaneamente os movimentos contra hegemônicos, ou seja, o problema da liderança, da representatividade e da construção de recursos ideológicos alternativos ao neoliberalismo, o destino do FSM transformou-se na prova da viabilidade do contra movimento polanyiano. Afinal, se a Batalha de Seattle atestou o nascimento desse movimento, apenas com a criação do fórum uma autêntica experiência organizativa delineou-se para os movimentos sociais globais.

Ao analisarmos os atores que estiveram à frente da organização do encontro, perceberemos que as raízes do FSM originaram-se nas tensões existentes entre o Norte e o Sul globalizados, especialmente, a partir da resistência às políticas neoliberais utilizadas durante a crise da dívida do Terceiro Mundo dos anos 1980 e 1990. Durante esse ciclo latino-americano de contestações que se estendeu da redemocratização dos anos 1980 às vitórias eleitorais de partidos de esquerda em países estratégicos da região, nos anos 1990 e 2000, várias organizações normalmente agrupadas sob a rubrica de “sociedade civil global” aumentaram sua capacidade de pautar o debate público.

A diversidade política dessas organizações somada à escala internacional de suas demandas fez com que a direção do FSM optasse pela forma organizativa de rede, evitando a adoção de um sistema mais hierarquizado de organização. A ideia de que o fórum seria um “espaço aberto” dedicado tanto ao debate democrático de ideias quanto à elaboração de propostas dos movimentos da sociedade civil a fim de desafiar o neoliberalismo não apenas expressou a diversidade setorial e geográfica dos participantes, como logrou orientar esses primeiros esforços de articulação do “movimento dos movimentos”.

Por um lado, se o espaço aberto foi notoriamente estimulante no início dos anos 2000, por outro, é necessário reconhecer que em relação à elaboração de iniciativas contra hegemônicas ao neoliberalismo, o relativismo do fórum tornou-se frustrante para uma parte considerável dos ativistas. A frustração adveio da percepção crescente acerca da incapacidade do FSM responder adequadamente a duas questões-chave: Qual a aparência desse “outro mundo possível”? E o que devemos fazer para chegar lá? O método do espaço aberto não logrou superar nem as concepções despolitizadas da sociedade civil global, nem as formas burocratizadas de organização política.

Como não existem respostas espontâneas aos dilemas estratégicos, a subpolitização do fórum transformou-se em um encruzilhada de difícil solução. Entre os defensores mais lúcidos do FSM como um espaço aberto, Boaventura de Sousa Santos destacou-se pela defesa da ação politicamente orientada do sindicalismo. No entanto, apesar de reconhecer a importância do trabalho organizado no movimento contra hegemônico, Santos tende a subavaliar o papel do debate estratégico em favorecimento de pautas corporativas. Talvez isso ajude-nos a interpretar o entusiasmo do sociólogo português com as supostas conquistas do fórum. Afinal, sem uma orientação estratégica clara, a medida do sucesso do encontro torna-se bastante arbitrária.

De fato, se acompanhamos o argumento de Peter Evans segundo o qual as contradições da globalização capitalista criam as condições objetivas para o surgimento de contra movimentos à expansão da mercantilização neoliberal , é importante destacar que o destino da globalização contra-hegemônica depende da existência de forças sociais organizadas em torno de uma orientação estratégica clara. Nesse sentido, é necessário tomar certa precaução em relação à afirmação de Santos segundo a qual a maior força do FSM é seu método. Na realidade, quando pensamos em um desafio real à globalização neoliberal, o resultado dos encontros é, no máximo, ambíguo.

Certamente, a experiência de mais de uma década do fórum é a melhor oportunidade para avaliarmos os limites da aposta neopolanyiana na inevitabilidade da formação de um contra movimento global espontâneo em reação ao avanço do neoliberalismo. De fato, é inegável que o FSM permitiu o encontro de movimentos sociais, sindicatos e ONGs em torno de pautas trabalhistas, ecológicas, feministas, etc. No entanto, dessa pluralidade não surgiu um contra movimento em escala global capaz de esboçar uma alternativa de regulação ao neoliberalismo. Na ausência de um método capaz de garantir a implementação de campanhas internacionais, nem ao menos podemos identificar no fórum o surgimento de um novo internacionalismo. Em suma, sem um debate estratégico qualificado capaz de criar canais deliberativos, como seria possível articular uma gama tão variada de interesses corporativistas?]

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Link: http://blogdaboitempo.com.br/2015/11/09/insurgencia-precaria-o-forum-social-mundial/ .

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“Incontornável Polanyi”

Por Ruy Braga.

Escrevendo três meses antes do pedido de concordata do banco Lehman Brothers, marco do início da atual crise econômica mundial, o professor de economia da Universidade da Califórnia em Davies, Gregory Clark, publicou uma resenha crítica à obra-prima de Polanyi questionando-se sobre as razões da longevidade de seu interesse. Afinal:

“A história não foi gentil com os prognósticos de Karl Polanyi. O capitalismo de livre mercado é um sistema estável e resistente na maior parte do mundo – particularmente, nos países de língua inglesa. […]. O padrão-ouro desapareceu, mas em seu lugar surgiu um sistema de taxas de câmbio flutuantes regulado por mecanismos de mercado. […]. Instrumentos mais eficientes de administração monetária reduziram enormemente a severidade dos ciclos de negócios. Medido pelo sucesso dos mercados, a civilização do século 19 parece estar desfrutando de um renascimento. O verdadeiro enigma do livro de Polanyi é, então, por que razão seu fascínio é tão duradouro tendo em vista a desconexão entre suas predições e as realidades modernas. […]. Assim, a popularidade de Polanyi representa o triunfo da vontade e do romantismo sobre a ciência em disciplinas como a sociologia”.1

Ainda que o contexto presente tenha arruinado o otimismo de Clark sobre a estabilidade dos mercados, argumentaremos que, no tocante à sociologia crítica o livro de Karl Polanyi, A grande transformação, talvez seja a obra que mais perto tenha chegado de traduzir para a linguagem da teoria social o grande consenso popular formado no pós-Segunda Guerra em torno da necessidade imperiosa de regular o capitalismo a fim de proteger a humanidade dos efeitos deletérios da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro. Publicado em 1944, mesmo ano do aparecimento do livro de Friedrich von Hayek, O caminho da servidão, o projeto intelectual por trás de A grande transformação foi, em grande medida, forjado nos anos 1920 enquanto Polanyi vivia em uma Viena “socialista” que marcou de forma indelével suas convicções socialistas democráticas.

Aliás, as trajetórias, os destinos e as fortunas críticas de Polanyi e Hayek não deixam de sintetizar boa parte das desventuras do capitalismo no pós-Segunda Guerra. Chegados juntos à Inglaterra como imigrantes no início dos anos 1930, ambos viveram na mesma Viena socialista que fascinou Polanyi e horrorizou Hayek e seu mentor intelectual Ludwig von Mises.2 Nos anos 1920, Hayek e von Mises ficaram traumatizados pela experiência da prefeitura socialista de Viena que por meio de suas políticas públicas de moradia popular e proteção social favorecia as classes trabalhadoras. Ambos consideraram o socialismo em todas as suas múltiplas variedades, utópicas, reformistas ou revolucionárias, como uma usurpação das liberdades individuais. E decidiram olhar para trás, isto é, para a utopia do mercado autorregulado, a fim de recuperar essa ideologia completamente desacreditada pela grande crise de 1929.

Hayek e Polanyi são antípodas perfeitos. Principal representante da quarta geração da escola austríaca de economia, Hayek emigrou da Viena vermelha do pós-guerra para a Inglaterra onde lecionou na London School of Economics (LSE) e influenciou a criação do Instituto de Assuntos Econômicos (IEA) que, posteriormente, ajudaria a formatar as políticas neoliberais implementadas por Margareth Thatcher. Finalmente, Hayek estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde se transformou na figura ideologicamente mais proeminente associada ao Departamento de Economia da Universidade de Chicago. De desajustado na Viena socialista dos anos 1920 a ganhador do prêmio Nobel de economia em 1974: Hayek foi redimido pela grande onda de mercantilização inaugurada nos anos 1970.

Polanyi viveu entre Budapeste e Viena, cidades onde, antes de 1914, revolucionários russos eram bem-acolhidos por sua própria família. Manifestando inclinações socialistas desde jovem, Polanyi rapidamente evoluiu da liderança ativa do movimento estudantil húngaro a fundador do Círculo Galileu (ao lado de György Lukács) e admirador da coragem e audácia dos revolucionários marxistas. Em 1914, Polanyi ajudou a fundar o Partido Radical Húngaro, atuando como seu secretário-geral. Durante a I Guerra Mundial, ele lutou no front russo e terminado o conflito apoiou o célere governo socialdemocrata húngaro.

Nos anos 1920, vivendo em Viena, ele envolveu-se em debates sobre a contabilidade socialista, chegando a delinear um modelo democrático, funcionalista e associativo de processo de deliberação socialista tanto no âmbito econômico, quanto na esfera política. Entre 1924 e 1933, atuando como editor de uma prestigiosa revista econômica austríaca, Polanyi criticou a Escola Austríaca de Economia por sua visão abstrata e desenraizada dos processos econômicos.3 Desde então, os conflitos entre a economia de mercado, assim como a importância da deliberação democrática na economia moderna transformaram-se temas frequentes em seus trabalhos.

Em 1933, após a ascensão de Hitler ao poder, Polanyi foi demitido da revista onde trabalhava e mudou-se para Londres onde passou a lecionar numa associação educacional de trabalhadores por um salário mínimo. Suas pesquisas e anotações de aula serviram de base para a redação do livro A grande transformação. Em 1940, Polanyi e sua esposa, a revolucionária comunista húngara Ilona Duczyńska, mudaram-se para Vermont nos Estados Unidos onde ele passou a lecionar em uma faculdade local. Após a II Guerra Mundial e devido ao sucesso obtido pela publicação d’A grande transformação Polanyi foi convidado a lecionar na Universidade de Columbia. No entanto, o passado comunista de sua esposa os impediu de obter o visto estadunidense. Assim, o casal mudou-se para o Canadá, onde Polanyi continuou sua pesquisa sobre a formação do sistema econômico moderno a partir de uma abordagem histórica comparativa, lecionando eventualmente, em Columbia, até por volta de sua morte em 1964.4

O legado teórico de Karl Polanyi espalhou-se por várias especialidades das ciências sociais, tais como a sociologia histórica, a economia política e a antropologia social. A abordagem “substantivista” do enraizamento das relações econômicas na sociedade, assim como a crítica à ideia do mercado autorregulado, ambas centrais nos trabalhos de Polanyi, encontram-se, por exemplo, tanto na base das elaborações da Teoria Francesa da Regulação quanto na sociologia crítica da economia de Pierre Bourdieu. Se é verdade que seu legado intelectual influenciou muitos campos das ciências humanas e sua influência acadêmica é reconhecidamente mais abrangente do que a de seu antípoda, Friedrich Hayek, por exemplo, foi a capacidade de sintetizar o “espírito da época” fordista em seu afamado livro que fez de Polanyi um autor incontornável da sociologia.]

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No Seminário Cidades Rebeldes, Ruy Braga fez uso do arcabouço teórico desenvolvido por Karl Polanyi em sua intervenção no debate sobre a luta de classes no Brasil contemporâneo. Confira:

Notas

1 Gregory Clark. “Reconsiderations: ‘The Great Transformation’ by Karl Polanyi”. New York Sun, 4 de junho de 2008.
2 Para mais detalhes, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
3 Para uma visão matizada a respeito da compreensão de Polanyi acerca do duplo processo de desenraizamento e re-enraziamento da economia, ver Gareth Dale. Karl Polanyi: The Limits of the Market. Malden: Polity Press, 2010. Sobre as raízes teóricas e políticas da visão do socialismo democrático de Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. From the Great Transformation to the Great Financialization: On Karl Polanyi and Other Essays. Nova Iorque, Zed Books, 2013.
4 Para mais detalhes biográficos de Karl Polanyi, ver Kari Polanyi Levitt. The Life and Work of Karl Polanyi. Montreal, Black Rose Books, 1996.

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores do livro de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. (Boitempo, Carta Maior, 2013). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Link: http://blogdaboitempo.com.br/2015/10/13/incontornavel-polanyi/ .

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